Você está entrando no Diário Gauche, um blog com as janelas abertas para o mar de incertezas do século 21.

Surf no lixo contemporâneo: a que ponto chegamos! E que mundo deixaremos de herança para Keith Richards?

domingo, 30 de janeiro de 2011

Caiu - de podre - uma ditadura fantoche



Fantoche dos Estados Unidos/Israel. O próximo abalo é na dinastia Saud, da Arábia Saudita, no poder desde a década de 1920.

O nome do cara é Aloe Blacc



Toma nota deste nome, prezado leitor, estimada leitora.

Sugiro - é imprescindível mesmo - o uso do fone de ouvido, para curtir melhor a música.

Editorial da década de 50




Zero Hora usa argumentos do tempo da Guerra Fria

"Não podem estes conselhos, portanto, ser relacionados com as falaciosas experiências de democracia direta, de inspiração comunista, que invariavelmente derivam para o autoritarismo. Tais tentativas, tão ao gosto de governantes populistas do continente, não apenas vêm se mostrando ineficazes para a formulação de políticas públicas que efetivamente atendam os interesses de todos os setores da sociedade como também geram indesejáveis conflitos de classes".

Trecho do risível editorial de Zero Hora (grupo RBS), edição de hoje.

Que um escritor menor e periférico use argumentos do tempo da Guerra Fria (década de 50 até 1989) para escrever suas novelas encalhadas, tudo bem. Mas um meio de comunicação - como ZH - que se quer moderno, up to date, inserido no contexto (como se dizia nos anos 70), etc., não é possível admitir.

Esse pessoal - RBS e quejandos - é muito ruim.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Egito insurgente

Daniel Paz & Rudy


Num ato chamado de "sem precedentes" por alguns especialistas, o governo egípcio cortou as redes de internet e telefones celulares do país, uma tentativa de evitar que fossem usadas na organização de protestos.

"Praticamente todos os endereços de internet do Egito estão inacessíveis mundialmente", disse James Cowie, da empresa Renesys, que monitora a transmissão de dados da rede.


"Foi uma ação sem precedentes na história da internet. O governo parece ter dado ordem para os provedores apagarem suas conexões internacionais", disse.


O bloqueio só se compara a ações do governo chinês, como a suspensão dos acessos à internet na região de Xinjiang após protestos em 2009. No Egito, no entanto, foi o país inteiro emudecido.


Os quatro principais servidores do país foram desligados pouco depois da meia-noite de ontem (20h de anteontem em Brasília), afetando 20 milhões de pessoas.


Segundo o jornal britânico "The Guardian", 88% da internet egípcia parou de funcionar. Apenas um provedor internacional continuou em rede.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Ela é cantora e compositora



A ótima Eliza Doolittle.

A Disneylandia de bombachas



A identidade que o senso comum registra do gaúcho é uma das tantas tradições inventadas, pelo mundo afora. O mito gaúcho é uma narrativa fixa de três combinações histórico-culturais: o republicanismo farroupilha, um comtismo crioulo, e um rústico positivismo estancieiro. A vulgarização fetichizada disso é o que chamamos de “Disneylandia de bombachas”.



                      “Quando se corre muito, há que parar e esperar pela alma” (Provérbio dos índios Guarany, antigos habitantes do Brasil meridional)





Max Weber dizia que ninguém nasce religioso, mas torna-se religioso. Simone de Beauvoir sustentou que não se nasce mulher, mas torna-se mulher. Parafraseando os dois, diremos que, igualmente, ninguém nasce gaúcho, alguns se tornam gaúchos.

O gaúcho, segundo a mitificação tradicionalista, é o cálculo acumulado de uma imposição cultural inventada e cevada no ideário rude de uma certa elite do Rio Grande do Sul. Mendes Fradique escreveu, no início do século XX, a História do Brasil pelo método confuso, pois a sabedoria “gauchista” tentou arremedá-lo contando a história do Rio Grande do Sul. A confusão, e não o método, inspirou a plataforma do tradicionalismo de fancaria.

Os primeiros esboços desse constructo mental que procura representar o tipo ideal dos indivíduos nascidos na região mais meridional do Brasil foram dados por jovens líderes políticos republicanos, ainda no final do século XIX, todos seguidores do positivismo de Auguste Comte. Júlio Prates de Castilhos, fundador do Partido Republicano Rio-grandense (1882), foi um dos que passaram a fazer uma lenta e continuada apropriação dos despojos da Revolução Farroupilha (1835-1845). A modernização conservadora que propugnavam, e depois levaram a efeito na Província do Rio Grande do Sul, através dos governos de Castilhos e Borges de Medeiros, e mais tarde no resto do Brasil, com Getúlio Vargas, vinha a cavalo e estava adornada de toda a memória heróica dos revoltosos farroupilhas, ainda que respingado pelo sangue coagulado da escravidão.

