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Surf no lixo contemporâneo: a que ponto chegamos! E que mundo deixaremos de herança para Keith Richards?

sábado, 26 de fevereiro de 2011

A economia do desperdício



"Comprar, Descartar, Comprar - A história secreta da Obsolescência Programada".

Que tal uma lâmpada incandescente que funciona desde 1901, quando hoje elas duram menos de mil horas? A proposta - durante a crise de '29 - de tornar obrigatória a obsolescência programada em nome da defesa do pleno emprego.

As grandes alavancas da sociedade de consumo/desperdício: a publicidade, o crédito e a obsolescência programada. Impressoras domésticas com um chip programado para "matá-la" depois de um certo número de cópias. O mega cemitério de gadgets descartados criminosamente no litoral de Gana.

A Natureza não produz resíduos, mas nutrientes. Não é hora, pois, de imitá-la?

Hoje, consumimos 26 vezes mais do que no tempo de Marx, mas será que somos 26 vezes mais felizes?

Veja o vídeo catalão de 52 minutos e responda você mesmo.

Vídeo pescado do blog Sátiro-Hupper

Um clássico do punk



Com a banda "Dez mil maníacos", o sucesso de Patti Smith, de 1978.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O erro grosseiro e rombudo da presidenta Dilma


Para registro

A visita e os encômios retóricos da presidenta Dilma Rousseff ao grupo Folha/Ditabranda dias atrás – por ocasião dos 90 anos da empresa midiática – foi de dar náusea. O respeitado jornalista Luis Nassif, ontem em seu blog, tentou fazer uma interpretação cerebral da intenção e gesto dilmista. Só conseguiu ser exatamente cerebral. É preciso de fato uma ginástica mental para explicar como Dilma abriu mão de ser presidenta para admitir que é presidente, como insiste a Folha diariamente, numa espécie de queda de braço surda (e tola) com o Planalto e a vontade manifesta da própria presidenta.

Não é preciso lembrar, seria motivo de mais náusea, o rosário de desaforos, molecagens e injustiças que o jornal da família Frias tem dedicado à Dilma Rousseff, de forma sistemática, persecutória e para bem além dos objetivos meramente jornalísticos, mas sobretudo políticos e eleitorais.

Não vou dar cambalhotas mentais,especular motivações subjetivas e geniais, como o nosso Nassif. Prefiro a singeleza da linha reta, e atribuir o erro grosseiro e rombudo da presidenta Dilma à entourage que a cerca e informa. Por exemplo, o mais notório deles é o ministro Antonio Palocci, um quinta-coluna do velho e quebrado regime neoliberal-corporation aboletado no centro estratégico da República planaltina. Pelos acontecimentos dos últimos 60 dias, já se vê que esse sujeito está dando as cartas e jogando de mão. Perigosíssimo!

Até quando, não sabemos.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Vizinhança exemplar

Daniel Paz e Rudy

A virtude dos dominantes e a virtude dos dominados


Jessé Souza e a desigualdade social no Brasil: sobre o conhecimento e a emancipação

                                                                                  "Oh! Gentilshommes, la vie est courte. Si nous vivons, nous vivons pour marcher sur la tête des rois."

                                                                     Oh! Gentis homens, a vida é curta. Se nós vivemos, nós vivemos para arrancar a cabeça dos reis.

(Shakespeare)


Para seguir o conselho de Shakespeare e arrancar a cabeça dos reis é preciso, no entanto, primeiramente apontar o constrangimento da sua nudez, e para isso, o saber é a única arma dentro do universos de possíveis do homem. O conhecimento é o pressuposto moral da liberdade. Condição sine qua non do desejo de emancipação do indivíduo. Não há nada mais revolucionário do que a busca pela emancipação e pela verdade.

A verdade desnuda, desimpedida, liberta dos grilhões culturais que cegam e nos impedem a apreensão da lógica dos processos sociais – no nosso caso, há de se dizer, esses grilhões culturais tomaram a forma de uma hierarquia moral míope, que além de míope é também cristã, heterossexual, machista, bélica, patrimonial, capitalista, individualista e que vem na esteira de toda a série de preconceitos e visões de mundo trazidas pelo homem europeu na empreitada colonial. Visões de mundo essas que terminaram por lograrem-se vitoriosas nos trópicos e em larga medida ainda ditam a maneira pela qual os homens tratam uns aos outros por aqui.

