Querem tornar ilegítima a reeleição de Lula, diz Chauí
Leia abaixo uma ótima entrevista com a filósofa Marilena Chauí (foto), sempre muito lúcida, inteligente e combativa. Está publicado na revista bimensal Teoria e Debate (edição julho/agosto 2007), editada pela Fundação Perseu Abramo, criada e mantida pelo Partido dos Trabalhadores.
A filósofa engajada e a militante comprometida não perdeu o espírito crítico de sempre, avalia – no final desta entrevista – que o PT hoje está “socialmente inexpressivo e politicamente ausente”.
E arremata, corajosamente: “Estou dizendo que o PT não analisa as conjunturas, não oferece ao governo pistas e caminhos, não cumpre uma tarefa orientadora, nascida de uma reflexão política profunda, oscila entre as lutas internas – sempre voltado para seu próprio umbigo – e a atitude defensiva, em lugar da atitude combativa que sempre o caracterizou”.
Mas vamos à entrevista, na íntegra.
Teoria e Debate: Na sua opinião, qual a origem de manifestações contra o governo Lula? As vaias ao presidente na abertura dos jogos é circunstancial ou é possível uma outra leitura? O que você pensa sobre o movimento Cansei?
Marilena Chauí: As manifestações ocorrem desde o mandato anterior. No início do primeiro mandato, as manifestações se dirigiam ao “messianismo populista” do presidente; a seguir, como tal crítica não funcionou, passou-se ao “despreparo intelectual”, isto é, à falta de diploma universitário (em todas as situações internacionais, por exemplo, enfatizava-se que o presidente “não falava outras línguas” e precisava de intérprete, ao contrário de FHC); depois, como isso também não funcionou, passou-se à compra do avião presidencial; mais adiante, foram os juros altos e erros na condução da política econômica por falta de “competência técnica” (um jornalista chegou a escrever em sua coluna diária que a arma que matou Jean Charles, em Londres, trazia as impressões digitais de Lula porque o brasileiro fora forçado a procurar emprego fora do Brasil! Detalhe: Jean Charles foi para a Inglaterra durante o governo FHC!); depois, falou-se no “loteamento” do Estado pelo governo, que distribuiu cargos para os filiados do PT (como se algum partido político que vencesse eleições para o Executivo não colocasse seus quadros no governo!); chegou-se ao “mensalão” e à proposta de impeachment (produziu-se a imagem do “governo mais corrupto da história do Brasil”!). Anteriormente, as manifestações visavam humilhar o governante para impedir sua reeleição.
Agora, visam tornar ilegítima a reeleição. Nos dois casos, exprimem o preconceito de classe de parte da classe média e parte da burguesia brasileiras: como um torneiro mecânico pode ousar ser presidente da República? Quanto às vaias na abertura dos Jogos Pan-americanos, sem dúvida foram orquestradas, pois vieram de um único ponto do estádio, o mesmo do qual vinham os aplausos frenéticos a César Maia. Aliás, não é curioso que, alguns dias depois (ainda durante o Pan) o Ibope e, no início de agosto (após o acidente da TAM), o Datafolha registram que não houve queda na popularidade de Lula e do governo?
Estranhas vaias, não é mesmo? Quanto ao Cansei, acho que Claudio Lembo (ex-governador de São Paulo, do DEM) e Luiz Nassif (jornalista) – que não podem ser considerados suspeitos de “petismo” – disseram o essencial: o primeiro afirmou que o movimento é coisa do tucanato endinheirado passando férias em Campos do Jordão; o segundo, que é o movimento “Oscar Freire” (isto é, da rua chique dos endinheirados paulistanos). Mais interessante, porém, foi uma entrevista de FHC à Folha de S.Paulo. Quando perguntado sobre as críticas feitas ao Cansei, respondeu que a culpa é do governo, o qual, favorecendo os muito pobres e os muito ricos, criou “brechas” entre as classes sociais e estimula o ódio de classe!
Penso que essa afirmação define o que quer o Cansei: atribuir a Lula a origem da luta de classes e propor, again, o impeachment. O movimento se diz democrático e não golpista. Desde quando os endinheirados brasileiros (e latino-americanos) deixaram de ser golpistas e se tornaram democratas?
Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo no dia 2 de agosto último, o cientista político Leôncio Martins Rodrigues diz que as pessoas estão tomadas por um estado de horror com a situação nos aeroportos e os erros de português do presidente, como se os dois exemplos tivessem o mesmo peso. Por que, para essas pessoas, filas em hospitais públicos e gente dormindo na rua não causam o mesmo horror?