A influência do positivismo

O pensamento comtiano curiosamente vicejou no pastoril cenário austral brasileiro. Embora positivista e reacionário no plano geral da modernidade, numa província xucra e áspera como o Rio Grande do Sul, o comtismo representava um verniz de civilidade e institucionalização republicana. Havia, pelo menos, algum pensamento. Basta saber que, ainda no período 1893-95, na chamada Revolução Federalista, foram mortos mais de 10 mil pessoas, entre civis e militares de ocasião, numa Província que contava com 1 milhão de almas, onde a secção da carótida por lâmina branca (degola) de prisioneiros era prática comum em ambos os lados - liberais e republicanos. Joseph Love chega a afirmar que, no Rio Grande, no final do século XIX, ainda vagavam “hordas semibárbaras egressas do regime agro-pastoril”. Pelear era um meio de vida e de morte; especialmente, onde não havia trabalho assalariado regular no campo.

Comte, um dos tantos pensadores positivistas, concebia um mundo republicano, positivo (em relação ao ideal burguês da Revolução Francesa), organicista, não-estático, em evolução através de estágios civilizatórios, e com valores dispostos numa hierarquia. Havia o dogma da superioridade do amor sobre a razão. As mulheres eram superiores aos homens, por diversas razões, mas a principal era a do suposto predomínio dos sentimentos afetivos sobre os valores da razão, na alma feminina. Os negros eram superiores aos brancos. Os latinos eram superiores aos anglo-saxões. Todos pelas mesmas imaginadas razões altruísticas e de valoração puramente moral.

Uma mitologia do mundo rural

O segundo e definidor impulso do tradicionalismo crioulo foi dado somente a partir de 1947, por jovens de classe média do grêmio estudantil do colégio estadual Júlio de Castilhos, em Porto Alegre. Um movimento urbano, estudantil, pequeno-burguês, reivindicando e propondo uma mitologia do mundo rural, cuja unidade econômica era o universo da estância latifundiária agro-pastoril, seus símbolos, sua oligarquia militarizada, suas relações objetivas de trabalho, onde a acumulação primitiva estava fundada na escravatura, no abigeato, em terras havidas pela força das armas, pelo bandoleirismo, pelo saque, pelas vantagens da fronteira móvel, pela ausência do Estado, e pelo contrabando de mão-dupla; na esfera subjetiva, a estância foi matriz de relações de trabalho com conflitos não-manifestos, onde a relação patrão-peão estava dissimulada por laços de sociabilidade marcados pela mútua convivência em peleias contra os “castelhanos” ou contra facções políticas rivais. Relações de trabalho economicamente opostas, ainda não agudizada pelas contradições de classe, naqueles perdidos confins de coxilhas, ventos e horizontes sem curvas como o mar, mas que, no plano subjetivo é fator de solidariedade, coesão social e que tende a favorecer a unidade política.

Barbosa Lessa e Glaucus Saraiva acabam sendo os intelectuais orgânicos do chamado movimento tradicionalista gaúcho. Um oxímoro: “movimento tradicionalista”. São palavras de sentido oposto: tradicionalismo pressupõe algo fixo no tempo; logo, não há movimento. Assim foi, e é. Eles, primeiro, recuperam o vocábulo “gaúcho” que sempre teve qualificação negativa, sendo sinônimo de desajustado social, um desclassificado teatino, guacho, peão andarilho, etc. Antes do re-cozimento da história, é preciso apresentar identidades, heróis, um verniz cultural, uma bravura, própria das solenidades da origem, na luz sem sombra da primeira manhã. Entretecer as narrativas que montarão o imaginário da “pequena pátria” (Comte) carente de identidade. Ao fazê-lo, emprestam-lhe um passado heróico de glórias infinitas, cujas ilustrações vivas, que o saber histórico não deixa mentir, são as revoluções por causas nobres e justas. Sendo a principal delas a Revolução Farroupilha de 1835 a 1845, com seus personagens míticos, sua bandeira republicana e autonomista, mesmo escondendo a ausência de uma consigna abolicionista.

A história como lenda

Escondem, aliás, tudo que possa cheirar a povo, à autenticidade das manifestações populares, seja do branco despossuído, do negro, do índio e da mulher. É carimbado com o selo do tradicionalismo somente a memória do regime patrimonialista latifundiário ou da história convertida em lenda das revoluções sulinas. Com isso, a história transforma-se numa redução narrativa degradada. Já não é mais história, mas fábula, lenda, alegoria. O passado é cuidadosamente recortado numa seletiva representação de fatos deformados ou exagerados. A invenção da tradição, como cálculo político de identidade e dominação, agora é um mosaico de fatos positivos prontos para serem exibidos como espetáculo, esquecendo os aspectos sempre revolucionários do republicanismo e dos elementos modernos do comtismo, como o respeito à mulher e ao negro.

Eles operaram com um pau de dois bicos: de um lado, uma expropriação da história; de outro, a montagem de uma representação histórica. Paixão Côrtes, um dos idealizadores do tradicionalismo de espetáculo, admite que “o Rio Grande do Sul é um dos Estados brasileiros mais pobres em folclore”, e confirma: “o que assistimos é o culto das nossas tradições e não a vivência do folclore” (in jornal ZH, 22.08.1977). O tradicionalismo de espetáculo - inventado e curado nas charqueadas da ignorância - substituiu o folclore como fonte autêntica de manifestação popular na arte, na música, na poesia, nas cantigas e jogos infantis, na dança de perdidas origens, no artesanato, nas narrativas orais das tantas etnias que cimentam a cultura meridional do Brasil, como os povos europeus, o judeu, o libanês, o palestino, o negro de diversas extrações africanas, e os indígenas que tem uma história riquíssima de vida pré-colombiana e depois com a experiência das reduções jesuíticas, na região missioneira.