Como um farol que ilumina uma baía à noite e sinaliza a rota certa aos navios que vêm de alto mar, as ciências humanas já foram ferramentas mais importantes no processo de emancipação. Hoje, com a burocratização do capitalismo, que Weber já previa no início do século XX, elas parecem desencontradas nos corredores de um sistema acadêmico engendrado por uma lógica neoliberal, que patenteou o conhecimento e que teimosamente insiste em transformá-lo em um mero cálculo. Com o intuito de dar fim ao ócio – esse pesadelo do capitalismo – a lógica mercantil de ampliação de capitais deu luz a um sistema acadêmico que nos quita a criatividade e enquadra o pensamento.

Há milhares de teses e dissertações que colaboram para o acréscimo de pontuações dos programas de pós-graduação e a formação de mestres e doutores, mas que não necessariamente colaboram na melhoria do nosso debate público. As idéias, pobres em geral, reproduzem o que já foi dito: com uma roupagem acadêmica e um “charminho crítico” fazem muitas vezes a cabeça de parcelas importantes da população e dão a sustentação científica necessária para argumentos dos mais preconceituosos e conservadores da sociedade.

A modernização seletiva

No entanto, há ainda esforços que buscam desvendar as grandes escuridões que pairam no entendimento sobre nós mesmos. Desde o início dos anos 2000 o sociólogo mineiro Jessé Souza vem desenvolvendo uma série de pesquisas que propõem uma ruptura com a tradição do pensamento social brasileiro – tradição que o autor qualifica como ensaística e de uma sofisticação heurística duvidosa – e vem inovando criativamente – contundentemente, há de se dizer – a interpretação sobre a desigualdade no Brasil.

Em um dos seus primeiros livros sobre a especificidade do dilema brasileiro (“A Modernização Seletiva: Uma Reinterpretação do Dilema Brasileiro” Brasília: UNB, 2000.) Jessé empreende uma revisão teórica das contribuições mais importantes de Weber, Elias, Habermas e Taylor como que apresentando as armas teóricas, e logo em seguida apresenta o processo de modernização no Brasil como uma variação singular do desenvolvimento específico ocidental.

Ambicioso e cirúrgico, Jessé vai direto ao ponto: sugere que toda a tradição sociológica brasileira, que tem em seus pais fundadores a tríade Sérgio Buarque de Hollanda, Raimundo Faoro e Gilberto Freyre legou ao país o essencial do imaginário nacional. O de uma sociedade essencialmente plástica, personalista, patrimonial onde o capital social é a ferramenta por excelência da navegabilidade social que fundamenta o nosso pré-modernismo. Noutros termos, uma sociedade onde a herança ibérica colonial deitou raízes tão fundas que deu o tom do nosso próprio processo de modernização.

O Estado patrimonial é, em alguma medida, a práxis do catolicismo familiar baseado na preferência dos afetos que impede que a burocracia se racionalize e que o Estado horizontalize as relações entre os indivíduos e, portanto, a espinha dorsal da nossa formação social é defeituosa devido a influência de uma suposta herança portuguesa transoceânica e atávica que logrou se institucionalizar na Colônia. Todos os problemas da sociedade brasileira, portanto, estariam vinculados de maneira mais ou menos drástica a essa herança maldita, que contaminou tanto a burocracia que privatiza o Estado em seu próprio benefício e não consegue horizontalizar as relações, quanto os indivíduos que acreditam que a forma legítima de ascensão é a partir da flexibilização da lei e das normas, tornadas possíveis pela presença de um capital social que invade e faz – para os amigos - do impossível, possível.

Jessé sugere que o código valorativo dominante que se institucionalizou no Brasil é o código do individualismo moral ocidental. É o individualismo como pressuposto moral de todas as experiências e realizações culturais da modernidade. Noutros termos, só pode ser considerado legítimo e valorável (em termos de posturas, atitudes, comportamentos e leis) aquilo que seja justificável segundo as normas que regem o código valorativo do individualismo moral ocidental.

