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sábado, 18 de agosto de 2012

Gramado monta um santuário do gauchismo de espetáculo




Depois não entendem por que somos motivo de gozação no Brasil inteiro

Em setembro de 2004 eu escrevi um pequeno artigo que chamei de “A Disneylândia de bombachas”, publicado no portal da Agência Carta Maior (leia aqui).

Neste artigo, eu brincava que se o movimento tradicionalista gaúcho (MTG) “tivesse bala na agulha, ousadia, empreendedorismo, poderia associar-se à Walt Disney Corporation no sentido de negociar o direito de ser objeto da dramaturgia materializada em parques temáticos e embalsamar mitologias e histórias”. O MTG, assim, “poderia montar uma mega Disneylandia de bombachas, que é a aspiração mais legítima do tradicionalismo de espetáculo”.

Pois, ontem, lendo o jornal Zero Hora, noto que esse artigo despretensioso foi uma espécie de vaticínio. Em Gramado, segundo o jornal do bairro Azenha, alguém montou uma Disneylândia mirim com temática baseada no mito do gaúcho. O jornal não identifica os “vivarachos”, responsáveis por esse caça-níqueis para arrancar dinheiro de turista desavisado.

Gramado e Canela viraram a sede de oportunistas que montaram uma usina de tradições inventadas. Eles exploram vários imaginários visando transformá-los em mercadorias para a demanda turística: o Natal cristão, o mundo do chocolate, uma ideia de cultura europeia transplantada, uma estética arquitetônica germano-suíça, uma confusa gastronomia da quantidade e do entulho (vide o chamado café-colonial), e a estética do frio, que nos últimos anos exagerou na dose a ponto de inventar a virtualidade da neve (em combinação com a mídia regional).

Todos esses elementos são - evidentemente - fakes, conscientemente falsificados, um simulacro mal ajambrado de um fantasmático imaginário de classe média calcado em ícones da infância-adolescência dos indivíduos. Mas um elemento se destaca pela autenticidade e uma certa originalidade: o festival de cinema, com altos e baixos na organização das edições anuais. Mas isso é outra história, e merece uma análise própria.

Gramadocanela (a conurbação-grife) se transformou numa linha de montagem de produtos turísticos voltados para iludir um público ingênuo e predisposto ao autoengano.

O mito do gaúcho ainda estava de fora deste cenário de espetáculo. Agora não está mais. Foi inaugurado ontem (17/8) o Parque do Gaúcho, que segundo o jornal ZH, “é um santuário de estancieiros e indígenas”.

A matéria vai mais além na confusão e na mistura de conceitos tomados emprestados da biologia (“miscigenação”), da antropologia (etnias autóctones), da economia regional da Campanha (a unidade produtiva da estância latifundiária, voltada para a economia mercantil de exportação, subordinado ao circuito mercantil inglês do século 19), e da sociologia (o gaúcho, como constructo mítico do homem-síntese do Rio Grande do Sul, outrora um tipo socialmente marginal, hoje, um gentílico aceito quase universalmente).

O jornal garante que o gaúcho resulta da miscigenação do estancieiro com o indígena. Ora, isso é de uma impossibilidade total. Zero Hora quer cruzar biologicamente - vejam só - um sujeito econômico (estancieiro) com um sujeito étnico-autóctone (índio) e garantir que o resultado disso é o constructo ideológico chamado “gaúcho”. Nem o mais fértil dos mentirosos (ou ficcionista) poderia conceber tal sujeito, fruto híbrido de uma “bricolage” improvável - a combinação não entre seres biológicos - mas entre o tipo ideal (Weber) da economia e o tipo ideal da etnia, que lograram parir o tipo ideal ideológico - o gaúcho. Sem esquecer que esse tipo ideal ideológico ainda sofreu uma completa repaginação moral, que o transformou no seu contrário, uma vez que originalmente era tido como um pária social e passou a ser o gentílico ufanista de todo um povo.

Não satisfeita com esse insólita unidade de materiais tão distintos, numa bricolage que não para de pé, o jornal Zero Hora ousa agregar outra dimensão cultural para sustentar a narrativa do nosso improvável “gaúcho”: refiro-me à religião, uma vez que ao festejado Parque do Gaúcho de Gramado está sendo conferido o grau de “santuário”. É isso mesmo, o gaúcho está sendo entronizado em um santuário em Gramado, ou seja, o antigo andarilho guasca (“sem rei, sem lei e sem fé”), sempre vivendo no limite da lei, da ordem, e da moral vigente, hoje ascende à condição do sagrado, do augusto e do divino.

Eu suspeito mesmo que essa gente desconhece o alcance da tolice que acabaram de cometer e que pode colocar o estado do Rio Grande do Sul e sua gente como objeto de deboche e escárnio dos demais "gauchos" do Uruguai e da Argentina, bem como dos demais brasileiros.

Inventar tradições é uma prática cultural admitida no mundo todo, especialmente depois que o turismo virou uma grande indústria que gera emprego e renda para milhões de pessoas em todos os lugares onde é incentivado. Mas como na arte da literatura de ficção, no Direito e na ciência Estatística não se pode violar um atributo intocável, o da verossimilhança. A narrativa do tal “gaúcho” não pode estar divorciada da realidade, é necessário que haja uma probabilidade de verdade na relação entre ideia e imagem.