O estereótipo do tradicionalismo

A cultura do Rio Grande do Sul é muito mais rica do que o estereótipo do tradicionalismo fetichizado. O tradicionalismo crioulo é excludente e autoritário, sufoca todas as outras manifestações culturais de um Estado múltiplo, colorido de etnias, artes, linguagens e imaginários, parecendo-se com um corredor que se recusa a esperar sua alma. Uma das provas desse fenômeno nocivo da hegemonia unidimensional do tradicionalismo é o da culinária, onde o churrasco parece ser o monarca das mesas sulinas. Existe até uma lei estadual que o consagra como “comida oficial do Estado”. Nada mais inútil e tolo. E as ricas e saborosas culinárias das tantas etnias que temperam a mesa sulina? Numa região que teve nas charqueadas a base da sua economia, por longos decênios do século 19 e 20, o saboroso charque é pobremente servido de uma única forma, o “arroz de carreteiro”.

O tradicionalismo unidimensional e monotemático é um fator de inibição da criatividade e da livre manifestação de tantas culturas em um solo generoso e multitudinário. Uma prova da má consciência do tradicionalista de espetáculo é a relação difícil e conflituosa que sempre tiveram com os intelectuais sulinos. Ignoram, por exemplo, Érico Veríssimo, o escritor que construiu a maior e melhor narrativa literária de uma região brasileira, teceu tipos inesquecíveis e que vivem entre nós como se fossem de carne e osso, tamanha a sua sensibilidade, força artística e exemplo ético. Ignoram Pedro Weingärtner, José Franz Lutzenberger e Vasco Prado, para citar alguns artistas plásticos de épocas diferentes, mas que tiveram como temática pictórica e escultural o homem e a alma do Rio Grande, nos cenários da querência pampeana, missioneira e serrana, nos utensílios, no vestuário, nos instrumentos de trabalho, nos hábitos, no cavalo, nas vacarias, nos aperos, etc., mas sem convergir para o fantasioso mundo artificial do tradicionalismo de espetáculo.

O uso da bombacha tem a sua introdução nos Pampas (seja brasileiro, argentino ou uruguaio) por uma dessas ironias do destino (e do oportunismo comercial dos ingleses): conta o pesquisador uruguaio, Fernando Assunção, que durante a guerra da Criméia (1854-56), as fábricas inglesas produziram um grande excedente de uniformes para o exército da Turquia, o qual era ornado pelas tais calças bufantes, e como o conflito teve curta duração, os comerciantes ingleses resolveram desová-las para as tropas da Tríplice Aliança na guerra contra Solano Lopez, do Paraguai.

A "ideologia do gauchismo"

Alguns críticos do tradicionalismo de espetáculo exageram ao classificá-lo como uma “ideologia do gauchismo”. Não é nesse brevíssimo artigo que se debaterá a interessante polêmica, mas, desde já, não adotaríamos tal categoria para tais propósitos. Trata-se de uma mitologia tão pobre e mal ajambrada que seria elogioso classificá-lo como “ideologia”, de resto, uma categoria com múltiplas noções. Mas, sem dúvida, funciona como uma usina de produção de verdades, que preenche o vazio do desencantamento do mundo, fortalecendo o senso comum em detrimento do senso crítico. Cumpre a função de cobrir as lacunas e buracos de um imaginário popular que tem as ilusões cada vez mais erodidas pela pós-modernidade. Se não é um partido político na forma, milita politicamente em favor de uma “ordem” para todos, e um “progresso” para os eleitos.

Num mundo fetichizado pela miséria da mercadoria, os espelhos são inutilizados a tantos quadros por segundo. O homem, já sem espelho, auto-imagem, auto-referência, não se reconhece no mundo das coisas. É quando o tradicionalismo de espetáculo providencialmente estende espelhos simbólicos que oferecem um conforto identificador, um repouso ôntico, ao homem-multidão. Agora ele reconhece-se, agora ele identifica-se, ainda que na fantasia pilchada de uma ilusão galponeira. Tivesse bala na agulha, ousadia, empreendedorismo, o movimento tradicionalista gaúcho (MTG) poderia associar-se à Walt Disney Corporation no sentido de negociar o direito de ser objeto da dramaturgia materializada em parques temáticos e embalsamar mitologias e histórias. Uma mega Disneylandia de bombachas é a aspiração mais legítima do tradicionalismo de espetáculo. A estância-fetiche como sagração da vida boa, e o gaúcho, qual quixote temporão, se defendendo na coxilha da vida com um peleguinho já deslanado e a ferrugenta espada do tradicionalismo.

Artigo de Cristóvão Feil, sociólogo. Publicado originalmente no portal Carta Maior, aqui.

