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Surf no lixo contemporâneo: a que ponto chegamos! E que mundo deixaremos de herança para Keith Richards?

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Michael Jackson virou uma coisa de si próprio


Ruínas do pop

O mundo pop já conhece suas próprias ruínas. Toda ruína é semelhante na fisionomia, mas guarda uma história particular, perdida em suas lacunas.

A vida e a morte, e sua dança na dinâmica da vida pop - em que personalidade, expressão, imagem e mercadoria se imbricam de modo único -, já podem ser catalogadas em um conjunto de possibilidades, "topoi" existenciais dos que atuam no império da imagem espetacular.

Há muito se conhecem os suicídios desejados, atuados, da impossibilidade de sobreviver à contradição entre a arte e a negatividade social da crítica; o movimento da contracultura, moderno, versus o império do espetáculo e a imagem capital do ídolo, que se torna um reprodutor e também um responsável pelo sistema geral do fetichismo, do poder.

Os "war heroes" dos anos 1960 e 70 ou se mataram - Hendrix, Joplin, Morrison, Vicious - ou foram mortos, em um processo que revela a articulação de suicídio e assassinato, como o de Lennon; ou sobreviveram ao próprio suicídio protelado, como [Keith] Richards, ou [Eric] Clapton, ou o nosso Arnaldo Baptista; ou, ainda, aceitaram serem mortos simbolicamente ao reduzir o seu nível de conflito ao grau zero da mera reprodução do mundo como ele é.

O processo do apaziguamento histórico da ilusão de massas da contracultura foi muito violento, uma guerra simbólica, em que os ajustes foram feitos na carne e na vida, e à qual muitos não sobreviveram. A responsabilidade dessa violência foi totalmente transferida aos dionisíacos.

Michael Jackson representou outro modo de viver e de morrer no universo tanático dionisíaco do pop. Ele é um artista positivo, da afirmação do que existe, e da realização total desse próprio espaço social e histórico em seu corpo. Em primeiro lugar, tudo já foi dito sobre ele, e tocar outra vez no sistema explícito de suas formas e de seu dilema é simplesmente confirmar um clichê, uma reiteração do espetacular.

Mas, paradoxalmente, é este mesmo um dos aspectos mais importantes de sua forma humana e política: Jackson se transformou em um objeto de visibilidade total, ele passou a viver sob o signo daquilo que os psicanalistas chamam de "atuação", em uma escala de massas talvez jamais vista.

Isso quer dizer que apenas externalizando tudo o que sentia e vivia e passando ao ato, ao teatro da realidade exterior visível, o que portava em si, ele podia chegar a conhecer algo de si mesmo. Ao contrário de alguém que sonha, e preserva um ponto de mistério em seus sonhos, e uma relação de interioridade consigo mesmo, Jackson expulsava o sonho de si realizando-o na onipotência de seu lugar real de poder, no espetáculo e no dinheiro.

Sua atuação total dos anos 1980 e 90, seu espetáculo total, incluindo aí o próprio corpo, a ponto de virar uma coisa de si próprio, sinalizou mesmo a época de mudança do modo de orientar a subjetividade frente ao crescente poder do mercado e o falimentar valor da política: do humanismo do sujeito sonhador ao fetichismo e exibicionismo do psiquismo atuador, que busca se identificar com o poder crescente e total da coisa na cultura, a ação visível da própria forma mercadoria sobre os homens.

Seu sonho realizado, exposto ao voyeurismo desejante de milhões, totalmente projetado na realidade que o cercava, tornou-se de fato o pesadelo da regressão humana ao polimorfo perverso das origens de todos nós, metamorfoseado em espetáculo, hipervisível para todos, sem mais dimensão de intimidade ou interioridade.

Desde "Thriller" Jackson tornou-se o efeito especial por excelência, a imagem técnica da própria indústria atuando sem parar, encarnada.

O sonho foi acompanhado universalmente em tempo real.

