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Surf no lixo contemporâneo: a que ponto chegamos! E que mundo deixaremos de herança para Keith Richards?

terça-feira, 16 de outubro de 2007


“Não tínhamos necessidade de torturar Debray para que falasse. Tinha tanto medo que quando lhe soprávamos nos olhos começava a chorar.”

A história de Régis Debray

Passaram-se tantos anos e correu muita tinta... mas muitas passagens da história ficaram enredadas na corrente do tempo e das sucessivas versões do episódio que levou Che à Bolívia, à prisão e condenação na Bolívia do intelectual francês Régis Debray, à posterior prisão de Che, ao seu assassinato e à libertação de Debray. Biógrafos, comentaristas, agentes da CIA e até alguns companheiros do Che que sobreviveram à expedição boliviana deram deste episódio e da captura de Che argumentos sempre renovados, contrapostos, contraditórios, às vezes delirantes, outras vezes distantes a qualquer forma constatada da verdade.

Da meia dúzia de biografias válidas que existem do Che nenhuma oferece a mesma explicação.

Quem entregou Che?

A versão mais sólida aponta para Debray como o culpado por ter indicado onde Chevara se encontrava em seu périplo mortal pela Bolívia. Em 31 de agosto de 1996, em Buenos Aires, a primeira filha de Che, Aleida Guevara, acusou Debray de ter “falado mais do que devia”.

O acusado encontrou um defensor inesperado em Benigno, um dos ex-companheiros de Che na Bolívia, que negou que Debray fosse responsável direto pela prisão. Dois anos mais tarde, o próprio Benigno ia ser protagonista de uma dessas cenas de circo: já exilado na França, Benigno viajou para Miami para encontrar-se com Felix Rodríguez, um agente cubano da CIA que passou anos perseguindo Che por meio mundo. Ambos pousaram juntos numa foto para promover a paz entre cubanos. Inimigos de antes, reconciliados pela velhice e pelos interesses políticos do momento.

Rodríguez não comentou nesse momento as confidências que lhe havia feito em 1989 o jornalista norte-americano John Weisman, publicadas no livro Shadow Warrior. Ali, o ex-agente da CIA afirma que logo depois da captura de Debray – 20 de abril de 1967 – o intelectual francês, interrogado pela CIA, disse o essencial: “Foi o testemunho de Debray que convenceu a CIA a concentrar seus esforços na captura do revolucionário”.

Em 1996, o jornalista norte-americano John Lee Anderson escreveu uma das biografias de referência – Che Guevara – Uma biografia [Objetiva, 1997] – na qual também desenvolve o argumento de que foram as palavras de Debray que selaram o destino de Che. Outras versões, em especial a do intelectual e político mexicano Jorge Castañeda – Che Guevara – A vida em vermelho [Companhia das Letras, 2006] – e a do francês Pierre Kalfon – Che – Ernesto Guevara, uma lenda do século [Terramar, 1998] – dão volta a essas acusações e acusam Ciro Bustos de ter falado demais. Bustos era um dos companheiros de Che na Bolívia preso ao mesmo tempo que Debray. Lidas através do tempo, cada biografia parece responder a uma vontade pessoal de buscar um culpado: Bustos, Debray ou algum outro.

Os bolivianos que participaram daquela caçada aos revolucionários se riem com certa condescendência quando evocam os fatos que envolvem aquele momento da história. Um deles disse a Página/12: “Não tínhamos necessidade de torturar Debray para que falasse. Tinha tanto medo que quando lhe soprávamos nos olhos começava a chorar. Mas o que ele pôde dizer não muda a história, não nos ajudava muito. Nós já sabíamos por onde Che andava quando capturamos Ciro Bustos e Régis Debray. A CIA nos havia dado um respaldo decisivo”. Os bolivianos garantem hoje que não lhes fazia falta nem que Bustos nem que Debray lhes confirmassem que o comandante Ramón era o Che.

No ano passado, o general Gary Prado, que em 9 de outubro de 1967 capturou Che em La Higuera a mando da companhia dos Rangers, contou a Página/12 as condições da prisão, a lástima que lhe dava ter cercado o Che há algumas semanas, observando-o como pomba prisioneira até fechar para sempre o diário dessa aventura. “Esses últimos dias são totalmente surrealistas. Sabiam que o exército estava vindo em cima deles, nos haviam visto, sabiam que minha companhia tinha 160 homens. E o que fizeram? Em vez de se dispersarem e dizer, bom, até outro dia camaradas, deixemos os fuzis, compremos uma calça e uma camisa, tiremos a barba e salve-se quem puder, não, continuaram marchando rumo a quê? Ao sacrifício? Havia combatentes muito bons, de muita experiência, mas totalmente deslocados da realidade do país. Estavam perdidos numa zona onde as características são difíceis, aí ao pé de serra, no começo do Chaco, onde não há nem muito o que comer e onde as pessoas são muito especiais”. Prado narrou a este jornal a forma como o grupo de Che se dividiu em dois – num deles estava Debray – e como essa divisão os levou à derrota.

Régis Debray (foto, sentado) foi julgado e condenado a 30 anos de prisão. Quase quatro anos depois saiu em liberdade graças a uma negociação secreta com a França cujos compromissos nunca foram cumpridos por Paris. Há quase quatro décadas, os diplomatas bolivianos tomaram conhecimento de que Debray havia sido posto em liberdade lendo o jornal Le Figaro. Só no dia seguinte chegou de La Paz um telegrama com a confirmação e o anúncio de que chegaria um adjunto militar em missão especial, o general León Kolle Cueto, irmão do ex-primeiro secretário do Partido Comunista da Bolívia.