O britânico Olly Murs

sábado, 15 de janeiro de 2011

O modo lúmpen de estar no mundo



Zygmunt Bauman exalta a capacidade da narrativa dos romancistas de iluminarem os meandros da experiência humana de estar no mundo. O grande sociólogo contemporâneo, nascido na Polônia, faz essa constatação para espicaçar a academia e o que ele considera a alienação de alguns profissionais de ciências sociais. Para Bauman, a literatura consegue alcançar os interstícios, as frinchas da realidade, onde a pesquisa sociológica jamais chegou. Para ele, os literatos são capazes de “reproduzir a não-determinação, a não-finalidade, a ambivalência obstinada e insidiosa da experiência humana e a ambigüidade de seu significado”. E para ilustrar cita Borges, Tolstói, Balzac, Dickens, Dostoiévski, Kafka, Thomas Morus. Mas poderia ter citado um conterrâneo seu, que, a exemplo dele, fez a sua vida profissional na Inglaterra e, portanto, em língua inglesa, que foi Joseph Conrad.

Conrad é o autor de “O coração das trevas”, alegoria (uma seqüência de metáforas) sobre as conquistas coloniais do capitalismo concorrencial do século 19. Barra pesada. Se Marx, n’O Capital, já havia ido fundo nas denúncias ilustrativas das desumanidades do moderno sistema produtor de mercadorias nas suas fases de acumulação primitiva e concorrencial, Conrad agudiza sua literatura até o ponto do horror. O personagem narrador é Marlow, protagonista de uma aventura que penetra “nos sombrios domínios do inferno particular” de uma empresa privada, exploradora de marfim na África. Homens-bagaço sugados à exaustão. Canibais recrutados como mão-de-obra informal e que, impedidos da dieta alimentar correspondente a sua condição antropológica, dedicam-se a engolir carne podre de hipopótamo, e cujo salário se resume a três pedaços de arame por semana, preciosa moeda de troca naqueles “confins de ermas solidões”. Conrad cria nesse romance um personagem mítico chamado Kurtz (depois decalcado no filme de Coppola, Apocalypse Now [1979], completamente fora desse contexto), um sujeito internado no coração das trevas, uma ponta de lança do capitalismo, agente avançado da modernidade burguesa no seio da barbárie, cuja fortaleza-sede é decorada com cabeças humanas genuínas, para mostrar com quem estão falando. “Toda a Europa contribuíra para a confecção de Kurt” – escreve Conrad. Ele é a síntese mais acabada do etos da modernidade. A Sociedade Internacional para a Supressão dos Costumes Bárbaros (e só falta Conrad completar, debochadamente, “...e pró adoção de modernos barbarismos”) confiou a Kurtz o preparo de um relatório sobre a África. O relatório contém pérolas do tipo: “nós os brancos, considerando o progresso que já tínhamos alcançado, devemos forçosamente ser encarados por eles (os selvagens) como seres sobrenaturais”; “chegamos a eles investidos dos poderes de uma divindade”; para concluir com a aterradora sentença de morte – “Exterminemos todos os bárbaros!”. As semelhanças fundamentalistas com a presente conjuntura mundial não são mera coincidência.

Bem antes de Michel Foucault, Conrad já denunciava, através de sua literatura, o discurso da “luta de raças” funcionar como princípio de eliminação, de segregação e, finalmente de normalização da sociedade (Foucault)...

Veja, também, que Conrad aponta o uso astucioso do imaginário mágico-mítico das populações autóctones. Kurtz, o homem-síntese da Europa civilizada, da Europa duas vezes desencantada-desmagificada-racionalizada-intelectualizada (Max Weber), tanto pela ética religiosa judaico-cristã, quanto pelo espírito do racionalismo científico, não hesita em lançar mão de expedientes considerados primitivos, como a idolatria e o sobrenatural, com objetivos de submissão, conquista e normalização.

Alguns comentadores (nem chegam a ser críticos) afirmam levianamente que Kurtz enlouquece na selva, que perde o juízo, tendo em vista a selvageria e a barbárie com as quais convive por anos a fio. Nada mais etnocêntrico. Como se a hipotética “loucura” viesse de fora, como se fosse inoculada pela relação promíscua com os selvagens. Considerar assim seria uma simplificação grosseira, além, de irrelevante. Como indivíduo, ele, de fato, fica sensivelmente abalado com o que provocou naquele lugar: “O horror! O horror!” Mas como agente social da modernidade burguesa, Kurtz tem as taxas de lucidez e as taxas de demência em doses flutuantes de equilíbrio e controle racionais para, tanto impor sua vontade de predador da Natureza (humana, animal e vegetal), quanto para – com método e determinação – traficar espíritos, força de trabalho semi-escrava e mercadorias com objetividade de propósitos sincronizados a uma rede de negócios comerciais na distante Europa. Onde está a loucura disso? Muito ao contrário, sente-se o tom permanente da acuidade, da expertise, da logística complexa e da organicidade sistêmica em todas essas ações gerenciais de predação da Natureza, nas suas várias formas de vida. É a “arte da guerra” a serviço da rapinagem comercial. E a rapinagem não é somente de elefantes e seus cobiçados marfins, ela corrompe por igual o ambiente inteiro, dissolvendo, sobretudo, o homem e a sua cultura. A cogitada “loucura” de Kurtz é como o procedimento do feiticeiro – lembrado por Marx, no Manifesto – que, incapaz de controlar os poderes ocultos desencadeados por seu feitiço, vê-se vítima de seus efeitos. Os danos causados, no limite, levam perigo ao próprio empreendimento colonial europeu, seus patrões. A “loucura” é – a rigor – um lento processo de lumpenização do personagem. Kurtz não enlouquece, transforma-se num lúmpen. Em alguém que se descola de sua classe e, incapaz de voltar ao seio de uma vida burguesa, torna-se um marginal imprudente que coloca em risco a mecânica do sistema. Simbolicamente, ele seria o lúmpen fundamental, o lúmpen essencial.

