Preâmbulo às instruções para dar corda ao relógio
Pensa nisto: quando te oferecem um relógio, oferecem-te um pequeno inferno florido, uma prisão de rosas, um calabouço de ar. Não te dão somente o relógio, muitos parabéns, que te dure pois é uma ótima marca, suíço com não sei quantos rubis, não te oferecem somente esse pequeno pedreiro que prenderás ao pulso e passeará contigo. Oferecem-te - ignoram-no, é terrível ignorá-lo - um novo bocado frágil e precário de ti mesmo, algo que é teu mas não é o teu corpo, que tens de prender ao teu corpo com uma correia, como um bracinho desesperado pendente do pulso.
Oferecem-te a necessidade de lhe dar corda todos os dias, a obrigação de dar corda para que continue a ser um relógio; oferecem-te a obsessão de ver as horas certas nas vitrines das joalharias, o sinal horário na rádio, o serviço telefônico. Oferecem-te o medo de o perder, de seres roubado, de que caia ao chão e se parta. Oferecem-te uma marca, a convicção de que é uma marca superior às outras, oferecem-te a tentação de comparares o teu com os outros relógios. Não te oferecem um relógio, és tu o oferecido, a ti oferecem para o nascimento do relógio.
Julio Cortázar
(De Historias de cronopios y de famas)
2 comentários:
Muito Bom !
Esse Cortázar não conhecia.
Pareceu-me com nuances de Jorge Luiz Borges, o que significa que é excelente!!!
Infelizmente, não li este livro, mas está na lista.
O último Cortázar lido foi "As armas secretas". Indispensável, como todos os outros.
Ricardo Mainieri
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