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Surf no lixo contemporâneo: a que ponto chegamos! E que mundo deixaremos de herança para Keith Richards?

segunda-feira, 29 de outubro de 2007


Zeca Baleiro pergunta neste artigo: Por que um cidadão vem a público mostrar sua revolta com a situação do país, alardeando senso de justiça, só quando é roubado?

O rolo do Rolex

No início do mês, o apresentador Luciano Huck escreveu um texto sobre o roubo de seu Rolex. O artigo gerou uma avalanche de cartas ao jornal, entre as quais uma escrita por mim. Não me considero um polemista, pelo menos não no sentido espetaculoso da palavra. Temo, por ser público, parecer alguém em busca de autopromoção, algo que abomino. Por outro lado, não arredo pé de uma boa discussão, o que sempre me parece salutar. Por isso resolvi aceitar o convite a expor minha opinião, já distorcida desde então.

Reconheço que minha carta, curta, grossa e escrita num instante emocionado, num impulso, não é um primor de clareza e sabia que corria o risco de interpretações toscas. Mas há momentos em que me parece necessário botar a boca no trombone, nem que seja para não poluir o fígado com rancores inúteis. Como uma provocação.

Foi o que fiz. Foi o que fez Huck, revoltado ao ver lesado seu patrimônio, sentimento, aliás, legítimo. Eu também reclamaria caso roubassem algo comprado com o suor do rosto. Reclamaria na mesa de bar, em família, na roda de amigos. Nunca num jornal.

Esse argumento, apesar de prosaico, é pra mim o xis da questão. Por que um cidadão vem a público mostrar sua revolta com a situação do país, alardeando senso de justiça social, só quando é roubado? Lançando mão de privilégio dado a personalidades, utiliza um espaço de debates políticos e adultos para reclamações pessoais (sim, não fez mais que isso), escorado em argumentos quase infantis, como "sou cidadão, pago meus impostos". Dias depois, Ferréz, um porta-voz da periferia, escreveu texto no mesmo espaço, "romanceando" o ocorrido.

Foi acusado de glamourizar o roubo e de fazer apologia do crime. Antes que me acusem de ressentido ou revanchista, friso que lamento a violência sofrida por Huck. Não tenho nada pessoalmente contra ele, de quem não sei muito. Considero-o um bom profissional, alguém dotado de certa sensibilidade para lidar com o grande público, o que por si só me parece admirável. À distância, sei de sua rápida ascensão na TV. É, portanto, o que os mitificadores gostam de chamar de "vencedor". Alguém que conquista seu espaço à custa de trabalho me parece digno de admiração.

E-mails de leitores que chegaram até mim (os mais brandos me chamavam de "marxista babaca" e "comunista de museu") revelam uma confusão terrível de conceitos (e preconceitos) e idéias mal formuladas (há raras exceções) e me fizeram reafirmar minha triste tese de botequim de que o pensamento do nosso tempo está embotado, e as pessoas, desarticuladas.

Vi dois pobres estereótipos serem fortemente reiterados. Os que espinafraram Huck eram "comunistas", "petistas", "fascistas". Os que o apoiavam eram "burgueses", "elite", palavra que desafortunadamente usei em minha carta. Elite é palavra perigosa e, de tão levianamente usada, esquecemos seu real sentido. Recorro ao Houaiss: "Elite - 1. o que há de mais valorizado e de melhor qualidade, especialmente em um grupo social [este sentido não se aplica à grande maioria dos ricos brasileiros]; 2. minoria que detém o prestígio e o domínio sobre o grupo social [este, sim]".


A surpreendente repercussão do fato revela que a disparidade social é um calo no pé de nossa sociedade, para o qual não parece haver remédio -desfilaram intolerância e ódio à flor da pele, a destacar o espantoso texto de Reinaldo Azevedo, colunista da revista Veja, notório reduto da ultradireita caricata, mas nem por isso menos perigosa. Amparado em uma hipócrita "consciência democrática", propõe vetar o direito à expressão (represália a Ferréz), uma das maiores conquistas do nosso ralo processo democrático. Não cabendo em si, dispara esta pérola: "Sem ela [a propriedade privada], estaríamos de tacape na mão, puxando as moças pelos cabelos". Confesso que me peguei a imaginar esse sr. De tacape em mãos, lutando por seu lugar à sombra sem o escudo de uma revista fascistóide. Os idiotas devem ter direito à expressão, sim, sr. Reinaldo. Seu texto é prova disso.