Como um Fausto lúmpen pós-moderno, se envenena com as emanações maléficas de seus próprios feitos. Se o Fausto de Göethe era moderno, o Fausto lúmpen representa a pós-modernidade. Vive os limites fisiológicos do dia-a-dia. Como um cão que desconhece o seu futuro, o lúmpen pós-moderno só tem o presente. Vive tão-somente a unidimensional existência fisiológica, como qualquer animal.

O trem do capitalismo já passou pela estação da modernidade e transita agora pela estação da pós-modernidade. Cada vez menos setores, classes e indivíduos cabem nesse sinistro trem da história. Abandonados pelo caminho, vão sobrando todos os rejeitos do moderno sistema produtor de mercadorias. O lúmpen é a escumalha que fica no rastro desse itinerário perverso. O grande personagem pós-moderno é o lúmpen, “o lixo de todas as classes”, “massa desintegrada” (Marx), desgovernada que é vomitada pelo sistema, todos os dias. Cresce como cogumelo na vida social contemporânea. Estamos em plena invasão lúmpen, fenômeno dinâmico que produz um etos, uma cultura e perfis sociológicos que lhes correspondem. Há punhados de exemplos. O mais recente no Brasil é o da proliferação dos bingos, jogo-lúmpen que servia de fachada para toda a sorte de atividade marginal e anti-social. Felizmente o governo federal teve a coragem de fazer cessar essas usinas de lumpesinato. Em que pese, o causador dessa proibição ter sido outro personagem lúmpen que assola a República, o do barbabé-quadrilheiro que trafica influências e recursos públicos para fins pessoais e privados. A crescente criminalização da vida social é uma derivação da dinâmica lúmpen. O crime passa a constituir-se em força produtiva e meio de vida para milhões de pessoas. Manifesta-se, no plano econômico, de múltiplas e criativas formas: “acordos e cartéis, abusos de posição de liderança, dumping e vendas casadas, delitos de iniciados e especulação, absorção e desmembramento de concorrentes, balanços falsos, manipulações contábeis e de preços de transferências, fraude e evasão fiscal por filiais off shore e sociedades virtuais, desvio de créditos públicos e mercados fraudados, corrupção e comissões ocultas, enriquecimento ilícito e abuso de bens sociais, vigilância e espionagem, chantagem e delação, violação do direito do trabalho e da liberdade sindical, da higiene e da segurança, das cotizações sociais e ambientais” (Brie). A vanguarda é o lúmpen.

A lavagem de fundos ilícitos pelos principais bancos dos Estados Unidos constitui uma fonte importante de fluxos externos para aquele país. Uma subcomissão do Senado americano calculou essa cifra em torno de 500 bilhões de dólares/ano. São recursos de múltipla origem: desde o narcotráfico, máfia russa e japonesa até o caixa dois de companhias multinacionais, depósitos de paraísos fiscais “legalmente” tolerados. Tráfico de tudo: novos narcóticos sintéticos, cocaína, armamento pesado, órgãos humanos, alta prostituição, falsificação de grifes (muitas vezes pelos próprios proprietários, com o intuito de aproveitar o crescente mercado-lúmpen informal em todas as grandes cidades do mundo), pirataria na informática e na indústria fonográfica, o tráfico de animais (só este tráfico, movimenta anualmente cerca de 20 bilhões de dólares), etc.

Toda a inteligência e logística estatal norte-americana do serviço secreto que era empregado na Guerra Fria onde opera, hoje? Ganha um doce quem disser que é na nova guerra econômica pela americanização de fundos legais e ilegais (fundos-lúmpen), tanto faz. A moeda é uma mercadoria vil que procura proteção máxima; e os EUA podem dispor de meios para garantir-lhe segurança e rentabilidade.

O comércio mundial anual situa-se, hoje, “ao redor de 5 trilhões de dólares, calcula-se que 20% por via do crime, ou 1 trilhão de dólares” (Brie). Essa riqueza-lúmpen é administrada lisa e serenamente pelos grandes bancos do planeta, por grandes escritórios de advocacia, mega-corretores, intermediários diversos, gerentes e diretores de trustes e fiduciárias, constituindo um bolão-lúmpen que é lavado todos os dias, em quantidades parcelares, pela chamada economia legal. Essa mega lavanderia-lúmpen cobra pedágio em vidas humanas. A Rocinha é apenas um exemplo nacional que ilustra essa internacional-lúmpen da violência naturalizada.

O crescimento mundial da dinâmica lúmpen é um indicativo evidente da enfermidade estrutural do sistema produtor de mercadorias. Os filhos de Kurtz proliferaram e querem ser vanguardas da anomia social. O modo lúmpen de estar no mundo é o último capítulo da saga Iluminista. A montanha liberal pariu ratos que roem a humanidade do homem. À esquerda acomodada, restam apenas podres poderes.


