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Claude Lévi-Strauss mostrou um novo modo de ver o homem
Hoje, dia 28 de novembro, festeja-se o centésimo aniversário de Claude Lévi-Strauss (foto). O último dos maîtres à penser. O homem que fez da antropologia o que Freud fez da psicanálise, ou seja, um dos grandes saberes do século XIX. Não só uma disciplina especializada, para poucos exploradores dos mundos exóticos, mas um novo modo de ver o homem.
Nenhum antropólogo exercitou uma influência tão vasta além do seu próprio campo. Com este moralista clássico, presente no estado de urgência planetária, a antropologia vai além de si para se tornar uma aposta filosófica, capaz de colocar em questão a oposição entre natureza e cultura e a própria definição do ser humano. Diferentemente de outros grandes antropólogos como Franz Boas, Bronislaw Malinowski, Margaret Mead e Gregory Bateson, o pai do estruturalismo não se tornou célebre por ter descrito povos primitivos, mas principalmente pelas implicações gerais do seu pensamento. E justamente nesse amplo intervalo estão o fascínio e o desafio da obra teórica levistraussiana.
O antropólogo francês não foi o primeiro nem o único a destacar o caráter estrutural dos fenômenos sociais, mas a sua originalidade está em levar essas características a série e tirar delas as conseqüências sem se descompor. É natural que uma pesquisa desse tipo tenha suscitado discussões e polêmicas, também por causa do fato de levar à discussão certas categorias típicas do humanismo ocidental, sobretudo os conceitos de “homem” e de “humanidade”. E, por outro lado, em uma célebre passagem de “O pensamento selvagem”, Lévi-Strauss afirmou que “o fim último das ciências humanas não consiste em construir o homem, mas sim em dissolvê-lo”.
O conhecimento da alteridade, que representa a tarefa da etnologia, é só a primeira etapa de um itinerário de pesquisa das invariáveis que permitem reabsorver “algumas humanidades em particular em uma humanidade geral”. E, portanto, de “reintegrar a cultura na natureza e, substancialmente, a vida no conjunto das suas condições físico-químicas”. O verdadeiro objeto da polêmica levistraussiana é, com toda a evidência, o humanismo que funda os direitos do homem sob o caráter único e privilegiado de uma espécie viva, a humana, ao invés de ver em tal caráter um caso particular dos direitos de todas as espécies. Mais do que uma profissão de anti-humanismo, trata-se de um ataque frontal à sua declinação antropocêntrica, à metafísica humanística do sujeito. A esse insuportável enfant gaté das ciências humanas, o grande antropólogo opõe uma concepção do homem “que coloca o outro antes do eu, e uma concepção da humanidade que, antes dos homens, põe a vida”. Nesse sentido, observou-se que Lévi-Strauss contribuir em desconstruir “a convicção judaico-cristã e cartesiana segundo a qual a criatura humana é a única a ter sido criada à imagem e semelhança de Deus”.
Se perguntarmos a um índio americano o que é um mito, são muitas as probabilidades de que responda: “uma história dos tempos em que os homens e os animais ainda não eram diferentes”. Essa definição parece de grande profundidade a Lévi-Strauss, porque “apesar das nuvens de tinta levantadas pela tradição judaico-cristã para camuflá-la, nenhuma situação parece mais trafica, mais ofensiva para o coração e para a inteligência do que a de uma humanidade que coexiste com outras espécies vivas sobre uma terra na qual estas últimas compartilham o usufruto e com as quais não pode se comunicar”. Aflora aqui o pessimismo do autor de “Tristes Trópicos” que, à idéia prometéica do homem que sujeita a natureza, substitui uma visão trágica do sujeito e de uma natureza ambos mutilados, porque separados da outra parte de si.
Uma descentralização do sujeito que reflete a idéia de uma relação não-instrumental com a natureza, em que, dizendo com Adorno, esta não é mero objeto, Gegenstand, mas principalmente parceira, Gegenspieler. Já nos primeiros anos 50, com uma sensibilidade ecológica em grande antecipação aos movimentos ambientais atuais, o antropólogo francês denunciava o perigo de um humanismo narcisisticamente antropocêntrico, e por isso mesmo etnocêntrico, que esquece os direitos do ser vivo em nome de uma idéia abstrata da vida, que faz do homem o senhor único do planeta e da sua reprodução, o fim último da natureza. Nesse sentido, Michel Maffesoli pôde aproximar a denúncia levistraussiana da pilhagem do mundo à crítica heideggeriana da devastação da terra por parte da metafísica.
