“Tropa de Elite” é ilustração de “Vigiar e Punir”
Não é de graça que o personagem Matias estuda a obra “Vigiar e Punir” no curso de terceiro grau que faz junto a coleguinhas branquinhos e portadorezinhos de um cinismo tão atroz quanto infinito. Aliás, o cinismo parece ser uma tatuagem de nascença dos brancos e privilegiados brasucas. O filme do diretor José Padilha apanha e explora muito bem esse “detalhe”.
O longa-metragem ficcional (ou seria documentário?) Tropa de Elite é uma metalinguagem ilustrativa e hiper-realista do clássico foucaultiano “Vigiar e Punir”. Está tudo lá, roteirizado, decupado e gravado: a docilidade dos corpos, a fisionomia do soldado, o corpo como objeto e alvo do poder, o controle minucioso das operações do corpo, a disciplina que aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência), a microfísica do poder, a minúcia dos regulamentos, o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mínimas parcelas da vida e do corpo... está tudo lá no filme estrelado pelo ótimo Wagner Moura, como o implacável Capitão Nascimento.
Parece que o diretor Padilha escolheu o reconhecidíssimo Wagner para subliminarmente querer dizer que “afinal, tudo isso é ficção, gente!, não levem tão a sério, etcetera e tal”. Mas é só na aparência. O filme é um documentário na linha do “é tudo verdade!” Nada que já não se soubesse à náusea. Mas, quando mostrado em linguagem artística e ancorado nas categorias de Foucault, a coisa fica mesmo como um soco no baixo ventre de qualquer um.
Os apressados dirão – depois de uma leitura rasa e plana – que o filme sobre o BOPE do Rio de Janeiro é um elogio à tortura. Mas só os apressados, só os que têm ejaculação mental precoce, só os sem imaginação, ousarão afirmar esse óbvio ululante. É preciso olhar o que vem depois do óbvio, saber enxergar antes e além dos métodos de tortura. Saber quais são os suportes culturais e plataformas operacionais dessa instituição internacional chamada “tortura”.
A rigor, o que é a tortura diante daquele mondo cane com trilha funk que o filme mostra? A tortura é um detalhe, uma decorrência naturalizada do que é “ser soldado que vê o mundo como uma guerra”. Também está lá no Foucault (leia aqui o primeiro capítulo de “Vigiar e Punir”, esse trecho é praticamente o roteiro conceitual do filme de Padilha).
Ou alguém imagina uma polícia sem tortura? Seria como conceber o sol sem os raios abrasadores, ou os oceanos sem água, as geleiras sem frio.
Não justifico a tortura, entendo-a no contexto do Estado burguês, detentor do monopólio da violência simbólica legítima (Bourdieu). Acabar com a tortura não se resume a impulsos de moralidade hipócrita, mas a eliminar mesmo as instituições que a reproduzem como subproduto imanente de suas existências.
O filme não é uma fábula moral, muito ao contrário, ele não aponta nenhum caminho. Apenas nos mostra de forma eloqüente e crua que o que temos não nos serve e que devemos, afinal, saber inventar um outro mundo possível. Como na psicanálise, ninguém precisa denunciar ou apontar, mas o “paciente” dá-se conta sozinho.
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Fui ver o filme hoje à tarde. Cometi o imperdoável erro de escolher uma sala de cinema onde permitem o ingresso de pessoas portando alimentos, de uma dessas redes metidas a besta. Tem sujeitos (quase todos muito obesos) com imensos cones de comestíveis e guloseimas idiotas, e latas de bebidas em profusão.
Uma coisa desumana!
Passei a mão no veludo artificial da minha poltrona e senti a morna presença da gordura abjeta. O recinto tresandava a manteiga rançosa. E todos comendo incansavelmente, obsessivamente, ruidosamente.
Repugnante!
É essa gentalha que deposita no BOPE as esperanças vãs da solução dos problemas do País. Para eles, tudo fica assemelhado à inocente simplicidade de comer pipocas.
7 comentários:
Pois é caro Feil, palavras chaves no Vigiar e Punir, que servem para quase todos os processos de dominação capitalista: adestramento, docilidade (corpos soubmissos), coerção, nos conventos/quartéis/oficinas (militarização como estilo), disciplina e dominação
Não terei coragem de ver o filme. Não suporto cenas de tortura. Se reencarnação fosse fato, eu diria que esse pavor seria reflexo de alguma vida passada, de tão real a reação a esse tipo de cena. Talvez em casa, onde eu possa tirar o som e fechar os olhos.
Tortura tortura mesmo só tem a do saco plástico na cara de neguinho, praticamente só isso, mas o filme deixa a sugesta que a tortura é prática corrente na PM.
"Não justifico a tortura, entendo-a no contexto do Estado burguês, detentor do monopólio da violência simbólica legítima (Bourdieu)". Aonde fica o NKVD, o KGB e a Stasi?
De Castro, fica no mesmo lugar e com os mesmos métodos que a CIA em Guantánamo, Abu Graib, e nos vôos autorizados pelos governos europeus para transportarem clandestinamente os suspeitos de terrorismo. Estamos falando da mesma matriz.
Mas tem outra matriz, esta a da Igreja católica romana que criou tecnologias de tortura ainda no medievo.
O filme é muito bom. A parte que retrata os universitários "preocupados com as mazelas sociais" é a perfeição da realidade, como o filme todo.
Cinema só a sessão das 12:30...ninguém na sala!!!
Acredito que a grande maioria das pessoas está fazendo uma leitura "rasa" do filme, entendendo-o como um simples elogio ao BOPE. Porém, me parece acertada a opinião do Marco Weiss, na Carta Maior: não há "a" versão verdadeira da "guerra". Pode ser uma versão realista, mas não deixa de ser parcial. E se o protagonista fosse o traficante?
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