Artigo de Cristóvão Feil, sociólogo. Publicado originalmente no portal Carta Maior, aqui.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Sapo entalado


Primeira pergunta ao antropólogo de direita, Roberto Da Matta, feita pela jornalista Marília Gabriela, programa Roda Viva, TV Cultura/SP, edição de ontem:

- Roberto, você acha que o povo brasileiro aceitou bem a eleição de uma mulher à presidência da República?

Desliguei o aparato e fui dormir.

O batráquio indigesto ainda não desceu, mas está dando uma azia danada, nessa gentalha.

domingo, 9 de janeiro de 2011

O clássico de Victor Heredia



Ojos de cielo, um "carnavalito" (música/dança coletiva ingênua e festiva pré-colombiana) que virou clássico.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Charly Garcia de penteado novo



E estranho "peinado"...

É sempre um prazer escutar o velho e louco Charly. Põe o Caetano no chinelo, com a vantagem que nunca desbundou, politicamente.



Outro grande nome do rock portenho é o de Luis Alberto 'Flaco' Spinetta. É como dizia o Alemão Marta Rocha, lá de Cachoeira: "O Flaco é uma sucessão de sucessos..."

O modo imbecil de estar no mundo

Sinclair Lewis

                                          “A depreciação do mundo dos homens aumenta em razão direta da valorização do mundo das coisas”. (Karl Marx, em fevereiro de 1844)


Quem está vivo (em todos os sentidos) experimenta, a todo o momento, o grande impacto do fenômeno da transição cultural – sob os auspícios do moderno sistema produtor de mercadorias. Os motivos estão perfeitamente identificados: quebra de paradigmas em vários campos da ciência, profundas mudanças tecnológicas, prevalência numérica do trabalho morto sobre o trabalho vivo, produção flexível, hegemonia definitiva do capital financeiro, divinização do dinheiro, intensas mudanças na noção do tempo social, reificação das consciências, etc.

Esse fenômeno da transição cultural não é – evidentemente – inédito na história do sistema. Apenas sucede a muitos outros. A última ocorrência maciça e consistente do fenômeno foi quando do início da revolução da chamada “produção em massa”, nos primeiros trinta anos do século 20, grosso modo. Motivada pelas novas técnicas de produção introduzidas por Frederick Taylor e Henry Ford (foto acima). O primeiro, com seus estudos sobre o tempo-movimento e a lógica do tempo métrico; o segundo, a esteira de montagem e seus operários não-especializados bem remunerados. Saem de cena: o improviso e o artesanato, a produção voltada para valores de uso, o individualismo econômico. Entram em palco: cronometragem e racionalidade no uso do tempo, produção em escala, ênfase no valor de troca da mercadoria, consumo de massa, operário não-especializado, economia programada, consolidação da hegemonia industrial. É o início daquilo que o sociólogo alemão Elmar Altvater chamou de “sistematização fordista”. Uma forma de vida e de relações sociais moldadas pela racionalidade taylorista-fordista. Uma esquina cultural que a promessa iluminista-liberal teve que dobrar sob o comando da unidade entre técnica e ciência, que é igual à tecnologia. A ciência como força produtiva, o tempo como instrumento contábil do valor e o trabalho abstrato como valor de troca em consagração definitiva na história.

A singular reunião desses fermentos simbólicos na base social produziram, nas esferas da superestrutura, uma espuma de tipos humanos diferentes e originais. Sinclair Lewis (foto no alto), o grande escritor norte-americano que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1930, apanhou muito bem isso tudo; criou uma alegoria que narra como que o nascimento desse indivíduo fordista e sua errante aventura de proto-imbecil sociológico. Seu romance maior é “Babbitt”. Retrata a vida na década de 20, de um americano médio, George F. Babbitt, 46 anos, que “não fazia nada em especial: nem manteiga, nem sapatos, nem versos; mas era perito em vender casas a preços excessivos para a bolsa dos compradores”. Um picareta de imóveis. Socialmente, Babbitt é considerado “um booster – homem de energia e iniciativa, um esteio do progresso”, combinado com aquilo que o alemão des-qualifica como “Landsknechtsnatur” (uma expressão idiomática que identifica o sujeito que adula os superiores e dá coice nos subordinados). A mulher (chamada de Sra. Babbitt) é um ser invisível na casa, uma serviçal do lar, embora seja auxiliada pelos novos apetrechos elétricos fabricados em série, e tem “tanto sexo quanto uma freira anêmica”. A crueldade, não raro, abriga-se inocentemente nas dobras da indiferença. Além de cruel, Babbitt é um tolo patrioteiro, temente a Deus, machista, pusilânime e despersonalizado. Uma fraude de si mesmo, uma imitação barata do homem de vanguarda, o industrial fordista. Agora, resta-lhe tão-somente a autenticidade de ser imbecil, “um homem sem qualidades definidas” (Musil).

É o muco pulmonar da América fordista. Uma geração adiante, essa baba serviu de berçário social para tipos como George W. Bush. Lendo Sinclair Lewis se entende melhor o fenômeno Bush - um filho temporão do obsoleto fordismo e da vetusta indústria de combustão de energia fóssil. Pois, essas secreções “babbittianas” de belicistas imbecis é que estão no poder, hoje, nos Estados Unidos. [Seguem no poder, apesar de Obama.]

