Você está entrando no Diário Gauche, um blog com as janelas abertas para o mar de incertezas do século 21.

Surf no lixo contemporâneo: a que ponto chegamos! E que mundo deixaremos de herança para Keith Richards?

segunda-feira, 1 de outubro de 2007


O queixo trêmulo de um juiz branco

Raros são os momentos em que juízes do Supremo Tribunal se desnudam. A teatralidade do cerimonial, o mau uso da língua portuguesa - uma mistura quase intragável de termos empolados e jargão técnico (há exceções), além do peso da toga, mal encobrem a perpetuação do patrimonialismo de setores das elites nacionais, que resistem com intrepidez à emergencia de estímulos democratizantes de baixo para cima, abafando de forma opressiva todo e qualquer exercício igualitário de cidadania.

O juiz Joaquim Barbosa (foto) ao admitir a inconstitucionalidade parcial da Lei 10.254/1990 que instituiu o estatuto de servidores da administração estadual mineira e ardilosamente efetivou no serviço público pessoas não estáveis de autarquias e fundações, despertou a fúria de colega no plenário do Supremo Tribunal Federal, ao dizer com todas as letras que ali se alojava o "jeitinho". Diga-se de passagem, que o sistema estatal brasileiro foi e permanece híbrido, marcado pela combinação de acesso aos cargos públicos por concurso e pela dinâmica mais ou menos clientelista de contratações discricionárias. Os contratados, passado certo tempo, buscam com apoio político, incorporar-se ao Estado como estáveis.A última incorporação deu-se em 1988, conforme o artigo 19 do Ato de Disposições Transitórias que trata da estabilidade extraordinária. Há notícias de que conspira-se nas sombras da Câmara Federal por uma nova inclusão, nem tão social.

Mas voltemos ao ministro Joaquim Barbosa. Que ousadia, que petulância de alguém com origem nos "negativamente privilegiados" – para usar a expressão de Weber - descendente de escravos, afrontar com seu relatório as boas e generosas tradições do favor e da cooptação! Um negro educado nas letras jurídicas, doutor pela Sorbonne, poliglota, "cheio de pose" segundo alguns de seus pares, deveria ter mais compostura e humildade, ser agradecido ao estamento burocrático pela oportunidade de ascenção, fazer-se merecedor dos aplausos dirigidos aos poucos negros universitários até pouco tempo comuns em formaturas de cursos reservados às elites positivamente privilegiadas e que legitimavam não a igualdade de oportunidades e sim a exceção que confirmava o privilégio. Agora os aplausos tendem a sumir, substituídos pelo rancor daqueles que se sentem ameaçados pelo sistema de cotas e bolsas. Insuficientes, sem dúvida, mas necessárias e educadoras.

O rancor transubstanciou-se no plenário do STF no queixo trêmulo, no gesto e na resposta indignada pelo uso, certamente indecoroso, por parte do ministro Barbosa da palavra "jeitinho"- no mínimo vulgar aos ouvidos sensíveis do aristrocrático representante dos bons costumes político-jurídicos brasileiros.

Justiça seja feita. A inconstitucionalidade parcial defendida pelo ministro Barbosa foi aceita, o que prova que pressões regeneradoras de baixo para cima são possíveis.

Todavia não nos iludamos. O espírito de conciliação, o contentar a quase tudo e todos parece ser o traço predominante do governo Lula. À presença de um juiz como Joaquim Barbosa tem-se como contraponto a recente nomeação de Carlos Alberto Menezes Direito, mais perfeito representante do catolicismo ultamontano.

No Brasil não se morre de tédio, jamais.

Artigo do professor José Bento Monteiro, de São Paulo, exclusivo para o blog Diário Gauche.


6 comentários:

Carlos Eduardo da Maia disse...

Primeiro lugar, concordo com a decisão do Barbosa que tem mesmo que estancar os jeitinhos da vida jurídica e política deste complicado Brasil. Segundo lugar, o Ministro Menezes Direito é um técnico, um homem que tem uma memória impressionante e estuda pessoalmente (e não via estagiário) cada processo que julga. Até fiquei surpreso em saber que Direito era homem do catolicismo, mas -- fora isso -- foi uma boa indicação de Lula. Em terceiro lugar, da mesma forma que nunca se deve cogitar, sentir ou pensar (e muito menos dizer) que tal coisa é coisa de negro, também não se deve cogitar, sentir, pensar ( e muito menos dizer) que tal coisa é coisa de branco. Até mesmo porque os brancos, segundo o censo de 2000 são a maioria da população brasileira: Brancos – 53,7% da população,Pardos – 38,4% da população,Pretos –6,2%,Amarelos – 0,5%,Indígenas – 0,4%. Racismo não é via de mão única.

