Camus e Sartre, o duelo da ética
Como a Paris de Proust surgia por inteiro de uma xícara de chá, a cidade - agora existencialista - é a do Quartier Latin, onde se configuraram a amizade e a polêmica entre Jean-Paul Sartre e Albert Camus. Em "Camus e Sartre", Ronald Aronson reconstitui a conjuntura política, intelectual e dos afetos que aproxima Camus e Sartre na França dos anos 1930, mostrando dois amigos na contramão.
Enquanto Camus, já nos anos 30, se engaja na luta antifascista e se posiciona contra a política colonial na Argélia e, mais tarde, vem a ser o editor do "Combat" - jornal clandestino dos anos da resistência à ocupação alemã na Segunda Guerra -, Sartre se interessa apenas por questões epistemológicas e somente depois de 1941 começa a se aproximar da política.
Depois, é Camus quem progressivamente se afasta da militância política ou partidária. Com a Guerra Fria, separam-se definitivamente. A narrativa de Aronson transcorre no âmbito da Revolução de Outubro e do stalinismo na União Soviética, do nacional-socialismo e dos campos de concentração, dos arsenais nucleares e do terrorismo e, de modo geral, na modernidade capitalista e em suas formas de trabalho e acumulação, produtora de monotonia e tédio, desmotivação e não-senso - horizonte de "Os Caminhos da Liberdade" [Ed. Nova Fronteira], de Sartre, e "O Mito de Sísifo" [Ed. Record], de Camus.
Reavendo a bibliografia que identifica o "parti pris" sartriano pela violência como mediação dialética (a importância do ressentimento na luta de classes) e o de Camus como humanismo inscrito na tradição clássica da ética e da política da amizade, o autor indica os antecedentes da ruptura nas origens do pensamento dos filósofos. Não por acaso, Sartre se filia ao "cogito" cartesiano e à fenomenologia de Edmund Husserl, o idealismo propiciando a adequação das coisas ao intelecto, da história universal à ação transformadora do proletariado.
Elegendo o Merleau-Ponty de "Humanismo e Terror" [Ed. Tempo Brasileiro] por patrono, Sartre acata, em defesa do status quo revolucionário, a liquidação das oposições como garantia da continuidade da Revolução Russa.
De alguma forma, "O Ser e o Nada" [Ed. Nova Fronteira], de Sartre, anunciaria "as mãos sujas"; nele, o eu e o si mesmo constituem uma ameaça ao outro e o outro para o eu, seu olhar privando-me de meu mundo, aniquilando radicalmente a minha liberdade.
Quanto à intersubjetividade, é o lugar em que "ser olhado e visto" coincide com "ser conhecido e seqüestrado", a presença do outro me atinge em cheio e, objetivando-me, "nadifica" minha experiência de sujeito: a presença do outro em meu campo existencial não me promove à condição de sujeito, mas é morte e ruína no meu ser. "Entre Quatro Paredes" [Ed. Civilização Brasileira] dá o conflito do encontro: "não preciso de grades, o inferno são os outros".
O outro como obstáculo requer as "mãos sujas". Quanto a Camus, suas referências teóricas, além de Nietzsche, são o materialismo antigo e a idéia de "absurdo" - na compreensão de um mundo em que predomina "a força das coisas", como em "A Queda" e "O Homem Revoltado"- e os moralistas dos séculos 16 e 17 franceses, de Montaigne a La Rochefoucauld e Pascal, que não cederam à vertigem da coerência, acentuando contradições e máscaras, dentre elas, para Camus, a luta pelo poder e a "vontade de potência".
Dedicando-se ao romance anti-stalinista de Arthur Koestler "O Zero e o Infinito" [Ed. Globo], Camus recusa a razão histórica que se revelaria pela crítica do intelectual radical e pela ação consciente do proletariado. Para Camus, ao contrário, todo processo revolucionário revela a força menos do homem e mais da contingência na história; quando se procura o "incondicionado", nos deparamos com "coisas".
O debate filosófico-político entre eles reconduz à Revolução Francesa, à "filosofia revolucionária" e ao "revolucionário filósofo", a verdade de uma teoria medindo-se por sua eficácia, a revolução impondo sua seriedade com a morte e, sua realidade, com o terror.