Evidentemente, não têm o mesmo peso. Mas o interessante é que sejam apresentadas como se o tivessem. Por quê? Como se sabe, um dos aspectos definidores da classe média no capitalismo é o medo da proletarização e a identificação com os valores da classe dominante – a classe média quer “subir” e tem medo, pânico, de “cair”. Ora, no Brasil, um dos elementos de ascensão social e marca de prestígio para a classe média é o diploma universitário – como dizem alguns estudiosos, a relação da classe média com a educação é cartorial, isto é, não se volta para a qualidade da educação, e sim para a posse do diploma. Um presidente da República operário, sem diploma universitário e que comete erros de português é algo assustador para a classe média, pois coloca por terra seus mais caros valores.
Do ponto de vista da psicologia social e da ideologia, os erros de português têm o mesmo peso que a situação dos aeroportos, em primeiro lugar, porque ambos dizem respeito à vida da classe média, e, em segundo lugar, porque causam o horror da perda de referenciais que asseguram essa mesma classe sua auto-imagem. Dessa maneira, ela passa do preconceito de classe ao ódio de classe, o que é muito perigoso numa democracia frágil como a nossa. (Detalhe: para quem, como eu, que escuta rádio e vê noticiários de TV e capítulos de telenovela, os erros de português de Lula são nada: a mídia – supostamente universitária, ilustrada e competente – assassina a língua portuguesa diariamente durante 24 horas!)
Tenho dito que me espanta o silêncio e mesmo o descaso da mídia e dos intelectuais com greves do INSS, que causam centenas de mortes, ou com a situação das crianças e moradores de rua das grandes cidades, que passaram a fazer parte da paisagem como os semáforos, os veículos e os pedestres. Em contrapartida, há uma comovente e quase religiosa devoção midiática com relação aos atrasos de vôos e greves dos controladores aéreos. O curioso, porém, é ver um intelectual como Leôncio fazer coro a isso. É curioso, mas não surpreendente, pois Leôncio sempre foi crítico do PT desde a fundação do partido, afirmando que era um partido da “aristocracia operária”! De todo modo, ele coloca a sociologia a serviço do preconceito de classe e se torna uma espécie de porta-voz da classe média e dos endinheirados da Oscar Freire.
Qual sua opinião sobre o episódio Marco Aurélio Garcia, secretário especial da Presidência da República, tramado e apresentado pela imprensa como afronta à dor dos familiares das vítimas no acidente da TAM?
Nem é preciso dizer que se trata de uma acusação absurda, perversa e malévola, feita com fins políticos. Penso que Marco Aurélio não se deu conta de que seria um alvo privilegiado da mídia neste segundo mandato de Lula. Desde suas declarações, logo após as eleições, de que a mídia fora derrotada pela vontade popular e que cabia aos meios de comunicação fazer uma reflexão sobre sua conduta durante os anos 2005-06, ele se tornou objeto de todo tipo de crítica (houve colunas de jornais que o chamaram de totalitário e stalinista!) e, certamente, ficaram de olho nele. Tenho um amigo cineasta que considera que o cotidiano de Marco Aurélio está todo em vídeo e pronto para ser usado a qualquer hora. Esse mesmo amigo fez um estudo da imagem – que tipo de câmera e lente foram usadas (o ângulo da tomada permite saber de onde foi feita etc.). – e sugere que Marco Aurélio mova um processo por invasão de privacidade, já que ele não se encontrava em público quando foi filmado.
Penso que Marco Aurélio, como aliás todo o governo, se colocou na defensiva. Ele deveria ter dito que obsceno é o tratamento que a TAM dá aos passageiros, aos pilotos, à equipagem de bordo e aos aviões: a companhia conta em seu passivo, entre 1996 e 2007, 11 desastres, quatro deles em Congonhas (o avião que caiu no Jabaquara logo após decolar, o avião cuja porta se abriu e quase lançou a aeromoça nos ares, o avião que explodiu e que a TAM atribuiu a uma bomba que teria sido colocada por um professor de matemática que estava a bordo, um avião que derrapou e quase caiu na avenida 23 de Maio), outros em vários estados, um
Teria sido preciso que o governo, no mesmo dia do acidente, entrasse em rede nacional de rádio e televisão para expor o acontecido, explicar que nada poderia ser dito antes do exame da caixa preta e que iria processar jornalistas que atribuíam a Lula o acidente. Em lugar de informar a população e bloquear o sensacionalismo político da mídia, o governo ficou em silêncio e, quando falou, defendeu-se.