Anônimo disse...

Racismo não é fazer ou deixar de fazer críticas a quem se supõe de outra etnia. Ninguém está acima da possibilidade de ser criticado.

Racismo é fazer uso do poder, da cultura, da palavra, da lei, da coerção, enfim de meios os quais o outro (de etnia diversa) não conhece ou não dispõe para fins de depreciação ou dominação física ou psíquica.

Anônimo disse...

Maia, quanto ao ministro Direito (sic), a venerável Opus Dei concorda contigo.

O outro direito (normas positivadas) continua sendo instrumento de dominação e exclusão. Junto com a religião, claro. Simples assim mesmo.

Anônimo disse...

Parabéns ao blog pelo excelente post. É sempre um prazer acessar este lugar.

Anônimo disse...

Obrigado, Flics! Comunicarei ao professor Monteiro.

Anônimo disse...

A mesma Veja, que recentemente cobriu de elogios o ministro pelo seu desempenho no inquérito do Mensalão, publicou esse trecho de sua biografia, em 14/05/2003:

A indicação de Barbosa Gomes, que parecia ser a menos complexa, acabou sendo a mais trabalhosa. Ele foi um dos primeiros escolhidos, pois sua biografia contemplava à perfeição os aspectos que Lula queria prestigiar: negro, de origem humilde e com boa formação acadêmica. No meio do caminho, porém, o ministro Márcio Thomaz Bastos, a quem coube ouvir os candidatos e apresentar os nomes ao presidente, foi informado de um episódio constrangedor da biografia de Barbosa Gomes. Muitos anos atrás, quando ainda morava em Brasília, ele estava se separando de sua então mulher, Marileuza, e o casal disputava a guarda do único filho – Felipe, hoje com 18 anos. Na ocasião, Barbosa Gomes descontrolou-se e agrediu fisicamente Marileuza, que chegou a registrar queixa na delegacia mais próxima. O governo ficou com receio de que Barbosa Gomes se transformasse num caso como o de Clarence Thomas, o juiz negro da Suprema Corte americana que, ao ser nomeado para o cargo, foi acusado de assédio sexual, gerando um desgastante escândalo.
Enquanto o governo decidia o que fazer, os comentários pipocaram no próprio Supremo. A ministra Ellen Gracie, a única mulher da corte, no intervalo entre uma sessão e outra, mostrou-se preocupada. "Vai vir para cá um espancador de mulher?", perguntou ao colega Carlos Velloso. "Foi uma separação traumática", conciliou Velloso. "Mas existe alguma separação que não é traumática?", interveio o ministro Gilmar Mendes. Para desanuviar o ambiente, o ministro Nelson Jobim saiu-se com uma brincadeira machista, a pretexto de justificar a agressão: "A mulher era dele". O governo preocupou-se à toa. Indagado sobre o episódio pelo ministro da Justiça, Barbosa Gomes explicou que fora um desentendimento árduo, mas superado. Dias depois, Barbosa Gomes encaminhou ao Gabinete Civil da Presidência da República uma carta, assinada pela ex-mulher, reafirmando que tudo fora superado. Mais que isso, na carta Marileuza abonou o ex-marido – que não voltou a se casar e hoje mora com o filho do casal. "Na verdade, houve uma agressão mútua. Isso aconteceu num dia de ânimos acirrados. Somos amigos até hoje", disse Marileuza a VEJA. "Foi uma briga de família provocada por ressentimentos naturais numa separação", explicou Barbosa Gomes à revista. Com isso, o governo completou a trinca do Supremo sem temor. Agora, falta apenas o Senado aprovar o nome dos três candidatos.

Em
http://veja.abril.com.br/140503/p_050.html

Contato com o blog Diário Gauche:

cfeil@ymail.com

Arquivo do Diário Gauche

Perfil do blogueiro:

Porto Alegre, RS, Brazil
Sociólogo