Esses valores, tornados corpo nos mais importantes espaços de socialização e afirmação individual no capitalismo contemporâneo – Estado e mercado – acabam por dividir os indivíduos mesmo antes do seu nascimento. Há, por um lado, os benefícios do mercado – tido como reino das virtudes, espaço meritocrático por excelência – aos indivíduos que lograram aderir à economia emocional burguesa, e por outro, a condição de subgente aos marginalizados de uma modernização seletiva.

A “dignidade” – que só é possível a partir da adesão a uma determinada estrutura psicossocial, muitas vezes irrefletida e no plano do inconsciente – parece se tornar o essencial do reconhecimento social infra e ultrajurídico, em outros termos, é ela que permite a eficácia da própria noção moderna do que é ser um cidadão.

A modernização seletiva só o é seletiva porque não logrou instituir no Brasil a todos os indivíduos as condições básicas para o alcance da cidadania: a economia emocional burguesa. Ou seja, a disposição para o trabalho, a capacidade de raciocínio calculista, a previsibilidade, a autodisciplina, o pensamento prospectivo, etc.

A grande questão é que as diferentes classes estão aparelhadas de maneira estruturalmente diferentes para o alcance dessas formas típicas de disposição psicossocial burguesa orientada para o trabalho, e, portanto, as possibilidades de se alcançar a cidadania são invariavelmente desiguais. Tampouco se viu no país, argumenta Jessé, a tendência à equalização. As profissões legítimas continuam sendo as que demandam uma maior familiaridade com a cultura legítima, e, portanto, continuam sendo privilégio de uma determinada classe, coincidentemente aquela que está em posse, afortunadamente, de maior capital econômico.

Os valores modernos e ocidentais como a predisposição ao trabalho e a adesão à economia emocional burguesa são os valores dominantes que ditam o tom das hierarquias sociais, fazendo com que a desigualdade apareça aos dominados como algo natural, fruto de um acaso desafortunado ou do próprio fracasso pessoal. E por isso, ainda mais eficaz, porque opera no plano simbólico e pressupõe um acordo tácito onde todos os indivíduos são constantemente avaliados.

A invisibilidade da desigualdade brasileira e a ideologia espontânea do capitalismo

Em “A invisibilidade da desigualdade brasileira” lançado pela editora da UFMG em 2006, o autor continua chamando atenção para a seletividade do nosso processo de modernização bem como os efeitos da importação – por parte da periferia – de modelos institucionais que não são resultados das suas próprias práticas sociais. Sendo assim, Jessé se vale do que há de melhor em termos de teoria social: o conceito sócio-cultural de classe de Pierre Bourdieu, a tematização do self pontual na modernidade de Charles Taylor e a teoria do reconhecimento de Axel Honneth para propor uma macroleitura sobre o Brasil.

A partir da pesquisa empírica com diversas pessoas em diversos lugares do Brasil, Jessé remonta a idéia de que o compartilhamento de uma determinada estrutura psicossocial passa a ser o fundamento implícito do reconhecimento social. O “não-reconhecimento” definido pela ausência da economia emocional burguesa -demandada pelo trabalho útil e competitivo - gera o não-reconhecimento público, e termina por levar também ao não-reconhecimento na esfera existencial, que lança milhões de brasileiros à situação de ausência de auto-estima individual, ao não-valor existencial fruto de um descompasso em relação ao seu lugar na “ética do desempenho”.

O autor ataca contundentemente os teóricos conservadores que insistem em sugerir classes sociais de acordo tão-somente com o nível de renda das famílias. No melhor estilo da sociologia crítica chama a atenção para a necessidade de se levar em consideração fatores que fogem da ordem econômica do indivíduo e que estão calcadas nas dimensões existenciais, morais e políticas, que muitas vezes remetem ao plano do subconsciente.