Além disso, o século 20 encontrou nas análises da mais-valia de "O Capital" [Ed. Civilização Brasileira] o caráter científico do ressentimento de classe pelo conhecimento dos mecanismos da acumulação do capital, e a justificativa da luta se fundamentava na própria história, espaço do advento da sociedade sem classes, sem exploração econômica, sem a necessidade da religião e sem trabalho alienado. Para Sartre, na senda de Marx, a democracia é democracia de uma classe, o direito, direito de uma classe, a moral, moral de uma classe, a ciência, ciência de uma classe. Por isso, o "estado de exceção" revolucionário suspende a proibição de matar, o assassinato é sem culpa ou castigo porque se concebe como violência justa.
Já Camus acusa o que, em toda violência, há de ódio e desprezo entre os homens, voltando-se, assim, contra a pena de morte. À revolução defendida por Sartre, Camus opõe a revolta que não é luta pelo poder, mas o partido da não-violência, atento a que "em todas as lutas armadas a licenciosidade é uma grande atração", a impunidade é garantida e aprovada na luta pela vitória histórica.
O livro de Aronson, publicado no ano em que se comemoram os 90 anos da Revolução Russa, reabre a questão da ética da responsabilidade e da ética dos princípios, pois tanto Sartre quanto Camus, filosoficamente instruídos, sabem que "cada civilização, assim como cada homem, tem a totalidade das noções morais à sua disposição e, então, escolhe".
Artigo-resenha da filósofa Olgária Matos, titular do departamento de filosofia da USP. Publicado na Folha de hoje.
Como a Paris de Proust surgia por inteiro de uma xícara de chá, a cidade - agora existencialista - é a do Quartier Latin, onde se configuraram a amizade e a polêmica entre Jean-Paul Sartre e Albert Camus. Em "Camus e Sartre", Ronald Aronson reconstitui a conjuntura política, intelectual e dos afetos que aproxima Camus e Sartre na França dos anos 1930, mostrando dois amigos na contramão.
Enquanto Camus, já nos anos 30, se engaja na luta antifascista e se posiciona contra a política colonial na Argélia e, mais tarde, vem a ser o editor do "Combat" - jornal clandestino dos anos da resistência à ocupação alemã na Segunda Guerra -, Sartre se interessa apenas por questões epistemológicas e somente depois de 1941 começa a se aproximar da política.
Depois, é Camus quem progressivamente se afasta da militância política ou partidária. Com a Guerra Fria, separam-se definitivamente. A narrativa de Aronson transcorre no âmbito da Revolução de Outubro e do stalinismo na União Soviética, do nacional-socialismo e dos campos de concentração, dos arsenais nucleares e do terrorismo e, de modo geral, na modernidade capitalista e em suas formas de trabalho e acumulação, produtora de monotonia e tédio, desmotivação e não-senso - horizonte de "Os Caminhos da Liberdade" [Ed. Nova Fronteira], de Sartre, e "O Mito de Sísifo" [Ed. Record], de Camus.
Reavendo a bibliografia que identifica o "parti pris" sartriano pela violência como mediação dialética (a importância do ressentimento na luta de classes) e o de Camus como humanismo inscrito na tradição clássica da ética e da política da amizade, o autor indica os antecedentes da ruptura nas origens do pensamento dos filósofos. Não por acaso, Sartre se filia ao "cogito" cartesiano e à fenomenologia de Edmund Husserl, o idealismo propiciando a adequação das coisas ao intelecto, da história universal à ação transformadora do proletariado.
Elegendo o Merleau-Ponty de "Humanismo e Terror" [Ed. Tempo Brasileiro] por patrono, Sartre acata, em defesa do status quo revolucionário, a liquidação das oposições como garantia da continuidade da Revolução Russa.
De alguma forma, "O Ser e o Nada" [Ed. Nova Fronteira], de Sartre, anunciaria "as mãos sujas"; nele, o eu e o si mesmo constituem uma ameaça ao outro e o outro para o eu, seu olhar privando-me de meu mundo, aniquilando radicalmente a minha liberdade.