Tem uma passagem do romance em que Babbitt lê no jornal sobre um boato da morte de Lênin (foto, que ocorreu, de fato, em janeiro de 1924) e comenta num misto de valentia e bravata: “Ainda bem! Não compreendo como nós não vamos lá e não expulsamos a pontapés esses miseráveis bolchevistas”. Lewis publicou “Babbitt” em 1922.

Mas Antonio Gramsci também escreveu sobre o fenômeno fordista. Foi no conhecido ensaio intitulado “Americanismo e Fordismo”, por volta de 1929. Gramsci, como Marx já o fizera com grande originalidade e arte no “Manifesto”, constata o avanço da racionalidade capitalista na etapa fordista. Contudo, falta-lhe a argúcia literária, a sintaxe poética cortante e a acuidade sociológica do mestre. Fica devendo. Lewis, com humor, graça, alguma arte, e outras lentes, consegue projetar o futuro de um sistema que dava os primeiros passos, através de um personagem síntese. Babbitt é, como Conrad diz do seu personagem Kurtz, um tipo que “toda a América contribuíra para a sua confecção”. Por isso ele é sintético. Passível de ser projetado e traduzido para além da curva do tempo. Onde Lewis é feliz, Gramsci sucumbe. Sua análise é petrificada, óbvia (depois de Marx), por demais objetiva e desgraciosa. Com o seguinte agravante: tanto o projeto nazi-fascista, quanto o projeto stalinista na União Soviética, tiveram como referência de progresso e desenvolvimento econômico modernos o modelo taylorista-fordista. E ambos executaram esse desiderato programático nos seus países – União Soviética, Alemanha e Itália, ainda que sem a “febre consumista”.

Não é à toa que a Hannah Arendt (foto ao lado) diz que o nazi-fascismo não trouxe nenhuma novidade, seja na política populista, na gestão econômica modernizante, na brutalidade policial-militar, no delírio como norma, ou o genocídio da forma “luta de raças”. Aquilo tudo já havia sido experimentado, em fragmentos, pelos regimes liberais. O nazi-fascismo apenas condensou as coisas em pouco mais de uma década de poder tirânico.

Gramsci, então, não teve a necessária clarividência de verificar esses indicativos que apontavam para fatos que a história acabou por confirmar. No caso da União Soviética, nem precisava de semelhante descortino, bastava acompanhar a política econômica “desenvolvimentista” e modernizante de Stálin. Um taylorismo-fordista com trabalho escravo e “emulação revolucionária”. Assim, até Lula!

Esse abreviadíssimo cotejamento do produto da narrativa de dois admiráveis críticos sociais, ainda que com instrumentais diversos, e com resultados qualitativamente desiguais (em favor da literatura de ficção, a meu ver), reforça a afirmação de Zygmunt Bauman, qual seja: os literatos são capazes de “reproduzir a não-determinação, a não-finalidade, a ambivalência obstinada e insidiosa da experiência humana e a ambigüidade de seu significado”.

E, hoje, quem estará devassando os imbecis do futuro da pós-modernidade e outros fenômenos de maior monta? Serão os Bauman, os Zizek, os Robert Kurz, os Fredrick Jameson, as Agnes Heller? Ou serão os Michel Houelebecq, os Don DeLillo, as Patrícia Highsmith, os Thomas Pynchon?

É preciso reconhecer, a narrativa da atualidade é muito diferente. O banco de categorias de que dispõe as ciências sociais está praticamente insolvente para dar conta das interrogações fragmentárias do momento e do futuro. As disciplinas sociais nascidas e geradas pela modernidade cada vez mais devem contar com a arte e a literatura para sobreviverem.

Ou sucumbiremos passivamente diante da provocação (fomentadora) de Theodor Adorno (foto) de que o pensamento crítico está morto, e que a sociedade e a consciência estão “totalmente reificadas”? Estaria, então, o mundo sob a iminência de uma hegemonia irrecorrível de tolos e basbaques de todo o gênero, em especial os belicistas e endinheirados?

Artigo de Cristóvão Feil, sociólogo. Publicado originalmente no portal Carta Maior, aqui.

Surfista (ou Internauta) de Sangue



A banda Surfer Blood foi criada em 2009.

Gorilas inquietos

Daniel Paz & Rudy

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Dilma manda chamar general e pede explicações sobre "fato histórico"


Gorila quis banalizar violações aos direitos humanos durante ditadura civil-militar

As manifestações do novo chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) da Presidência, general José Elito Siqueira (na foto com Dilma), criaram mal-estar ontem, no Palácio do Planalto. A presidente Dilma Rousseff chamou Elito em seu gabinete na noite de ontem para pedir explicações. A informação é da Folha.

No dia de sua posse, Elito Siqueira se posicionou contra a criação da Comissão da Verdade e disse que os desaparecidos políticos são um "fato histórico" do qual "nós não temos que nos envergonhar ou vangloriar".

Segundo o projeto enviado pelo governo, a Comissão da Verdade terá a "finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos" durante a ditadura.

Durante o dia, a presidente fez chegar ao general sua insatisfação com as declarações, já que o governo Lula enviou no ano passado projeto de lei ao Congresso Nacional em apoio ao órgão.

A mídia apurou que Elito disse a Dilma que foi "mal compreendido" pelos jornalistas durante a entrevista e que as reportagens não retrataram o que ele disse.

