O
mercado é definido como uma instituição social e histórica que
supre a sociedade de valores de uso determinada (governada) pela lei
do valor, que submete a liberdade individual às quantificações
sem-qualidades de sua própria reprodução fetichizada.
As
qualidades (valor de uso) do trabalhador (agora) sem qualidades estão
diluídas para sempre em reproduções seriais de valores de troca
que o representam de forma transfigurada no mercado de quantidades
"sisificamente" repetidas.
A transcendência máxima do
máximo de mercadorias é realizar-se (qualificar-se) freneticamente
como dinheiro – a mercadoria modelo/forma da última vida social
ou, como diz Marx, a "expressão social do mundo das
mercadorias".
A
última ferida narcísica do homem é o mercado e suas derivações
alienadas da vida social pós-moderna. Os pós-marxistas-leninistas,
que julgam ter apanhado uma enfermidade da qual estão curados, esses
humanistas recém-chegados que buscam sofregamente uma (nova)
mito-teologia para se agarrar, devotam uma fé fatalista no mercado e
na lei do valor como instituições supra-históricas de insanável
determinação "natural". Para esses, o pequeno Narciso
interior está irremediavelmente transpassado pelo opróbrio e as
chagas de São Sebastião, atado à árvore da alienação: "Qual
o quê!, eu alienado?"
A
alienação é social, universal e histórica. Não é exclusiva do
trabalhador expropriado de mais-valia, mas generaliza-se socializando
o seu deletério vírus contaminante que compromete todas as
moléculas da vida social da modernidade.
Os
basbaques do neoliberalismo, por sua vez, propagam que a
racionalidade do mercado é inabalável e, para tanto, proclamam a
vitória sobre o planejamento contábil bolchevique com o seu
arremedo de mercado. Como ensina Hegel, há tão-somente uma
racionalidade em si, uma mecânica razão objetiva, "naturalizada",
inumana, que, ao promover a alienação, sujeita os homens (todos,
indistintamente, mesmo Bill Gates e Slavoj Zizek) como objetos
pétreos dessa racionalidade invertida.
Onde a
racionalidade (social) do mercado? Se a necessidade social que
aparece no mercado não é idêntica à necessidade real, mas somente
à "necessidade social solvente" (Marx). As diferentes
demandas estão condicionadas ao poder de compra dos indivíduos e,
portanto, às "relações mútuas entre as diferentes classes
sociais e suas posições econômicas relativas".
As carências
e necessidades (e mesmo desejos) dos indivíduos estão moduladas e
moldadas pela classe social a que pertence; não há como expressar a
sua efetiva e real necessidade via mercado, pois ele acaba esbarrando
no muro limítrofe da sua classe social, ficando aí, prisioneiro.
A
classe é uma sentença sociológica implacável.
Marcuse
pode esclarecer agora: "mesmo se o mercado manifestasse a
necessidade social real, a lei do valor continuaria a funcionar como
um mecanismo cego fora do controle consciente dos indivíduos. Ela
teria continuado a exercer a pressão de uma 'lei natural'
(Naturgesetz), cuja necessidade longe de impossibilitar a dominação
do acaso sobre a sociedade, antes a garantiria. O sistema de relacionar indivíduos independentes uns dos outros, pelo tempo de trabalho necessário contido nas mercadorias que eles trocam, pode aparecer a suprema racionalidade. Na realidade, porém, este sistema organiza apenas o desperdício e a desproporção".
Desperdício
e desproporção que são as usinas geradoras dos atuais
desequilíbrios ambientais do planeta, e ameaçador comprometimento
da vida.
"A
sociedade – diz Marx, no livro 3 de O Capital - adquire os artigos
que ela requer, dedicando à sua produção, uma parte do tempo de
trabalho disponível. Isto é, a sociedade adquire aqueles artigos
pelo gasto de uma quantidade definida de tempo do trabalho de que
dispõe.
Àquela parte da sociedade à qual a divisão do trabalho
prescreve a tarefa de empregar seu trabalho na produção do artigo
desejado deve, em troca disto, ser dado um equivalente resultante de
outro trabalho social, incorporado a artigos por ela desejados.
Não
há, porém, uma conexão necessária, mas apenas uma conexão
acidental entre o volume da demanda de um certo artigo pela sociedade
e o volume representado pela produção deste artigo.
