Agora, neste mundo de Deus, tudo é permitido e negociável - é o que diz Shakespeare
Acredito que Shakespeare realmente existiu e que esta peça é antissemita menos pela denúncia da usura do que pela condenação histórica ao judaísmo. Uma condenação, vale dizer, que não tem como contrapartida uma defesa do cristianismo ou da cristantandade, exatamente. Shakespeare antes descreve que defende uma certa interpretação das consequências cotidianas da aceitação do cristianismo e o resultado me parece desconcertante e crítico, embora um tanto resignado ou realista.
Nunca é demais lembrar, em primeiro lugar, que os judeus foram, por quase mil anos, proibidos de terem terras e de a cultivarem. Aí reside a cultura do acúmulo de bens móveis, além da herança comercial mediterrânea, que muitos árabes, palestinos e egípcios e magrebinos partilham, por motivações de natureza geográfica, talvez. Por isso, a condenação da usura é algo bem mais complexo do que um ditame exatamente cristão. Na América Espanhola as igrejas desempenhavam a função de bancos e assim parasitavam e dominavam as elites crioulas, assegurando sua mentalidade cativa do colonialismo e o sucesso do próprio empreendimento colonial, obviamente.
Condenar a usura dos judeus, assim, tem mais com um expediente antissemita clássico protagonizado pela Igreja Católica. Disputa de poder em todas as acepções. O advento do capitalismo financeiro desempenha um papel num contexto que ultrapassa em muito a relação dos judeus com o dinheiro, bem móvel permitido, o único, em quase mil anos, bom que se diga de novo. Por isso não entendi quando referiste uma certa hegemonia do pensamento, porque parece um corte recente e em todo caso muito generalista.
A peça é chocante pelo antissemitismo escancarado, mas não é ingênua e tampouco defende o cristianismo. E aí reside o peculiar tratamento do antissemitismo que eu referi. Não é o judeu mau versus os bons cristãos. A peça mais parece condenar o dogmatismo daquilo que Hegel chamará de Bela Alma (atacando a filosofia moral kantiana) do que adotar uma postura cristã. Shylock é um dogmático, religioso e cumpridor de contratos a despeito do mundo, das suas vicissitudes e da história. E o mundo, as circunstâncias e a história são apresentados na peça como um mercado. Um mercado em que tudo e todos são negociados e negociáveis. Um universo negocial em que tudo se arranja, compra e vende. Shakespeare me parece descrever com resignação ou realismo aquele ambiente em que o velho Shylok enlouquece e perde a filha, numa mistura melancólica de incompreensão, não aceitação (da parte dele e do Mercado de Veneza) e solidão.
Shylock é o usurário, mas todo o resto que o cerca é escrotérrimo. Pórcia, Antônio, todos, com exceção do velho judeu, negociam tudo. O paradoxo é uma ironia resignada, uma crítica e resignação que põem em cena uma questão muito mais fecunda do que aquela, política, trazida pela Reforma, que apontas no teu comentário. Trata-se da tese de que o mundo das escrituras ou da prevalência da Lei (bíblica, contratual, jurídica) é tomado como dogmático e portanto, comercialmente inadequado, de modo que não tem mais lugar onde tudo se negocia (casamentos, afetos, decisões judiciais e grande elenco de outras coisas). O mundo dos judeus, e este é o antissemitismo da parada, não tem mais lugar, na história. Agora, tudo se negocia e a lei é feita segundo as regras do Mercado de Veneza.
O grande texto, na minha opinião, que organiza essa narrativa é O Espírito do Cristianismo e seu Destino, de Hegel. Segundo essa interpretação do cristianismo, que Shakespeare me parece corroborar, muitíssimo avant la lettre, é o preço a pagar pela aceitação de que Deus encarnou. Na direção oposta à da posição teológica, segundo a qual o homem foi feito imagem e semelhança no Cristo, quer dizer, adotando a perspectiva imanente dessa tese, está o custo ou o “preço Cristo” da tese da encarnação. Sim, podemos ser Deus, mas ser Deus exige responsabilidades e uma possibilidade de dessacralização das leis, das decisões, das instituições, à medida que essas passem a ser coisas nossas, por nós possivelmente feitas, autorizadamente constituídas. Não são mais tábuas reveladas, mas leis humanas, negociadas, historicizadas.
O Mercador de Veneza é, na minha opinião, a expressão literária dessa interpretação hegeliana, embora antissemita, coisa que Hegel jamais foi, como se sabe. Assim, não é uma denúncia de usura, enquanto usura, enquanto problema moral o que está em jogo na peça de Shakespeare, segundo penso, mas uma posição dogmática, a-histórica, purista e religiosa, que é condenada historicamente, na peça. Agora, neste mundo de Deus, quer dizer, dos humanos, tudo é permitido e negociável. E seria por isso que o judaísmo religioso não tem cabimento, mais. A ironia é que fica parecendo que religião alguma teria portanto cabimento, já que tudo é negociado. Esse aspecto profundamente irônico e de flerte com um paradoxo gritante, de resto, parece nota característica do texto de Shakespeare, até onde li.
Comentário de Katarina Peixoto ao post A atualidade de Shakespeare em 'O Mercador de Veneza', publicado ontem (abaixo).
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