Dilma não gostou da manifestação do general que é claramente contrária à posição de seu governo e do antecessor. Dilma era ministra da Casa Civil quando o projeto de lei da Comissão da Verdade foi formatado.

O vice-presidente Michel Temer minimizou os comentários de Elito. Questionado se não era contraditório a presidente, torturada durante a ditadura, ter como subordinado próximo um general contrário a investigações sobre episódios de tortura no regime militar, Temer disse que a pergunta deveria ser feita à própria presidente.

"Acho que é a opinião dele, né? Não vou me manifestar a respeito da opinião dele", disse o vice de Dilma.

O ministro Nelson Jobim (Defesa), sem se referir especificamente ao general, limitou-se a dizer que a posição do governo é pela criação da Comissão da Verdade, nos termos do projeto de lei enviado pelo Executivo ao Congresso em maio passado.

A nova ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, afirmou, via assessoria, que seu posicionamento sobre o assunto é público e foi exposto em seu discurso de posse, anteontem.

-------------------------

O episódio demonstra uma diferença qualitativa entre o estilo político do ex-presidente Lula - excessivamente conciliador - e a presidenta Dilma, especialmente no tema da memória histórica da ditadura civil-militar de 1964-85.

Um dos grandes passivos do governo Lula foi essa renitência em não revolver o nosso passado ditatorial e repressivo, ao contrário dos governos democráticos do Uruguai, Argentina e Chile. A situação é agravada pela escolha, por Lula, de um ministro protofascista e americanófilo como Nelson Jobim na pasta da Defesa. A manutenção de Jobim (ou JohnBin) é um dos mistérios do novo governo Dilma Rousseff. De qualquer forma, o gesto pronto e decidido da presidenta na noite de ontem é um indicativo de indisposição para com os subordinados de Jobim (ou JohnBin).

Só por isso, já valeu o meu voto em 3 de outubro último.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Yeda, uma pobre de espírito



A governadora Yeda se despediu das suas funções públicas com a marca de suas irrealizações: falou pouco e disse quase nada, a não ser as doideiras e as imprecisões de sempre. Quis citar Maquiavel (duvido que ela saiba quem seja o cara) mas lhe saiu uma frase que lembra vagamente o primeiro cientista político, e que se refere ao preço que o príncipe paga por introduzir modificações no seu modo de dominação. Assim, Yeda, depois de inspirar-se no seu almanaque Capivarol, sugere que tenha sido um príncipe, ela própria, e que colheu adversidades ao longo do seu quadriênio pelo fato de ter introduzido um novo jeito de enganar. Pobre Yeda! Sua curta acuidade política não lhe permite enxergar o quanto foi rejeitada. Mencionou a iraniana Sakineh, prisioneira por crimes comuns, querendo levantar bandeiras com as quais não tem a menor intimidade como a dos direitos humanos, ela, governadora e comandante de uma polícia militar que assassinou pelas costas um agricultor pobre e sem terra, num caso encoberto por chicanas e manobras burocrático-militares para esconder o verdadeiro assassino.

O ponto alto do seu discurso de despedida do Piratini, entretanto, foi a afirmação segundo a qual o general Bento Gonçalves da Silva teria sido o primeiro governante guasca a ser inquilino do Palácio Piratini, tendo o cuidado até de precisar a data. Para a governadora tucana o fictício acontecimento ocorreu no ano de 1921, quando todos sabem que o dirigente farrapo morreu em julho de 1847. Não é de estranhar mesmo esses exercícios súbitos de ficção em Yeda, mas sim, do silêncio solidário da mídia amiga do Rio Grande.

Sempre com seus enigmas, Yeda proferiu duas vezes uma sentença em tom epigramático: "A realidade é uma virtude". "A realidade é uma virtude". Confesso que não estou preparado para entender o significato de tão virtuosa e inteligente oração. Pressinto as suas qualidades, mas desconheço seu alcance filosofal. Contudo, enquanto não a entendê-la por inteiro, prefiro classificá-la junto àquelas frases que se lê em carros pelas nossas ruas, como "A inveja é uma merda" e "Deus é fiel".

Mesmo depois de ser atingido por essas setas de nonsense, garanto que fiquei feliz, afinal, dona Yeda estava de partida. Ela desceu as escadarias do Palácio Piratini e - por prudência, ainda que no último minuto - preferiu sair pela porta lateral, onde se introduziu em um veículo de vidros tão escuros quanto o anonimato que a aguarda. Yeda não quis evitar as vaias candentes, mas sim a mais absoluta indiferença e frieza dos poucos que teimavam em permanecer defronte à sede do governo estadual àquela hora matinal do primeiro de janeiro de 2011.

sábado, 1 de janeiro de 2011

A música da guerreira Patti Smith



Mais a bela fotografia do espanhol Pierre Gonnord.

Um ótimo 2011 - e uma nova década de realizações - a todas as nossas leitoras (que lutaram e ajudaram a eleger uma presidenta de valor, uma mulher íntegra, vertical) e leitores!

Contato com o blog Diário Gauche:

cfeil@ymail.com

Arquivo do Diário Gauche

Perfil do blogueiro:

Porto Alegre, RS, Brazil
Sociólogo