Depois não entendem por que somos motivo de gozação no Brasil inteiro
Em
setembro de 2004 eu escrevi um pequeno artigo que chamei de “A
Disneylândia de bombachas”, publicado no portal da Agência Carta
Maior (leia aqui).
Neste
artigo, eu brincava que se o movimento tradicionalista gaúcho (MTG)
“tivesse bala na agulha, ousadia, empreendedorismo, poderia
associar-se à Walt Disney Corporation no sentido de negociar o
direito de ser objeto da dramaturgia materializada em parques
temáticos e embalsamar mitologias e histórias”. O MTG, assim,
“poderia montar uma mega Disneylandia de bombachas, que é a
aspiração mais legítima do tradicionalismo de espetáculo”.
Pois,
ontem, lendo o jornal Zero Hora, noto que esse artigo despretensioso
foi uma espécie de vaticínio. Em Gramado, segundo o jornal do
bairro Azenha, alguém montou uma Disneylândia mirim com temática baseada no mito do gaúcho. O jornal não identifica os “vivarachos”,
responsáveis por esse caça-níqueis para arrancar dinheiro de
turista desavisado.
Gramado
e Canela viraram a sede de oportunistas que montaram uma usina de
tradições inventadas. Eles exploram vários imaginários visando
transformá-los em mercadorias para a demanda turística: o Natal
cristão, o mundo do chocolate, uma ideia de cultura europeia
transplantada, uma estética arquitetônica germano-suíça, uma
confusa gastronomia da quantidade e do entulho (vide o chamado
café-colonial), e a estética do frio, que nos últimos anos
exagerou na dose a ponto de inventar a virtualidade da neve (em
combinação com a mídia regional).
Todos
esses elementos são - evidentemente - fakes, conscientemente
falsificados, um simulacro mal ajambrado de um fantasmático
imaginário de classe média calcado em ícones da
infância-adolescência dos indivíduos. Mas um elemento se destaca
pela autenticidade e uma certa originalidade: o festival de cinema,
com altos e baixos na organização das edições anuais. Mas isso é
outra história, e merece uma análise própria.
Gramadocanela
(a conurbação-grife) se transformou numa linha de montagem de
produtos turísticos voltados para iludir um público ingênuo e
predisposto ao autoengano.
O mito
do gaúcho ainda estava de fora deste cenário de espetáculo. Agora
não está mais. Foi inaugurado ontem (17/8) o Parque do Gaúcho, que
segundo o jornal ZH, “é um santuário de estancieiros e
indígenas”.
A
matéria vai mais além na confusão e na mistura de conceitos
tomados emprestados da biologia (“miscigenação”), da
antropologia (etnias autóctones), da economia regional da Campanha
(a unidade produtiva da estância latifundiária, voltada para a
economia mercantil de exportação, subordinado ao circuito mercantil
inglês do século 19), e da sociologia (o gaúcho, como constructo
mítico do homem-síntese do Rio Grande do Sul, outrora um tipo
socialmente marginal, hoje, um gentílico aceito quase
universalmente).
O jornal
garante que o gaúcho resulta da miscigenação do estancieiro com o
indígena. Ora, isso é de uma impossibilidade total. Zero Hora quer
cruzar biologicamente - vejam só - um sujeito econômico
(estancieiro) com um sujeito étnico-autóctone (índio) e garantir
que o resultado disso é o constructo ideológico chamado “gaúcho”.
Nem o mais fértil dos mentirosos (ou ficcionista) poderia conceber tal sujeito, fruto híbrido de uma “bricolage” improvável - a combinação não entre seres
biológicos - mas entre o tipo ideal (Weber) da economia e o tipo
ideal da etnia, que lograram parir o tipo ideal ideológico - o
gaúcho. Sem esquecer que esse tipo ideal ideológico ainda sofreu
uma completa repaginação moral, que o transformou no seu contrário,
uma vez que originalmente era tido como um pária social e passou a
ser o gentílico ufanista de todo um povo.
Não
satisfeita com esse insólita unidade de materiais tão distintos,
numa bricolage que não para de pé, o jornal Zero Hora ousa
agregar outra dimensão cultural para sustentar a narrativa do nosso
improvável “gaúcho”: refiro-me à religião, uma vez que ao
festejado Parque do Gaúcho de Gramado está sendo conferido o grau
de “santuário”. É isso mesmo, o gaúcho está sendo entronizado
em um santuário em Gramado, ou seja, o antigo andarilho guasca (“sem
rei, sem lei e sem fé”), sempre vivendo no limite da lei, da
ordem, e da moral vigente, hoje ascende à condição do sagrado, do
augusto e do divino.
Eu
suspeito mesmo que essa gente desconhece o alcance da tolice que
acabaram de cometer e que pode colocar o estado do Rio Grande do Sul
e sua gente como objeto de deboche e escárnio dos demais "gauchos"
do Uruguai e da Argentina, bem como dos demais brasileiros.
Inventar
tradições é uma prática cultural admitida no mundo todo,
especialmente depois que o turismo virou uma grande indústria que
gera emprego e renda para milhões de pessoas em todos os lugares
onde é incentivado. Mas como na arte da literatura de ficção, no
Direito e na ciência Estatística não se pode violar um atributo
intocável, o da verossimilhança. A narrativa do tal “gaúcho”
não pode estar divorciada da realidade, é necessário que haja uma
probabilidade de verdade na relação entre ideia e imagem.