É no mínimo estranho considerar de uma mesma classe, pretensamente denominada classe “C”, um professor universitário no início de carreira, que possui alto investimento em capital cultural, gosto pelo consumo de bens simbólicos, e uma relação familiarmente estimulada com a cultura legítima – tida quase que como natural porque irrefletida e herdada afetivamente pelos pais desde a mais tenra idade– e, por exemplo, um trabalhador qualificado da indústria, que guiado por uma lógica ascética de trabalho duro ao longo da vida ascendeu socialmente mas que conserva vivamente as disposições herdadas de uma vida dada ao trabalho e com pouco tempo para “as atividades do espírito”.

Em outros termos: classe deve ser um conceito sociocultural que possa aglomerar os indivíduos de acordo com a sua práxis, posição no mundo e capacidades, muitas vezes inconscientes, de auto-reflexão e de enquadramento em uma estrutura social que transcende a eles e não tão-somente com a quantidade de dinheiro que cada um recebe ao fim de cada mês de trabalho.

O argumento de Jessé é que esses operadores simbólicos que, juntos com a moralidade moderna do trabalho útil e a constante avaliação dos indivíduos em termos de adaptabilidade ao trabalho produtivo acaba por construir um tipo de desigualdade muito afinada com o discurso liberal do Estado Democrático de Direito. Os próprios dominados parecem acreditar que as razões das suas misérias morais e existenciais estão nos seus próprios fracassos cotidianos.

A luta de classes já não é mais pautada pelo seu lugar no sistema de produção, mas sim pela oposição entre alma/razão – lugar por excelência da virtude dos dominantes – e o corpo – lugar das virtudes dos dominados. O próprio Estado e mercado que monopolizam virtualmente as chances de realização de vida de qualquer indivíduo decidem a partir do mito da meritocracia e da nova “ideologia espontânea do capitalismo”, quem são os classificados e os desclassificados.

Privilegia os indivíduos que atendem às demandas implícitas do Estado e do mercado com bons salários, com um bom status ocupacional e resguardam o desprestígio e o desrespeito social aos demais. O valor relativo dos indivíduos é medido de acordo com a sua capacidade ao trabalho útil – voltamos ao ócio, inimigo mortal da ideologia meritocrática – produtivo (porque disciplinado) e que não se restringe só a postura no trabalho.

A práxis do indivíduo moldado pelo mercado capitalista transforma em corpo as prescrições dos imperativos do mercado, e inscreve no corpo um determinado savoir-faire que vem à tona na maneira de andar, de falar, etc., e que distingue aqueles que são suporte de uma ética do desempenho e os que não o são. Os que servem para ascender no reino das virtudes que o mercado oferece e os que servem para ser subgente, ou como chamará Jessé posteriormente para serem “ralé”.

Fica mais do que evidente, portanto, que a desigualdade social brasileira muito antes de se relacionar tão somente ao capital econômico distribuído de maneira imoralmente desigual no Brasil está muito mais relacionada a determinadas idéias. Idéias essas que vieram na esteira de um processo de modernização às avessas, que acabou por eleger a adaptabilidade ao trabalho produtivo como parâmetro de valor diferencial entre os indivíduos.

O que existe hoje é um acordo tácito acerca do valor diferencial dos seres humanos que os hierarquiza de acordo com uma lógica do desempenho que estimula e premia a capacidade do desempenho objetivo e que por outro lado legitima o acesso diferencial permanente as chances de vida e a apropriação de bens escassos. Há de se notar nesse momento que a corrida para a apropriação de bens culturais e logo, de uma situação mais confortável na trama social já começa desigual antes mesmo do nascimento. Contrapondo-se irreconciliavelmente com a tradição sociológica brasileira que elege o capital social como a forma por excelência de navegabilidade social Jessé afirma – na esteira de Bourdieu - que o âmago da desigualdade está no capital cultural e econômico gerido pela família. São esses capitais que serão relevantes para a construção de um “corpo” habituado às imposições do mercado que irão estruturar uma determinada práxis – desde o sistema de crenças até o modo de caminhar e se portar – que vai alçar o indivíduo a uma situação de distinção ou de dominação no campo social e político.

São esses capitais, o cultural – a familiaridade com a cultura legítima que sugere uma determinada forma de pertencer e atuar no mundo - e o econômico – que possibilita o poder de pagar por viagens, cursos, boas condições de moradia e de existência -, portanto, que irão definir a posição do indivíduo na hierarquia social.