Nos anos em que Debray esteve preso na Bolívia o corpo diplomático boliviano era a ovelha negra dos círculos diplomáticos: “Não nos convidavam nem a um coquetel de beneficência”, recorda um deles. O general Kolle Cueto foi acreditado devidamente na chancelaria francesa e pediu um encontro com o ministro da Defesa, Michel Debré. Este nunca o recebeu. Cueto havia sido enviado a Paris para cobrar a recompensa acertada na negociação destinada a abrir as portas da prisão de Régis Debray. O acordo era amplo. A França havia se comprometido a entregar lanchas fluviais para a Força Naval boliviana, equipamento completo para um batalhão de engenheiros, treinamento a pilotos da Força Aérea e um hospital militar. Nunca receberam nem lanchas, nem hospital, nem equipamentos de nenhum tipo. Cueto comunicou o problema do encontro com o ministro à chancelaria francesa e obteve um encontro com o chanceler Maurice Schumann. O chanceler o recebeu e quando o general lhe revelou o acordo, Schumann lhe disse: “É impossível. A França não negocia essas coisas”. Cueto ficou sem o tributo que seu país havia negociado em meio a circunstâncias políticas nacionais muito especiais.

Na época, a Bolívia era governada pelo general Juan José Torres, um militar da ala esquerda das Forças Armadas que havia chegado ao poder mediante um golpe de Estado e logo foi derrotado por outro golpe perpetrado por Hugo Banzer. Um dos homens que negociaram o acordo com os franceses, que desempenhou um papel preponderante na posterior libertação de Debray, o ex-vice-chanceler Fernando Laredo, lembra os fatos sem nenhum rancor: “Os franceses não cumpriram [o acordo], mas isso foi culpa nossa. Nós lidávamos com a libertação de Debray, mas como o governo de Torres não controlava tudo do seu lado ele nos escapou das mãos. Havia outros grupos que também negociavam com os franceses. A França não nos enganou. Havia muita confusão e muitos negociadores. Foi isso que aconteceu”. Laredo disse a Página/12 que a libertação, com ou sem acordo, foi uma decisão política de Torres. “Sabíamos que se nós não o tirássemos outros militares o matariam. Para eles, Debray era um apoio substancial das guerrilhas da América Latina, o que não era certo. Era uma questão de princípio”.

A decisão de tirar Debray da prisão foi tomada pessoalmente por Torres. Mas não foi simples. Certos setores militares não queriam soltar Debray. Para consegui-lo foi montada uma operação a mando do major Rubén Sánchez, comandante dos Colorados da Bolívia, o regimento de escolta presidencial, militar de esquerda e membro do MNR. Foi com um comando a Camiri, onde Debray estava preso numa divisão do exército a partir da qual eram dirigidas as operações contra a guerrilha de Che. Sánchez tomou o prédio e libertou Debray. “O avião já estava esperando por ele. Quando o comando entrou em Camiri, Debray pensou que viriam matá-lo”, conta Laredo. O avião partiu rumo ao Chile.

Debray escreve numerosos ensaios e, como muitos outros ex-aventureiros de esquerda, suas idéias cheiram a salões para damas elegantes e assustadiças que acodem de vez em quando aos confessionários. Paris nunca entregou as peças da troca. Debray nunca pagou suas dívidas. Nem com a Bolívia, nem com a história da América Latina

Íntegra do artigo de Eduardo Febbro, publicado no jornal argentino Página/12, de 07 de outubro último.


6 comentários:

Anônimo disse...

Delicado, delicado! Olhar pelo retrovisor é sempre mais fácil...

Carlos Eduardo da Maia disse...

Debray não tem dívida nenhuma com ninguém. Pouco importa se ele entregou ou não entregou Che. O próprio Che, naquela altura do campeonato, já sabia que mais cedo ou mais tarde ele seria preso. A versão do Castañeda é, nesse sentido, mais plausível. Che participou de uma guerra perdida que não contou com a simpatia de ninguém, nem mesmo de Fidel -- que deu graças a deus quando Che saiu da pifia administração que fez para fazer revolução pelo mundo afora. Debray segue o caminho da imensa maioria dos intelectuais que a certa altura da vida resolveram trilhar os passos da utopia.

Anônimo disse...

Caro Maia, Debray segue o caminho da maioria dos ex-gauches que, como prostitutas, resolvem se lambuzar nas maravilhas do mundo do mercado e mais um punhado de moedas.

Carlos Eduardo da Maia disse...

Questão de ponto de vista, Armando, caiu a ficha do Debray, como ocorre com a imensa maioria das pessoas que na adolescência e na juventude foram gauche na vida. Como não existe proprietário e, muito menos, latifundiário da verdade absoluta seguimos a vida como ela é, com e sem prostitutas (cada um escolhe o que é bom para a tosse).Como a história não é roteiro predeterminado, só nos resta trabalhar com o ânimo que a semana despertou. Saudações plurais sem dogmas.

Anônimo disse...

Segue o Maia Como seguidor da Yeda Pantalhuda, e suas "idéias consistentes como maionese", que a Yeda "confessou" na RBS

Anônimo disse...

parecido com o mercadante!

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