Um travestismo total, estranhamente familiar, que invertia e suspendia o sentido de tudo: o bonito jovem negro tornou-se andrógino, mas também branco, não apenas Diana Ross, mas também Liz Taylor, mas também, à medida que envelhecia, tornou-se imune ao tempo, perpetuamente jovem, ou criança, mas também coisa, brinquedo, o próprio corpo da mercadoria, boneco do sonho pop americano, ou Barbie, que virou Chuck, ou ídolo pop que virou múmia, ou Michael Jackson que virou zumbi...

Este novo Frankenstein espetacular, que realizou em sua metamorfose milionária e sinistra o estatuto autoritário da técnica, do dinheiro e da mercadoria sobre o corpo humano e sobre as relações do sentido das coisas, acabou por virar, e revelar, o pesadelo americano e, se todos os seus consumidores contribuíram com seu gozo diante da degradação do jovem ídolo, no fim das contas Jackson simplesmente não poderia ser preso pela América, como deveria ter sido, quando passou a "devorar" criancinhas como em um conto de fadas bizarro, que vem do real.

Todos sabemos, e Michael Jackson teve a loucura (ou a sanidade?) de deixar isto explícito, que aquela criança linda que entrou para a indústria do espetáculo aos cinco anos de idade, com voz de "castrato" e o soul de Marvin Gaye, é que foi devorada pelo verdadeiro monstro do nosso tempo. Mas o seu próprio desejo também criou esse monstro.

No final dos anos 1960, quando os Jackson 5 assinavam seu contrato com a Motown, um outro gênio, de outra família da música negra e pop americana, Sly, com sua família Stone, cantava ironicamente aquilo que o lindo menininho Jackson, com seu canto e sua dança de fazer chorar, um dia representaria inteiramente, sacrificando a isso todo corpo e espírito: "All the plastic people" [Toda a gente de plástico].

O amor de Diana Ross por ele era ao mesmo tempo admiração pelo enorme talento da música negra e simples amor materno, numa preocupação limite sobre o destino humano daquele profissional bebê. Em 1989, Gilberto Gil sinalizava a conexão interior de transformismo, poder e morte, que todos intuímos no ídolo: "Bob Marley morreu/ Porque além de negro era judeu/ Michael Jackson ainda resiste/ Porque além de branco ficou triste".

Entre o menininho maravilhoso que foi invadido pela indústria tão radicalmente cedo e a coisa em si do espetáculo, e a cena perversa acompanhada por todos, do adulto que era pura visibilidade, temos a história da assimilação negra ao mercado e ao fetichismo industrial americano, que não se tornou libertária. Michael foi um verdadeiro cidadão Kane do momento avançado do capitalismo turbinado. De fato, um "cidadão quem?"; ou, melhor, "cidadão o quê?".

Artigo do psicanalista Tales Ab'Sáber. Publicado ontem na Folha.

Foto: Joe Jackson, pai do astro pop, vendo se ainda fatura algum, depois da morte do filho.

16 comentários:

Juarez Prieb disse...

Excelente artigo. Jacko Wacko entrou na máquina de moer carne da sociedade do espetáculo e saiu mumificado. Morreu faz tempo, mas só vai ser enterrado..... quando mesmo?

O pai dele é o 171 perfeito. Escroque perfeito. Deveria trabalhar com a véia do Piratini.

Ricardo Mainieri disse...

Um dissecação aguda e cortante da indústria do espetáculo, mostrando os meandros da fabricação e descartabilidade dos ídolos.
É, também, triste ver um pai querendo virar quase um gigolô de seu próprio filho.
Vivemos um tempo de bussinnes, onde tudo é permitido, desde que se tenha lucro...
Encruzilhada em que se meteu a civilização ocidental.

Ricardo Mainieri

dejavu disse...