São eles que, estando em consonância com os padrões da hierarquia ocidental, darão o tom da avaliação pela qual os indivíduos são impostos diária e implicitamente em todos os segmentos de realização da sociedade e alocarão os seres humanos em posições privilegiadas ou não na luta pela apropriação diferencial dos bens materiais e simbólicos. Alvo último de todas nossas lutas diárias.

Artigo de Fernando Marcial Ricci Araújo, graduando em Ciências Sociais da UFRGS.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O mito do gauchismo-pardal


Todo mito moderno é um roubo e uma ocupação: rouba a história e ocupa a imaginação do homem abstrato; devolvendo-lhe um arremedo de identidade. O mito do gauchismo, emalado nos arreios do tradicionalismo estancieiro, foi duramente criticado por Érico Veríssimo em “O tempo e o vento”, através do personagem Floriano Cambará.

“Sentido! – disse ele a um negro,
queres passar por bonito,
e és no entanto o mais maldito
que se encontra em todo o pago;
um favor é o que te trago,
quando ao serviço te admito”.

               (“Martin Fierro”, de José Hernández, publicado em 1872. Aqui, Martin relata o tratamento dado aos peões nas estâncias do pampa. Canto XXV, 936.)


Jorge Luis Borges, um dos mais imaginosos escritores da literatura universal, tem um conto breve e trágico chamado A intrusa; tão breve, quanto denso de significações – uma das marcas da escrita borgeana. A trama é simples e direta: no final do século 19, dois irmãos, muito unidos, que “foram tropeiros, carneadores, ladrões de gado e, uma ou outra vez, trapaceiros”, começam a compartilhar dos serviços domésticos e sexuais de Juliana Burgos, uma morena de olhos rasgados e sorriso fácil. Na alma xucra dos irmãos brota o “amor monstruoso”, e “isso, de algum modo, os humilhava”. Então, vendem Juliana Burgos (“que era uma coisa”) a um prostíbulo; mas cada um, escondido, continua a freqüentá-la. “A infame solução havia fracassado; os dois haviam cedido à tentação de fazer trapaça”. Caim andava por ali. À intrusa Juliana Burgos, “que trouxera a discórdia”, só restava a morte. A sua eliminação é uma forma insana de reconciliá-los, na obrigação de esquecê-la.

Juliana Burgos

A metáfora borgeana, nesse caso, simboliza a intolerância do narcísico para com o Outro. O indesejado interpõem-se frente às imagens que desejamos ver ou ser. O narcisismo quer mais do mesmo – daí a sua intransigência para com o diferente. O diferente precisa ser eliminado. As Juliana Burgos precisam morrer. Suas existências são motivo de medo e sofrimento para a arranjada e sempre precária normalidade dos iguais.

A evocação borgeana não é fortuita. Senão, vejamos: no Rio Grande do Sul, os formuladores e militantes políticos do tradicionalismo gauchista tem medo de Juliana Burgos. Tem medo do diferente. Por isso querem impor a ordem unidimensional da estância. Ramiro Frota Barcellos, na obra Rio Grande, tradição e cultura (1915), é de uma clareza solar quanto aos propósitos delirantes do tradicionalismo estancieiro: “O que agora se verifica, mercê do atual movimento tradicionalista, é a transposição simbólica dos remanescentes dos ‘grupos locais’, com suas estâncias e seus galpões para o coração das cidades. Transposição simbólica, mas que fará sobreviver, na mais singular aculturação de todos os tempos, o Rio Grande latifundiário e pecuarista”. O arrebatado Ramiro manifesta aqui uma violência latente, uma mentalidade-pardal, uma agressividade incomum na imposição de valores míticos que ele quer que sejam dominantes na região.

O tradicionalismo estancieiro de espetáculo constitui-se, a rigor, em um mito; um mito que trabalha para legitimar-se (e tornar-se exclusivo) como fala, hábitos, costumes, valores e discursos, através dos métodos da naturalização. Em sociedades escassamente letradas, como o Rio Grande do século XIX, o discurso do poder tem trânsito e capilaridade social difícil, e o grau de inteligibilidade é próximo do zero. Como fazer para legitimar o mando e, sobretudo, os valores hegemônicos de elites econômicas e culturais num cenário humano tão tosco e refratário? “Ele teria de ser feito – assinala José Murilo de Carvalho – mediante sinais mais universais, de leitura mais fácil, como as imagens, as alegorias, os símbolos, os mitos”.

