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Surf no lixo contemporâneo: a que ponto chegamos! E que mundo deixaremos de herança para Keith Richards?

domingo, 4 de maio de 2008


A verdadeira utopia é a crença em que o sistema global existente pode se reproduzir indefinidamente

Sejamos realistas, exijamos o impossível!

Um dos grafites mais conhecidos dos muros de Paris em 1968 era: "As estruturas não andam pelas ruas!". Isto é, não se podem explicar as grandes manifestações de estudantes e trabalhadores do Maio de 68 como determinadas pelas mudanças estruturais na sociedade.

Mas, segundo Jacques Lacan, foi exatamente isso o que aconteceu em 1968: as estruturas saíram às ruas. Os eventos explosivos visíveis foram, em última instância, o resultado de um desequilíbrio estrutural - a passagem de uma forma de dominação para outra; nos termos de Lacan, do discurso do mestre para o discurso da universidade.

Os protestos anticapitalistas dos anos 60 suplementaram a crítica padrão da exploração socioeconômica pelos temas da crítica social: a alienação da vida cotidiana, a "mercadorização" do consumo, a inautenticidade de uma sociedade de massa em que "usamos máscaras" e sofremos opressão sexual e outras, etc.

Mas o novo espírito do capitalismo recuperou triunfalmente a retórica anti-hierárquica de 1968, apresentando-se como bem-sucedida revolta libertária contra as organizações sociais opressivas do capitalismo corporativo e do socialismo "realmente existente".

O que sobreviveu da libertação sexual dos anos 1960 foi o hedonismo tolerante, facilmente incorporado a nossa ideologia hegemônica: hoje o prazer sexual não apenas é permitido, é ordenado - os indivíduos se sentem culpados quando não podem desfrutá-lo.

A tendência às formas radicais de prazer (por meio de experiências sexuais e drogas ou outros meios de indução ao transe) surge em um momento político preciso: quando o "espírito de 68" esgota seus potenciais políticos. Nesse ponto crítico (meados dos anos 70), a única opção restante foi um direto e brutal empurrão para o real, que assumiu três formas principais: a busca por formas extremas de prazer sexual, a opção pelo real de uma experiência interior (misticismo oriental) e, finalmente, o terrorismo político de esquerda (Fração do Exército Vermelho na Alemanha, Brigadas Vermelhas na Itália etc.).

O que todas essas opções compartilham é um recuo do engajamento sociopolítico concreto para um contato direto com o real. Lembremos aqui o desafio de Lacan aos estudantes que protestavam: "Como revolucionários, vocês são histéricos que exigem um novo mestre. Vocês vão ganhar um". E o ganhamos, sob o disfarce do mestre "permissivo" pós-moderno cuja dominação é mais forte por ser menos visível.

Sem dúvida, muitas mudanças positivas acompanharam essa passagem - basta citar as novas liberdades das mulheres e seu acesso a cargos de poder.

Entretanto essa passagem para um outro "espírito do capitalismo" foi realmente tudo o que aconteceu nos eventos do Maio de 68, de modo que todo o entusiasmo ébrio de liberdade foi apenas um meio de substituir uma forma de dominação por outra?

Muitos sinais indicam que as coisas não são tão simples. Se examinarmos nossa situação com os olhos de 1968, devemos lembrar o verdadeiro legado desse ano: seu núcleo foi uma rejeição ao sistema liberal-capitalista.

É fácil zombar da idéia do "fim da história" de Francis Fukuyama, mas hoje a maioria é fukuyamista: o capitalismo liberal-democrático é aceito como a fórmula finalmente encontrada da melhor sociedade possível, e tudo o que se pode fazer é torná-la mais justa, tolerante etc.

Hoje a única verdadeira questão é: nós endossamos essa naturalização do capitalismo ou o capitalismo global de hoje contém antagonismos fortes o suficiente para impedir sua infinita reprodução?

Há (pelo menos) quatro desses antagonismos: a sombria ameaça da catástrofe ecológica, a inadequação da propriedade privada para a chamada "propriedade intelectual", as implicações socioéticas dos novos avanços tecnocientíficos (especialmente em biogenética) e as novas formas de apartheid, os novos muros e favelas. Os primeiros três antagonismos se referem aos domínios do que Michael Hardt e Toni Negri chamam de "comuns".

Há os "comuns de natureza externa" ameaçados pela poluição e a exploração (do petróleo a florestas e o próprio habitat natural), os "comuns de natureza interna" (o legado biogenético da humanidade) e os "comuns de cultura", as formas imediatamente socializadas de capital "cognitivo", basicamente a língua, nosso meio de educação e comunicação.

A referência a "comuns" justifica a ressurreição da idéia de comunismo: nos permite ver o envolvimento progressivo dos comuns como um processo de proletarização daqueles que são assim excluídos de sua própria substância.

No entanto é apenas o antagonismo entre os "incluídos" e os "excluídos" que realmente justifica o termo comunismo. Em diferentes formas de favelas ao redor do mundo, presenciamos o rápido crescimento da população sem o controle do Estado, vivendo em condições meio fora-da-lei, em terrível carência de formas mínimas de auto-organização.