Para Derrida, o próprio nascimento da antropologia foi possível por causa dessa descentralização do sujeito que teve início “no momento em que a cultura européia – e, por conseqüência, a história da metafísica e dos seus conceitos – foi subvertida, expulsa do seu lugar, constrangida, portanto, a não se considerar mais como cultura da referência”. A crítica do etnocentrismo que foi e ainda é a condição mesma dos saberes antropológicos é, para o autor de “A escritura e a diferença”, contemporânea, realmente simultânea à destruição da história da metafísica.
Em um célebre texto dedicado a Jean-Jacques Rousseau, Lévi-Strauss institui uma relação entre a identificação aos outros e exatamente “ao mais ‘outro’ entre todos os outros, o animal”, e a objeção de tudo o que pode tornar aceitável o eu. A objeção, em suma, da transcendência de improviso que fica, em sua opinião, profundamente empossada no humanismo. Em muitas ocasiões, o pai do estruturalismo critica de fato os filósofos, particularmente os existencialistas, por terem operado uma inversão perspéctica, dando prova de uma autêntica perversão epistemológica, além de construir um refúgio para o eu, “no qual o mísero tesouro que é a identidade pessoal tenda a ser protegido e, dado que as duas coisas juntas são impossíveis, eles preferem um sujeito sem racionalidade a uma racionalidade sem sujeito”. Nessa idéia de uma racionalidade sem objeto aflora verdadeiramente aquele ”kantismo sem objeto transcendental”, atribuído a Lévi-Strauss por Paul Ricoeur, a propósito da análise dos mitos com a qual o grande antropólogo ofereceu a formulação mais radical das suas teses sobre o acordo existente entre cultura e natureza, entre espírito e mundo.
E àqueles filósofos que o acusam de ter abolido o significado dos mitos e de ter reduzido seu estudo à sintaxe de um discurso que não diz nada, Lévi-Strauss, nas últimas páginas de “O homem nu”, reserva uma resposta, por assim dizer, peremptória. As mitologias, afirma, não escondem nenhuma verdade metafísica nem ideológica, mas, em compensação, nos ensinam, por um lado, muitas coisas sobre as sociedades que as transmitem e, por outro, nos oferecem o acesso a certas modalidades operativas do espírito tão estáveis no tempo e recorrentes no espaço que se podem considerar basilares. E conclui com uma suprema depreciação: “longe de ter abolido o seu sentido, a minha análise dos mitos de um punhado de tribos americanas trouxe-lhes mais significado do que aquilo que se encontra nas banalidades e nos lugares-comuns a que se reduziram, há cerca de 2.500 anos, as reflexões dos filósofos sobre a mitologia, com exceção daquelas de Plutarco”.
Muitos criticaram o estruturalismo por sua posição anti-histórica, mas, na realidade, Lévi-Strauss sempre procurou distinguir claramente a história, à qual atribui uma importância extraordinária, da filosofia da história a la Sartre, uma pseudo-história que, em cada versão, leiga ou confessional, evolucionista ou historicista, constitui uma tentativa de suprimir os problemas postos pela diversidade das culturas, para fingir que reconhece a todos plenamente. Tal filosofia da história – que a Lévi-Strauss parece ser da mesma natureza do mito – deriva da fé bíblica em um cumprimento futuro e termina com a secularização do seu modelo escatológico, que se transforma na teoria do progresso.
O vício constitutivo de tal filosofia, que dirige rumo ao futuro o conceito clássico de istorein e transforma a história do passado em previsão do futuro, um futuro objeto de uma espera fideísta. Nesse sentido, Lévi-Strauss não se limita a rejeitar a acusação de anti-historicismo, mas, o que mais importa, reivindica à antropologia um modo todo próprio de interrogar os materiais históricos, com aquela atenção aos fatos detalhados da vida cotidiana que faz dos etnólogos os “trapeiros” da história, aqueles que remexem nas suas lixeiras.
É uma real e verdadeira heterologia a colocada em prática por Claude Lévi-Strauss, capaz de nos fazer colher o que há de nós mesmos nos outros e o que se pode encontrar dos outros no fundo de nós mesmos. Aquele fundo que nos faz todos parentes, porque todos diferentes, e que alguns continuam chamando de humanidade.
O texto acima é de Marino Niola, publicado no jornal italiano La Repubblica, de 21/11/2008. A tradução é de Moisés Sbardelotto para o portal do Instituto Humanitas da Unisinos.