Ademais
essa súbita divinização do “gaúcho”, além de constituir um
exagero passível de troça e riso viral, é um fator de exclusão de tudo
quanto a cultura sul-rio-grandense tem de rica e variada. O RS tem
certamente o mais colorido mosaico étnico-cultural do Brasil, somos imbatíveis neste quesito. Temos
uma coleção de contribuições de nacionalidades e etnias
europeias, de etnias autóctones, de afrodescendentes (Porto Alegre é
a cidade brasileira com o maior número de manifestações ativas das
religiões africanas, mais do que Salvador da Bahia.), etc. Por que,
então, representar o sul-rio-grandense somente através do
unidimensional “gaúcho”? Está certo, a expressão “gaúcho”
virou um gentílico (como carioca, por exemplo), mas daí a garantir
que esta projeção idealizada se transforme no sagrado (com direito
a santuário), vamos convir, é encaminhar requerimento urbi et
orbi para que sejamos motivo de raro estranhamento. De zombaria,
mesmo.
P.S.:
Alô, editores de Zero Hora, a palavra cacimba se escreve assim:
cacimba, e não cassimba, como vocês permitiram
escrever e publicar, em claro desrespeito ao público leitor. Ou
“consumidor”, como vocês dizem nas internas. Ver fac-símile ao lado.
9 comentários:
Alô, editor desse Blog, a palavra "despretensioso" é com "S" e não com "C".
No mais, o texto está ótimo. Abraço!
Alô, editor desse Blog, a palavra "despretensioso" se escreve com "S" e não com "C".
No mais,parabéns pelo texto, está ótimo. Abraços!
Fantástico, concordo plenamente. O gaúcho inventado não corresponde nem com nossa história passada, nem com nossa condição atual.
Trata-se de uma mistificação fabricada sob o véu econômico especulador.
falando nisso, tem outra disneylândia de ocasião sendo implantada ali no parque DA HARMONIA (e não parque dono da rede bunda suja), onde um bando de fanfarrões e boçais fantasiados de gaucho fica brincando de casinha e enchendo a cara (e o saco de quem mora nas redondezas) o dia inteiro. E "comemorando" a surra de relho que levaram dos imperiais. Realmente, depois não sabem pq. o RS é motivo de gozação.
ps: "cassimba"? bah, um mobralzinho amigo iria bem nesses semi-analfabetos da zerolixo.
Novamente Cristovão, novamente você tocou nesse ponto, de forma brilhante!!! kk!
Os USA-americanos atualmente chamam de nessecidade de ter um "amigo invisível", uma psicologia do infantilismo notada entre crianças de poucos anos de idade. Geralmente quando falam em Deus... Eu colocaria nossos mitos da TV tb nessa categoria.
Um dia eu acreditei que o "carioca" era malandro. Daí chegaram uns USA-americanos e compravam nos camelôs mais barato que nós, entendia mais de samba e capoeira que nós, traçaram mais mulheres q nós - percebi q eles eram mais malandros e tb mais bem nutridos que nós.
A pessoa cresceu nos anos 50 olhando o Bang-Bang na TV - pistolinhas imaginárias afloravam. Os que não foram pra guerra, esses idosos costumam dizer que deveriam ter ido - por orgulho. Por aqui existe a Vila Militar de Bangu (eu acho), que virou um documentário - os ex-combatentes tinham os nervos esfrangalhados.
Enfim, o que se diz... Nossos "terríveis" bandidos cariocas compram aarmas no shopping center, cruzam as melhores fazendas do oeste paulista e paranaense, sem serem notados, para poder "dominar" os morros do Rio. Mas... na realidade, um favelado não passa um dia sem levar um enquadro da polícia. Para muitos negros, é andar de pé de chinelo e não ter dinheiro para ir no Centro da Cidade.
No Porto Maravilha do Rio, local de tradicional comunidade baiana, essa que trouxe Folia de Reis e Samba pra cidade, criaram ali a cidade do Samba. Agora vá numa quadra para perceber a força do funk, do forró, do Gosppel - samba é coisa cada vez mais rara.
Bom, mais q isso, só abrindo um blog pra mim.
Parabénz, obriogado pelas letras bem escritas.
xnd
Obrigado, Silvia, já corrigi.
Abç.
CF
Muito bom o texto, Feil.
O da "Disneylândia de bombachas" eu não havia lido, mas a comparação é bastante procedente. Tal como na Disney, tem gente inventando cada baboseira para atrair a atenção - e os $$$, por supuesto - dos incautos e menos avisados, que fica difícil entender como há pessoas que se sentem atraídas por elas.
conheço o lugar tem muita pesquisa e estudo vai la conferir vale muito a pena la eu aprendi a diferença entre gaúcho e sul-rio-grandense
abraços
o melhor destino para um jornal zero hora é o lixo.
quanto ao mito, obrigado cristóvão por fazer esse excelente trabalho.
dizem que setembro vai chover o suficiente para frustrar a festa dos de-bombacha no harmonia.
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