É verdade
que todo artigo individual, ou toda quantidade definida de qualquer
espécie de mercadoria, talvez contenha apenas o trabalho social
requerido para a sua produção, e sob este ponto de vista o valor no
mercado de toda esta massa de mercadorias de um determinado tipo
represente somente o trabalho necessário.
Não obstante, se esta
mercadoria foi produzida em quantidade maior do que a demanda
temporária da sociedade por ela, então muito do trabalho social foi
desperdiçado e, neste caso, esta massa de mercadorias representa, no
mercado, uma quantidade de trabalho, muito menor do que realmente ela
tem em si incorporada".
Veja
que Marx cria a categoria valor de uso, em acréscimo ao valor de
troca, antes já reconhecido pela economia política clássica, e que
permite "desvendar um processo de necessidade cega, acaso,
anarquia, frustração" (Marcuse).
Essa nova categoria
marxiana auxilia a verificação do atendimento às necessidades
reais dos indivíduos.
Assim,
a lei do valor - agora se pode dizer - é a forma geral da Razão, no
sistema produtor de mercadorias. Ela se formata no mercado, mas é
conteúdo do processo de produção (lembra? "o tempo de
trabalho socialmente necessário"...).
Por isso, ele (o valor)
nunca se expressa em termos de substância, de qualidade, de
conteúdo, quer dizer, de trabalho abstrato, nem em termos de medida,
o tempo de trabalho socialmente necessário. O valor vai sempre se
manifestar, objetificar-se, sob a forma de mercadoria-dinheiro.
A
contradição, pois, entre forma e conteúdo, essência e aparência
é que promove a inversão que irá se refletir na consciência dos
indivíduos. A existencia material e a forma dessa existencia irão
modelar a consciência social dos indivíduos, em representações
ideológicas do real.
Já se vê que em todo o processo produtivo
capitalista há crescentes níveis de abstração da realidade, que
Marx apreende e usa como método de análise, a começar, para
ilustrar, pelo trabalho concreto individual que no mercado assume a
feição de trabalho abstrato universal e só assim ele cria valor,
sob o formato da mercadoria-dinheiro.
O trabalho individual de alguém
que manufatura uma mesa no âmbito doméstico não cria valor, e nem
essa mesa é uma mercadoria, é apenas um valor de uso (uma mera
utilidade) para consumo doméstico, entretanto, se ele fizer cem
mesas, por exemplo, empregando "N" pessoas, ele estará
produzindo mercadorias (valor de troca) que alcançarão valor no
mercado, e só no mercado. Mesas essas que serão valores de uso para
os seus adquirentes consumidores, realizando o ciclo da dupla aptidão
da mercadoria. Sem essa dupla natureza ela não se realiza, não
realizando valor, não valorizando o valor.
Por
ocasião do contrato social, que pressupõe o trabalhador livre para
vender a sua força de trabalho no mercado, em condições de
igualdade e justiça, se estabelece a base da produção capitalista.
O capitalista paga o valor da mercadoria, a força de trabalho, e
compra o seu valor de uso, quer dizer, o trabalho. Esse duplo caráter
da mercadoria trabalho é motivo da contradição inerente ao
trabalho assalariado.
O capitalista compra valor de uso e valor de
troca, mas paga somente valor de troca, mediante o salário, de
inhapa, ganha o valor de uso da força de trabalho. Essa inhapa é o
plus, é a mais-valia, o sobretrabalho não-remunerado, e, portanto,
alienado, subtraído, expropriado.
"Na
realidade – diz Marx –, o vendedor da força de trabalho, como o
de qualquer outra mercadoria, realiza seu valor de troca e aliena seu
valor de uso. Não pode receber um, sem transferir o outro. O valor
de uso do óleo vendido não pertence ao comerciante que o vendeu, e
o valor de uso da força de trabalho, o próprio trabalho, tampouco
pertence ao seu vendedor", o trabalhador assalariado.
Para a
mercadoria trabalho, o valor de troca é remunerado com salário, e o
valor de uso é alienado ao capitalista sob a forma de mais-valia.
Aquilo que no início do processo e sob a forma de um contrato
salarial era um exercício de liberdade marcado por uma relação
entre iguais e sob o signo da justiça, agora, aparece invertido: a
liberdade gera a exploração, a riqueza criada e apropriada por uma
classe recria mais desigualdade, e a justiça, sem pressupostos, é
uma impotência no reino da necessidade.
Artigo de Cristóvão Feil
Serigrafia "São Sebastião", de Glauco Rodrigues