Ademais essa súbita divinização do “gaúcho”, além de constituir um exagero passível de troça e riso viral, é um fator de exclusão de tudo quanto a cultura sul-rio-grandense tem de rica e variada. O RS tem certamente o mais colorido mosaico étnico-cultural do Brasil, somos imbatíveis neste quesito. Temos uma coleção de contribuições de nacionalidades e etnias europeias, de etnias autóctones, de afrodescendentes (Porto Alegre é a cidade brasileira com o maior número de manifestações ativas das religiões africanas, mais do que Salvador da Bahia.), etc. Por que, então, representar o sul-rio-grandense somente através do unidimensional “gaúcho”? Está certo, a expressão “gaúcho” virou um gentílico (como carioca, por exemplo), mas daí a garantir que esta projeção idealizada se transforme no sagrado (com direito a santuário), vamos convir, é encaminhar requerimento urbi et orbi para que sejamos motivo de raro estranhamento. De zombaria, mesmo.

P.S.: Alô, editores de Zero Hora, a palavra cacimba se escreve assim: cacimba, e não cassimba, como vocês permitiram escrever e publicar, em claro desrespeito ao público leitor. Ou “consumidor”, como vocês dizem nas internas. Ver fac-símile ao lado. 



9 comentários:

Silvia da Rocha Andrade disse...

Alô, editor desse Blog, a palavra "despretensioso" é com "S" e não com "C".

No mais, o texto está ótimo. Abraço!

Silvia da Rocha Andrade disse...

Alô, editor desse Blog, a palavra "despretensioso" se escreve com "S" e não com "C".

No mais,parabéns pelo texto, está ótimo. Abraços!

Anônimo disse...

Fantástico, concordo plenamente. O gaúcho inventado não corresponde nem com nossa história passada, nem com nossa condição atual.
Trata-se de uma mistificação fabricada sob o véu econômico especulador.

Anônimo disse...

falando nisso, tem outra disneylândia de ocasião sendo implantada ali no parque DA HARMONIA (e não parque dono da rede bunda suja), onde um bando de fanfarrões e boçais fantasiados de gaucho fica brincando de casinha e enchendo a cara (e o saco de quem mora nas redondezas) o dia inteiro. E "comemorando" a surra de relho que levaram dos imperiais. Realmente, depois não sabem pq. o RS é motivo de gozação.
ps: "cassimba"? bah, um mobralzinho amigo iria bem nesses semi-analfabetos da zerolixo.

Banca dos B-Boyzz disse...

Novamente Cristovão, novamente você tocou nesse ponto, de forma brilhante!!! kk!

Os USA-americanos atualmente chamam de nessecidade de ter um "amigo invisível", uma psicologia do infantilismo notada entre crianças de poucos anos de idade. Geralmente quando falam em Deus... Eu colocaria nossos mitos da TV tb nessa categoria.

Um dia eu acreditei que o "carioca" era malandro. Daí chegaram uns USA-americanos e compravam nos camelôs mais barato que nós, entendia mais de samba e capoeira que nós, traçaram mais mulheres q nós - percebi q eles eram mais malandros e tb mais bem nutridos que nós.

A pessoa cresceu nos anos 50 olhando o Bang-Bang na TV - pistolinhas imaginárias afloravam. Os que não foram pra guerra, esses idosos costumam dizer que deveriam ter ido - por orgulho. Por aqui existe a Vila Militar de Bangu (eu acho), que virou um documentário - os ex-combatentes tinham os nervos esfrangalhados.

Enfim, o que se diz... Nossos "terríveis" bandidos cariocas compram aarmas no shopping center, cruzam as melhores fazendas do oeste paulista e paranaense, sem serem notados, para poder "dominar" os morros do Rio. Mas... na realidade, um favelado não passa um dia sem levar um enquadro da polícia. Para muitos negros, é andar de pé de chinelo e não ter dinheiro para ir no Centro da Cidade.

No Porto Maravilha do Rio, local de tradicional comunidade baiana, essa que trouxe Folia de Reis e Samba pra cidade, criaram ali a cidade do Samba. Agora vá numa quadra para perceber a força do funk, do forró, do Gosppel - samba é coisa cada vez mais rara.

Bom, mais q isso, só abrindo um blog pra mim.
Parabénz, obriogado pelas letras bem escritas.
xnd



Cristóvão Feil disse...

Obrigado, Silvia, já corrigi.

Abç.

CF

Nelson disse...

Muito bom o texto, Feil.
O da "Disneylândia de bombachas" eu não havia lido, mas a comparação é bastante procedente. Tal como na Disney, tem gente inventando cada baboseira para atrair a atenção - e os $$$, por supuesto - dos incautos e menos avisados, que fica difícil entender como há pessoas que se sentem atraídas por elas.

Anônimo disse...

conheço o lugar tem muita pesquisa e estudo vai la conferir vale muito a pena la eu aprendi a diferença entre gaúcho e sul-rio-grandense
abraços

Marcelo disse...

o melhor destino para um jornal zero hora é o lixo.

quanto ao mito, obrigado cristóvão por fazer esse excelente trabalho.

dizem que setembro vai chover o suficiente para frustrar a festa dos de-bombacha no harmonia.

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