Esses “sinais mais universais”, agora, são compreendidos e assimilados por todos. E de forma lenta, acumulativa e constante vão se naturalizando no senso comum das populações, sejam letrados ou iletrados. Não foi Mirabeau que afirmou ser necessário “apoderar-se da imaginação do povo”? Assim, o mito moderno é um roubo e uma ocupação: rouba a história e ocupa as mentalidades, em troca empresta-lhe um simulacro de identidade social. A mitologia é um processo lento, mas compensado por eficácia imagética, democratização horizontal dos discursos, porosidade étnica, nivelamento cognitivo, abolição do conflito, universalidade social, ocultamento do propósito original e seu caráter de sujeição/disciplinamento de classes, aparenta neutralidade política, e, o mais importante, naturalização simbólica de tudo que faz parte do universo mítico. Exemplo: “é da natureza do gaúcho ser assim, bravo, indômito, grosso e rebelde”. Essa é a típica fala do mito: um constructo, um arranjo manipulatório com a moldura do Natural, visando objetivos de normalização, sujeição e disciplinamento social. O gaúcho (em abstrato) não é natural, assim como o social igualmente não é natural. Tanto o gaúcho coletivo, abstrato, quanto o cidadão conceitual são inventivas construções histórico-sociais. Ambos estão inscritos numa ordem cultural – que é histórica – que pode e deve passar pelo crivo de amiúdes revisões críticas, especialmente se estiverem a serviço de objetivos dissimuladamente políticos, comerciais ou falsamente culturais, como é o caso do gauchismo-pardal. As máscaras sempre caem, mas pode-se abreviar essa fatalidade. Roland Barthes diz que “a função do mito é transformar uma intenção histórica em natureza, uma contingência em eternidade”. “Passando da história à natureza – prossegue Barthes – o mito faz uma economia; abole a complexidade dos atos humanos, confere-lhes a simplicidade das essências, suprime toda e qualquer dialética, qualquer elevação para lá do visível imediato, organiza um mundo sem contradições, porque sem profundeza, um mundo plano que se ostenta em sua evidência, cria uma clareza feliz: as coisas parecem significar sozinhas, por elas próprias”.

O mito é naturalizado

No mito, a natureza das coisas é auto-explicada e, por isso mesmo, tautológicas, onde se define o mesmo pelo mesmo: “gaúcho é gaúcho; sendo gaúcho você é naturalmente tradicionalista; sendo tradicionalista você é naturalmente gaúcho”. E estamos conversados, permanecemos prisioneiros de uma sentença irrecorrível. Quem estiver fora dessa perspectiva estreita está fora do mundo. É o diferente que precisa ser eliminado. É a temida Juliana Burgos. Sartre diz que a tautologia “é um duplo assassinato: mata-se o racional porque ele nos resiste, mata-se a linguagem porque ela nos trai”. Além disso, a tautologia (muito presente no discurso gauchista) protege-se covardemente atrás do “argumento de autoridade” ou, como diz o senso comum, o ultimato vil do “carteiraço”: “é assim porque é assim”; “porque é, e ponto final”, “eu sei porque sou fulano de Tal”. Ou, o que é pior: “eu sei porque sou seu Pai”. Barthes diz que a tautologia é uma recusa à linguagem, e toda recusa à linguagem é uma morte: “a tautologia fundamenta um mundo morto, um mundo imóvel”. Os assassinos de Juliana Burgos nunca dialogam com ela, nem a chamam pelo nome; uma “coisa” não merece razão e sensibilidade, merece o silêncio, a morte e o repasto do carancho rapineiro.

O processo mítico começa a desenvolver-se – assegura Raoul Girardet – “a partir do momento em que se opera na consciência coletiva o que se pode considerar como um fenômeno de não-identificação”. O mito trata, então, de fornecer uma postiça identidade imagética às sensibilidades humanas. Como as ilusões estão todas mortas e enterradas, o mito as substitui por imagens de efeito placebo face às inquietações da modernidade avançada.