Quanto à intersubjetividade, é o lugar em que "ser olhado e visto" coincide com "ser conhecido e seqüestrado", a presença do outro me atinge em cheio e, objetivando-me, "nadifica" minha experiência de sujeito: a presença do outro em meu campo existencial não me promove à condição de sujeito, mas é morte e ruína no meu ser. "Entre Quatro Paredes" [Ed. Civilização Brasileira] dá o conflito do encontro: "não preciso de grades, o inferno são os outros".
O outro como obstáculo requer as "mãos sujas". Quanto a Camus, suas referências teóricas, além de Nietzsche, são o materialismo antigo e a idéia de "absurdo" - na compreensão de um mundo em que predomina "a força das coisas", como em "A Queda" e "O Homem Revoltado"- e os moralistas dos séculos 16 e 17 franceses, de Montaigne a La Rochefoucauld e Pascal, que não cederam à vertigem da coerência, acentuando contradições e máscaras, dentre elas, para Camus, a luta pelo poder e a "vontade de potência".
Dedicando-se ao romance anti-stalinista de Arthur Koestler "O Zero e o Infinito" [Ed. Globo], Camus recusa a razão histórica que se revelaria pela crítica do intelectual radical e pela ação consciente do proletariado. Para Camus, ao contrário, todo processo revolucionário revela a força menos do homem e mais da contingência na história; quando se procura o "incondicionado", nos deparamos com "coisas".
O debate filosófico-político entre eles reconduz à Revolução Francesa, à "filosofia revolucionária" e ao "revolucionário filósofo", a verdade de uma teoria medindo-se por sua eficácia, a revolução impondo sua seriedade com a morte e, sua realidade, com o terror.
Além disso, o século 20 encontrou nas análises da mais-valia de "O Capital" [Ed. Civilização Brasileira] o caráter científico do ressentimento de classe pelo conhecimento dos mecanismos da acumulação do capital, e a justificativa da luta se fundamentava na própria história, espaço do advento da sociedade sem classes, sem exploração econômica, sem a necessidade da religião e sem trabalho alienado. Para Sartre, na senda de Marx, a democracia é democracia de uma classe, o direito, direito de uma classe, a moral, moral de uma classe, a ciência, ciência de uma classe. Por isso, o "estado de exceção" revolucionário suspende a proibição de matar, o assassinato é sem culpa ou castigo porque se concebe como violência justa.
Já Camus acusa o que, em toda violência, há de ódio e desprezo entre os homens, voltando-se, assim, contra a pena de morte. À revolução defendida por Sartre, Camus opõe a revolta que não é luta pelo poder, mas o partido da não-violência, atento a que "em todas as lutas armadas a licenciosidade é uma grande atração", a impunidade é garantida e aprovada na luta pela vitória histórica.
O livro de Aronson, publicado no ano em que se comemoram os 90 anos da Revolução Russa, reabre a questão da ética da responsabilidade e da ética dos princípios, pois tanto Sartre quanto Camus, filosoficamente instruídos, sabem que "cada civilização, assim como cada homem, tem a totalidade das noções morais à sua disposição e, então, escolhe".
Artigo-resenha da filósofa Olgária Matos, titular do departamento de filosofia da USP. Publicado na Folha de hoje.
CAMUS E SARTRE - O FIM DE UMA AMIZADE NO PÓS-GUERRA
Autor: Ronald Aronson
Tradução: Caio Liudvik
Editora: Nova Fronteira
2 comentários:
Sartre era muito melhor contista e escritor do que filósofo e político, por um simples motivo: ele ingressou e não conseguiu sair do labirinto ideológico e religioso do marxismo. Camus -- e seu homem revoltado -- conseguiu ser mais arejado, esse sim era o grande existencialista. No final das contas e no resumo da òpera, Camus (que detestou Porto Alegre quando aqui esteve) dá de dez a zero no Sartre. Se ambos estivessem vivo. Camus estaria do lado dos estudantes venezuelanos e Sartre do lado do oficialismo conservador bufão.
menos, cara.
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