Se a principal tarefa da política emancipatória do século 19 foi romper o monopólio dos liberais burgueses por meio da politização da classe trabalhadora, e se a tarefa do século 20 foi despertar politicamente a imensa população rural da Ásia e da África, a principal tarefa do século 21 é politizar - organizar e disciplinar - as "massas desestruturadas" dos que vivem nas favelas.

Se ignorarmos esse problema dos excluídos, todos os outros antagonismos perdem seu viés subversivo. A ecologia se transforma em um problema de desenvolvimento sustentável, a propriedade intelectual em um complexo desafio jurídico, a biogenética em uma questão ética.

Sem o antagonismo entre incluídos e excluídos, poderemos nos encontrar em um mundo em que Bill Gates é o principal humanista, lutando contra a pobreza e as doenças, e Rupert Murdoch o maior ambientalista, mobilizando milhões de pessoas por meio de seu império da mídia.

O verdadeiro legado de 1968 é melhor resumido na fórmula "soyons realistes, demandons l'impossible!" [sejamos realistas, exijamos o impossível!].

A verdadeira utopia é a crença em que o sistema global existente pode se reproduzir indefinidamente. A única maneira de ser verdadeiramente realista é imaginar o que, dentro das coordenadas desse sistema, só pode parecer impossível.

Artigo do grande SLAVOJ ZIZEK, filósofo e escritor esloveno.

7 comentários:

Anônimo disse...

CQD = como queríamos demonstrar.
Brilhante!

Callado

Anônimo disse...

Cristóvão,

Excelente ensaio! Atualmente, Negri e Hardt (Multidão, 2005) estão entre meus autores mais importantes para trabalhar a blogosfera [os outros são Barabási - Linked, 2002; Steven Johnson - Emergência; Axel Bruns e Joanne Jacobs (org.) - Uses of Blogs, 2006].

Não vou trabalhar análise do discurso nem entrar na oposição esquerda x direita mas, sim, verificar o quanto as relações presenciais entre os blogueiros influenciam os seus escritos.

Meu problema de pesquisa é o seguinte:

se e como a sociabilidade/as interações sociais de amizade/camaradagem afetam a dinâmica de blogs que se propõem a serem uma alternativa à mídia corporativa, divulgando fatos e opiniões que não têm espaço no jornalismo 'profissional'

Também vou utilizar os conceitos de remediação (Jay Bolter, Richard Grusin) e de mediatização (Eliseo Verón) para entrar nas contradições da blogosfera que, de um lado, detesta o PIG mas, por outro, utiliza a favor de seus argumentos matérias consideradas "positivas" e "insuspeitas" publicadas pelo próprio PIG.

Há mais um autor (este para criticar o agendamento e o fazer jornalístico de dentro das corporações) chamado Ciro Marcondes Filho, que escreveu um livrinho chamado A Saga dos Cães Perdidos, que é uma crítica aos jornalistas.

Enfim, tenho muito trabalho pela frente. Porém, não vou cometer o erro corporativista de defender ferrenhamente os jornalistas formados e sindicalizados, as corporações de mídia e nem tampouco o de endeusar a blogosfera.

Todos esses erros já foram cometidos por outros pesquisadores aqui no Brasil.

[]'s,
Hélio

Cristóvão Feil disse...

Meu prezado e aplicado Hélio,

Chamo a tua atenção para não resvalares em dois cacoetes do pesquisador acadêmico: 1) a demasiada ênfase no culturalismo, 2) o economicismo.

Sugiro – me permita a ousadia –, que mantenhas distância destas duas calhas viciadas e nas quais muitos já cairam.

Me parece que quanto ao segundo, não seja o teu caso. Mas o primeiro, é um viés muito trilhado por alguns destes autores que citas. Estudá-los, considerá-los é importante, mas não te deixa impregnar por inteiro pelas suas “viagens”.

Abraço e bom trabalho!

CF

Anônimo disse...

A grande mídia publica muitos autores de esquerda para fazer minimamente o contraditório e passar uma imagem de pluralidade democrática. Em mil artigos/matérias/reportagens tem dez artigos ou ensaios de autores alternativos ao sistemão. Isso não é só no Brasil, é nos EUA, na França, na Itália, em Portugal, Argentina e no mundo liberal todo.

Juarez Prieb

Anônimo disse...

Como sempre, Slavoj Zizek toca na questão central, ou seja, temos que continuar perseguindo a utopia. Daí, ter restado poucos movimentos utópicos
"neste país", pois sem medo de errar podemos dizer que se resume no MST e no...

armando

Carlos Eduardo da Maia disse...

Armando, não existe MST, existe elite do MST que manda e desmanda nos cordeirinhos do movimento. Tudo de cima para baixo.

Anônimo disse...

ô Maia,

Se não existe MST, como pode haver elite do MST?

Se o MST tem uma elite, é porque tem um MST.

Tu não em vergonha de falar qualquer raivosa bobagem, só para esculhambar com quem pensa diferente de ti?

Claudio Dode

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