Lacan diz que “o faltante é estruturante”. Pois, o fenômeno do tradicionalismo narcisista, em que pese a sua simbologia simplória e sem saliências, encerra profundas repercussões na alma popular. O mito por ser despolitizante; opera uma ponte entre o passado e o futuro, sem tocar no presente, porque aí habita a política. O futuro será iluminado e glorioso como o passado na versão estancieira, e seleciona imagens identitárias, espelhos dourados ao homem-multidão. Não somos como os animais, que se alimentam do imediato; a alma humana se alimenta – sobretudo – do faltante, do sonho, da projeção dos contornos do futuro anunciados pelos filósofos, profetas, demiurgos e utopistas. A matéria dos sonhos é feita de retalhos mesclados de utopia, memória, esquecimento, superstição, consciência, inconsciência, religião, encantamento, frustração, satisfação, magia, ciência, lucidez e loucura. O “desencantamento do mundo” (Weber) nunca se completa, novos encantamentos modelam-se nos rescaldos da história, novos mitos surgem para roubar-nos a humanidade, a imaginação e a autonomia. Estudos em neurologia informam que os dois hemisférios do cérebro humano guardam, cada qual, a sua própria sintaxe de pensamento e expressão lingüística; de um lado, o pensamento e a fala simbólica, pré-lógica, mágica (de que se nutre o mito); de outro, se sobressai o pensamento e a linguagem conceitual e lógica (de que se nutre a ciência). Isso propicia o retorno do velho – mas sempre atual – tema binário da alienação e emancipação. Seja que categoria ou linha epistemológica estivermos tratando – lenda, tradição inventada, comunidade de imaginação, mito, má consciência, razão instrumental, ideologia, produção de verdades, etc. –, tudo se sintetiza dialeticamente no tema da alienação/reificação do homem sem qualidades. O mito é uma das tantas moradas da alienação e da heteronomia.

Quem tem medo de Floriano Cambará?

A história do Rio Grande foi contada por um sem-número de historiadores, cientistas sociais, etnógrafos, antropólogos, etc., muitos autênticos, alguns impostores. Mas, é na literatura vertida em arte, pela imaginação poética de Érico Veríssimo (1905-1975)., que ela encontra o seu relevo mais saliente e expressivo. A historiografia é feita de memória e esquecimento; a memória dos vencedores e o esquecimento dos vencidos. Érico não esqueceu de ninguém, nos mais de dois séculos do mosaico humano rio-grandense que ele narrou.

Floriano Cambará é um personagem do grande escritor brasileiro, que, num exercício de metalinguagem, faz de Floriano o autor do romance “O tempo e o vento”, que abarca o período de 1745 à década de 1950. É um segundo eu do escritor, um álter ego, que ele dá vida nas mais de duas mil páginas da homérica narrativa ficcional sobre o Rio Grande do Sul – um Estado dividido em dois, social e economicamente; a metade Norte, onde o módulo rural é minifundiário, tem padrões socioeconômicos relativamente elevados; a metade Sul, onde a matriz produtiva é o latifúndio, o desenvolvimento humano é degradado, não houve industrialização e as poucas cidades são antigas, bonitas e decadentes.

No dia 17 de dezembro de 2005, Érico, se estivesse vivo, completaria 100 anos. Está, pois, aberta a temporada de debates sobre a obra desse escritor notável que ajudou a interpretar parte da complexidade, riqueza cultural, polissemia e polifonia do Rio Grande em que nasceu, sem nunca agasalhar-se nos pelegos do tradicionalismo piolho-de-estância. Sacrificam-se sozinhos, como perdiz no arame, os que suspeitam que “O tempo e o vento” seja mais uma tediosa obra regionalista de filiação passadista. O romance é um vasto e febricitante painel, em alto e baixo relêvo, das humanidades e desumanidades que o solo meridional experimentou na sua curta e densa história. “O tempo e o vento” não é uma narrativa plana e lisa, é sim uma narrativa com História (simbolizada pelo Tempo, pelas mulheres fortes, homens nem tanto, famílias, lutas pelo poder e pela vida) e com Natureza (simbolizada pelo Vento, pelas coxilhas, pelo pampa e pela terra). Terra essa que começa, pouco a pouco, a sair da natureza para entrar na história, através da apropriação privada, a estância, o latifúndio, os arames, o gado chimarrão, o charque, as vilas, as revoluções, a cidade de Santa Fé e o mítico Sobrado – o cenário privilegiado da intrincada trama de Érico.