A Inglaterra agracia seus cidadãos importantes, musicos ou não, através da própria Rainha com comendas tipo MBE e OBE. Tenho fotos de Clapton, Jeff Beck, Brian May, Beatles, David Gilmour, Jimmy Page, John Mayall e tantos outros recebendo um aperto de mão de Elizabeth II e um agradecimento formal do império britânico. Nos Estados Unidos aparentemente o que interessa é mais o lado negativo da vida particular com a devida adjetivação do que o trabalho que deixaram durante a vida ativa:
Billy Holiday (prostituta drogada); Chuck Berry (marginal de reformatório); Elvis (hipocondriaco viciado em remêdios controlados legais); Janis Joplin e Hendrix (drogados); Kurt Kobain (drogado); Michael Jackson (viciado em remêdios, pedófilo e afeminado), sem falar no estupendo Charlie Chaplin (comunista comedor de criancinha e devasso) e assim vão outros tantos!
Não será a sociedade, o País que é doente? Autofágico pede: decifra-me, te dou tudo que quiseres e no fim eu te devoro! Um canibal em função do dinheiro!
No Brasil pelo menos a gente esquece nossos gênios: Donga, Pixinguinha, Carlos Cachaça, Cartola, Noel Rosa e mais um rosário de artistas que deixariam qualquer país no planeta orgulhoso, mas nós...

Anônimo disse...

Entretanto, amigo de Reagan e Thatcher, merece o inferno, em vida ou na morte.
armando

André F. disse...

...Até o OzzY Osbourne foi recebido pela Rainha!!Dizem que beijou a mão e disse pra velhota que "a pele" dela "estava maravilhosa" etc.("a cútis"...) E que "artista" é esse que vai visitar Thatcher e Reagans da vida!??? Um Babaca!

Carlos Eduardo da Maia disse...

Muito bom o artigo. Nada a acrescentar.

jukão disse...

Ufa, que alívio. O DG passou hoje no teste MEIA de qualidade.

dejavu disse...

jukão, música não tem idade os artistas e nos sim. Música de boa qualidade, do blues, samba, choro jazz, clássica até o rock (incluindo ozzy) é eterna. A foto de Michael Jackson é velha conhecida e a posição politica do astro tenho certeza de que era a que fosse mais lucrativa pra ele - MJ era bastante prático neste ponto. Jamais veriamos Frank Zappa saindo da casa branca com Reagan, ou melhor, pena que Zappa não foi eleito!

André F. disse...

... Pena que o Zappa não fez exame de próstata !!...hehehe

dejavu disse...

Pena mesmo André F., mas a obra que ele deixou é gigantesca e difícil. Acho que não ouvi ainda 1/3 dela!

André F. disse...

...Eu mesmo não conheço 1/6...,mas creio que F.Z. compôs sinfonias tbém ...

Anônimo disse...

Por causa do Michael Jackson o Maia deve estar de luto. Deve ter até minuto de silêncio no Parcão.

André F. disse...

......E agora, Que Nome vai ocupar o lugar do "Máicol Jecson" e continuar sustentando esse exército que vivia dependente Dele no showbizzzzzz et companhia...!???

Anônimo disse...

Acho engraçado é que na primeira festinha, as bichas loucas saem saracoteando pelo salão ao primeiro Triller que tocar.
Agora, é fashion criticar....Tem abobado neste site que cansou de dançar o "na boquinha da garrafa", loucos para escorregar e sentar no gargalo. É ou não é?

dejavu disse...

"Michael Jackson virou coisa de si próprio", o título é perfeito, é realmente isto, o que não invalida o excepcional talento de jacko para a música (que não faz meu gênero) e fazer dinheiro. Michael Jackson era um empresário duro e sagaz ao ponto de passar a vender a sí mesmo como um produto, uma "coisa". Acho que já perceberam o show que está sendo transformado o enterro sem corpo seguido bovinamente pelos "fans". A pergunta de André F. é pertinente pois o espaço ocupado por MJ ficou vago!

André F. disse...

POR ESSAS E OUTRAS É QUE ,POR PIOR VIOLAÇÂO DA LEI PRATICADA POR ESSAS FIGURAS,ELES JAMAIS SE ESTREPAM REALMENTE.VÃO P/CADEIA ANTES POR SONEGAÇÂO...etc Eles fazem dinheiro SOLTOS...

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