Igual direito de expressão foi dado a Huck e Ferréz. Do imbróglio, sobram-me duas parcas conclusões. A exclusão social não justifica a delinqüência ou o pendor ao crime, mas ninguém poderá negar que alguém sem direito à escola, que cresce num cenário de miséria e abandono, está mais vulnerável aos apelos da vida bandida. Por seu turno, pessoas públicas não são blindadas (seus carros podem ser) e estão sujeitas a roubos, violências ou à desaprovação de leitores, especialmente se cometem textos fúteis sobre questões tão críticas como essa ora em debate.

Por fim, devo dizer que sempre pensei a existência como algo muito mais complexo do que um mero embate entre ricos e pobres, esquerda e direita, conservadores e progressistas, excluídos e privilegiados. O tosco debate em torno do desabafo nervoso de Huck pôs novas pulgas na minha orelha. Ao que parece, desde as priscas eras, o problema do mundo é mesmo um só - uma luta de classes cruel e sem fim.

Zeca Baleiro, nascido José de Ribamar Coelho Santos, é cantor e compositor maranhense. Tem sete discos lançados, entre eles, "Pet Shop Mundo Cão".

8 comentários:

Carlos Eduardo da Maia disse...

Tenho algumas discordâncias, mas achei boa e sensata a opinião do Zeca Baleiro publicada na Folha de hoje. Também sou como ele, acho que a nossa existência é bem mais complexa do que o acadêmico debate entre pobres e ricos, esquerda e direita, etc. Na verdade, essa é uma discussão de classe média, talvez seja uma discussão de homem branco com ou sem rolex.O Huck tem suas razões, o Ferréz (que passou a ser classe média) tem suas razões, o Baleiro tem seus motivos e o capitão Nascimento também. Uma pergunta necessária, neste contexto de confusão é a seguinte: quem , afinal, alimenta o antagonismo social e fomenta o ódio? A situação de miséria e desigualdade social é, por si só, uma imensa fonte para ressentimentos e ódios, mas tem, ao mesmo tempo, gente que se alimenta disso.

Anônimo disse...

Missão cívica da semana: comprar TODOS os cds deste cidadão.

Anônimo disse...

Consolidei minha opinião: o marido da "barbie" Angélica, é um néscio.

Anônimo disse...

Texto primoroso, só não entendi o final. Pq ele rejeita rótulos e finaliza com uma máxima marxista?

Claudinha disse...

eu nunca havia dado muita importância ao baleiro, sua voz me chamava mais atenção do que as letras de suas canções. foi uma bela surpresa assisti-lo no opinião e, agora, outra grata surpresa com este texto.

Anônimo disse...

A desigualdade social nos níveis existentes no Brasil e suas consequências de ódio e ressentimento entre as classes sociais, provém de "alguém" que dela se alimenta. A parasitária classe rentista que, só neste ano, já se apropriou de mais de 72 bilhões de reais, como juros da dívida pública.

No meio de tanta porcaria que se le na midia brasileira, obrigado pelo belo texto do Zeca Baleiro.

Anônimo disse...

Omar, ele simula que rejeita, para dizer que tudo não passa de luta de classes mesmo, aquela velha luta de classes que não foi inventada pelo Marx, pois este apenas a desvendou para o mundo dando-lhe nome.

Anônimo disse...

Bravo. Cheguei a este texto procurando por slavoj Zizek no google, e olha que surpresa agradável descobrir um texto tão bem escrito de um artista que gosto mas não conhecia esse lado progressista.
Mas pecou com essa rasgação de seda ao dispensável comunicador Hulk.

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