Os trovões da razão crítica

Floriano Cambará é um crítico afiado do tradicionalismo gaucheiro, bem como outros personagens do grande romance. É ilustrativo o diálogo áspero que travam Terêncio, o latifundiário, de um lado, e Floriano, o escritor, de outro.

“É estranho – observa Terêncio – que logo um escritor aí esteja a desprezar, a atacar os símbolos, as metáforas, os mitos. Como seria possível gerarem-se e manterem-se civilizações sem o uso de símbolos? Como poderia o homem transmitir a cultura aos seus descendentes, através dos séculos, sem os símbolos?”

“Estou absolutamente de acordo com o senhor – replica Floriano. – Como poderia haver arte literária sem símbolos? Como poderia existir arte poética sem palavras, símbolos ou metáforas? Mas quero que me entendam... A linguagem figurada pode ser perfeitamente inocente, além de bela e necessária. Mas o perigo começa quando o povo toma ao pé da letra, como verdades absolutas, os símbolos e metáforas políticas e sociais engendrados de acordo com o interesse imediato de quem os emprega.”

Lá fora, para sugerir tensão à narrativa, uma noite chuvosa e com trovoadas estremece molhando Santa Fé. Parece que os elementos celestes querem intervir na peleia verbal.
“Terêncio parece estonteado.

- Mas é assustador! – exclama. – Os senhores destroem tudo, não acreditam em nada e em ninguém! Se nós os gaúchos jogamos fora os nossos mitos, que é que sobra?

Floriano olha para o estancieiro e diz tranqüilamente:

- Sobra o Rio Grande, doutor. O Rio Grande sem máscara. O Rio Grande sem belas mentiras. O Rio Grande autêntico. Acho que à nossa coragem física de guerreiros devemos acrescentar a coragem moral de enfrentar a realidade.

- Mas o que é que o senhor chama de realidade?

- O que somos, o que temos. E não vejo por que tudo isso deva ser necessariamente menos nobre, menos belo ou menos bom que essas fantasias saudosistas do gauchismo com que procuramos nos iludir e impressionar os outros”, completou Floriano Cambará.

Roland Barthes se estivesse ali no sobrado de Santa Fé, naquela noite barulhenta e molhada, certamente, comentaria sobre o debate do mito gauchista: “A sua clareza é eufórica!”


(*) Por que gauchismo-pardal? Ora, o pardal é um pássaro exclusivista, quando se instala em uma querência acaba expulsando todos os demais passarinhos da região. Assim é a cultura gaucheira, depois que se impôs como a principal (e única) cultura sulina, inibiu as demais manifestações do riquíssimo mosaico étnico-cultural do Rio Grande do Sul.  


Artigo de Cristóvão Feil, sociólogo. Publicado originalmente aqui.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Que é isso, deputado?



Pajelança, no primeiro dia?

Culto religioso em pleno Congresso Nacional?

O presidente de um poder republicano não pode, não tem o direito de participar ou deixar que terceiros participem de ritos místicos-religiosos no recinto de uma instituição pública.

Reverência, oração, preito de natureza transcendental são atos exclusivos da esfera privada dos indivíduos. A um homem público no exercício de suas funções e no espaço público é vedado práticas como a que se vê na fotografia. Que vá, então, para um templo ou terreiro honrar e bendizer as suas divindades.

No Congresso, não!

Chango Spasiuk, misionero argentino



Observem a qualidade deste vídeo em HD, tanto em imagem, quanto em áudio, sem esquecer o próprio Chango e seus músicos.

Produzido pela televisão pública argentina. Quando chegaremos a este nível, no Brasil e no RS?

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