Como petista, está satisfeita com a atuação do partido neste momento?
Não. Nem neste momento, nem durante o mandato anterior. Sou dos que têm lutado pela reformulação do partido. O PT nasceu como primeira expressão histórica brasileira de um sujeito político novo, um sujeito coletivo: os movimentos sociais (movimento sindical, movimentos étnicos, movimentos de gênero, Comunidades Eclesiais de Base etc.). Nasceu como partido de quadros, porém foi perdendo essa característica definidora ao se tornar um partido de massa, que passou a dar prioridade às eleições e a privilegiar entre seus quadros os políticos profissionais.
Penso que isso se deve a vários fatores. Primeiro, o lugar subalterno que os movimentos sociais e populares passaram a ter na vida partidária – as lutas sociais democráticas participativas tornaram-se menos importantes do que as vitórias eleitorais. Como conseqüência, a formação de quadros partidários deixou de ser feita na e pela luta social, e a organização partidária deixou de ser conduzida, renovada e combativa porque nela perderam espaço exatamente os agentes da ação democrática. O segundo fator nasce desse primeiro: a distância entre o partido, os movimentos e a irrelevância dos agentes sociais perante as direções partidárias e os políticos profissionais permitiram que se cristalizasse uma tendência existente no PT, desde sua fundação, mas que era bloqueada pela militância de base, que era a tendência à centralização e à burocratização.
Ora, a burocracia não é uma forma de organização; é uma forma de poder cujas características principais são: a hierarquia (cadeias de comando e de subordinação em que cada grau obedece ordens do imediatamente superior, sem contestá-las nem modificá-las), o segredo do cargo (o poder de cada grau da hierarquia decorre de suas atribuições e funções permanecerem desconhecidas para os postos inferiores, de maneira que o segredo assegure a força de comando e de obediência), e a rotina (a “máquina” só pode operar pela repetição das ordens e das tarefas, sem inovação e criatividade). Essas três características do poder burocrático são o oposto exato da democracia, pois esta age por igualdade (e não por hierarquia), pela publicidade (e não pelo segredo) e pela criação temporal de direitos (e não pela rotina). A burocratização significou a perda de controle do partido por suas bases e pelos movimentos sociais. Significou também que o funcionamento partidário passou a ser responsabilidade de funcionários contratados para realizar serviços.
É preciso ainda mencionar o efeito da eleição de Lula. Quadros experientes e altamente politizados (mesmo que com todos os problemas que apontei), que ocupavam postos nas direções municipais, regionais e nacional, foram deslocados para o governo, sendo em sua maioria substituídos tanto pelos escalões inferiores da burocracia partidária quanto por filiados sem história política e partidária. Penso que esse conjunto de fatores tornou o PT socialmente inexpressivo e politicamente ausente, sua ausência sendo óbvia em todos os momentos de grave crise que o governo Lula tem enfrentado. Não estou dizendo que esperava o PT na rua 365 dias por ano.
Estou dizendo que o PT não analisa as conjunturas, não oferece ao governo pistas e caminhos, não cumpre uma tarefa orientadora, nascida de uma reflexão política profunda. Oscila entre as lutas internas – sempre voltado para seu próprio umbigo – e a atitude defensiva, em lugar da atitude combativa que sempre o caracterizou.
A entrevista foi conduzida por Rose Spina, editora da revista Teoria e Debate.
6 comentários:
Excelentes e lúcidas respostas da Chauí. Que bom ter disponibilizado a sua entrevista no blog! Abraço!
Grande análise a dela. Tenho acompanhado com atenção as recentes declarações dela. Vejam também http://conversa-afiada.ig.com.br/materias/446501-447000/446655/446655_1.html.
Maravilha encontrar esta entrevista aqui!
Grande entrevista. Lúcida, como era de se esperar. Um abraço.
Pois é. Além de tudo, a professora continua com o mesmo didatismo e segurança de sala de aula. Tive o privilégio inigualável de ser seu aluno. Aliás, também da dra. Ruth Cardoso, que nem parece ter permanecido perto ou conhecer o "Farol de Alexandria. Naquela época, se dizia a boca pequena que, o doutorado do "Farol" sobre a escravidão no RS, teria sido escrito pela prof. Ruth. Quem sabe?
Chauí perdeu o trem da história e embarcou de vez na paranóia do oficialismo chapa branca. Wie Shade!
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