Eles achavam que Sebreli era um vira-lata

RBS e Prefeitura de Porto Alegre armaram e se deram mal

O senso comum turbinado pela mídia espetaculosa, vulgar e rasteira exige que os intelectuais sejam como as comidas finas dos grandes chefs. Que sejam agradáveis ao paladar, que possam ser “servidos” em ocasiões sociais e que combinem com as cores decorativas dos ambientes tanto dos salões chiques quanto das casas da classe média. Frivolidades de classe!

A RBS e a Secretaria da Cultura da Prefeitura Municipal de Porto Alegre armaram e se deram mal. Juan José Sebreli não é um salmão guarnecido com maçãs glaçadas ao molho agridoce de alcaparras e nozes.

No dia 25 de julho, um sábado, o jornal ZH apresentou o intelectual argentino em página dupla e central, para esquentar a sua apresentação em evento no Centro Municipal de Cultura, que coincidentemente fica defronte à sede da RBS e que, na administração Fogaça, se transformou numa extensão das empresas midiáticas da família Sirotsky. Extensão não tanto física, mas ideológica, porta-voz da direita guasca, ora no poder, tanto no Paço Municipal de Porto Alegre quanto no Palácio Piratini.

Sebreli, para esses, e só para esses, foi uma decepção. Como não o conhecem, tiraram-no por impressões ligeiras, por leitura da orelha do seu último livro “Comediantes y Mártires – Ensayo contra los mitos”, publicado em 2008.

Coincidiu, igualmente, que dias antes – 22 de julho – nós tenhamos comentado aqui no blog sobre essa obra do grande sociólogo argentino, praticamente desconhecido no Brasil, já que não tem nenhum livro traduzido para o português.

Sou, como disse, um velho admirador do sociólogo argentino Juan José Sebreli. O título da obra já diz tudo. Contra os mitos, os mitos de Maradona, Evita Perón, Carlos Gardel e Che Guevara.

Sebreli suspeita que na raiz destes quatro mitos argentinos está o pseudo monoteísmo da Igreja católica. Ele assegura que a multidão de santos católicos fazem as vezes do politeísmo pré-religioso, onde para cada dificuldade ou aspiração humana havia uma bengala mágica materializada em um deus pagão.

Assim, o misticismo católico cria e recria constantemente novos objetos de adoração pagã. Ele alinha inúmeros exemplos de personagens do folclore popular que habitam algum lugar entre a santidade divina e o mito pré-religioso, os santos rurais, os ex-votos e os fetiches mágicos de toda a ordem. Tem muito de Hegel no texto de Sebreli e ele maneja muito bem as categorias, numa prosa agradável e ao mesmo tempo profunda. Os quatro mitos argentinos examinados por ele teriam a mesma raiz, uma mescla de fé religiosa e culto pagão às celebridades.

Sebreli não ataca diretamente os indivíduos Maradona, Evita, Gardel e Che. Mas procura enxergá-los na perspectiva do poder das oligarquias argentinas, que sempre fizeram do culto aos mitos e à idolatria de celebridades uma espécie de religião cívico-nacionalista. O credo idolátrico é instrumento ideológico para o culto à Pátria abstrata, ao patriotismo alienante e não à cidadania e à autonomia política dos indivíduos. Para ele, a tradição, assim, se transforma em um obstáculo à democracia, um elemento de opressão e obscurantismo cultural.

Na palestra de Sebreli em Porto Alegre, na fria noite da quinta-feira, dia 30 de julho, ele falou um pouco de tudo isso. E foi vivamente estimulado a usar os mesmos instrumentos de análise para criticar Getúlio Vargas e Luis Inácio Lula da Silva, numa franca confissão dos objetivos ideológicos dos organizadores ao trazerem o intelectual portenho.

Mas Juan José Sebreli (foto) não mordeu a isca guasca. Limitou-se a dizer que o Brasil tem uma amplitude própria e uma complexidade sociológica que não se adequam aos instrumentos categoriais que usa para estudar os fenômenos argentinos. Ponto.

A RBS e a Secretaria de Cultura queriam um picareta de aluguel, um vira-lata fazedor de frete ideológico, como tantos que os servem nas suas jornadas de fé e espetáculo. Encontraram um intelectual altivo, conceitualmente robusto e moralmente incorruptível.

Armaram e se deram mal.