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Surf no lixo contemporâneo: a que ponto chegamos! E que mundo deixaremos de herança para Keith Richards?

segunda-feira, 23 de abril de 2012

'A Dama de Ferro' é uma alegoria sobre o declínio do neoliberalismo




Ontem à noite, quando saí do cinema onde assistira ao filme da diretora britânica Phyllida Lloyd, me ocorreram três coisas. Senti uma vontade danada de beber uísque. Pura sugestão, é que madame Thatcher bebe o tempo inteiro do filme. Lembrei de Getúlio Vargas e da jornalista Gilda Marinho, uma figura meio folclórica no cenário high society porto-alegrense dos anos 70 e 80.

Me explico: Gilda Marinho foi atacada uma vez por um inimigo oculto e dado a brincadeiras pesadas e maliciosas. Tal pessoa mandou publicar nos classificados em jornal edição dominical um anúncio onde se vendiam dezenas ou centenas de garrafas de uísque vazias. "Tratar com Gilda Marinho, no telefone tal" - dizia o anúncio.

Confesso que desconhecia essa propensão à sede da Baronesa Thatcher. Quantas garrafas vazias ela estaria em condições de vender, hoje? Sendo assim, vejo que a guerra das Malvinas foi um verdadeiro duelo de pinguços. Ninguém desconhecia na Argentina e arredores que o general Leopoldo Galtieri, presidente-ditador na época da guerra pelas ilhas do Atlântico Sul, era outro que abrigava uma pedra de sal na garganta e buscava a cura através da ingestão de hectolitros de álcool.

E falando sobre Getúlio Vargas já podemos comentar o filme sobre a dama de ferro. A imortal frase de Vargas, na hora da morte, "saio da vida para entrar na história", não serve para a senhora Thatcher. Ela ainda vive, mas a história já a abandonou, antes mesmo de convidá-la a adentrar o seu templo de glórias e ilusões.

A qualidade do filme de Phyllida Lloyd está justamente no fato de não entrar muito no mérito político da ex-primeira ministra da Grã-Bretanha. Ao mostrá-la no fim da vida, já enferma pelo Alzheimer, açoitada por fantasmas os mais diversos, mas em especial, Denis, o marido pimentinha, Phyllida faz um julgamento branco do legado político da Baronesa.

David Cameron, o atual primeiro-ministro britânico, igualmente conservador como ela, não gostou do filme, e perguntou "por que logo agora aparece um filme sobre Thatcher?".

Ora, a resposta parece óbvia. Tudo aquilo que foi sólido e sagrado, tudo o que foi construído/destruído por Thatcher agora se desmancha no ar e é profanado. Margaret não saiu da vida e nem entrou para a história.

Margaret é um zumbi condenado a escutar vozes e a ter que ligar todos os eletrodomésticos da sua vetusta residência para ter um segundo de sossego e paz de espírito. Como já não pode mais fazer uma faxina nacional no País, o faz no seu quarto atulhado de lembranças e espectros zombeteiros.

A abertura do filme é brilhante. Margaret apanha meio litro de leite numa mercearia de esquina e não é reconhecida por ninguém. Ao contrário, é ignorada com ênfase de má educação, um sujeito se atravessa no balcão e não respeita a fila do caixa, um negro jovem e muito alto roça o seu traseiro e não presta a atenção à sua idade e sobretudo à sua antiga condição de primeira mandatária do País.

Ela sente que voltou a ser a moça do cotidiano (esse "nocivo espaço da atualidade", como dizia Lukács), quando auxiliava o seu pai na quitanda da família, interior da velha Inglaterra. Chega em casa e tem uma pilha de livros para autografar, até que volta a assinar Margaret Roberts, seu nome de solteira. O inconsciente é malcriado, mesmo não consultado emite seus pareceres sobre nós mesmos, e sobretudo contra nós mesmos.

O carrossel da história volta ao seu ponto de partida. Tudo o que fez de sagrado, está sendo profanado. Ela já não se reconhece no mundo por ela forjado.

'A Dama de Ferro' é um filme sobre o ocaso do neoliberalismo, mesmo sem citá-lo uma única vez e ainda que modelado na linguagem da subjetividade de uma senhora muito idosa governada por sua memória, nem sempre amigável.

Margaret Thatcher foi a face do neoliberalismo, agora está no declínio da existência, cumpre um roteiro meramente biológico, porque a história já a rechaçou e a economia não mais a reconhece.

Margaret sente que já não é mais deste mundo e o fantasma de Denis Thatcher (o marido, que morreu em 2003) insiste em apontar-lhe o excesso de ambição pessoal e o excesso de uísque. Neste ponto, a diretora e a roteirista (Abi Morgan) usam um recurso narrativo de sutil mas aguda crueldade: os fantasmas são uma forma de autocrítica para quem - arrogante - é incapaz de fazer autocrítica.

O fenômeno Thatcher resultou da profunda crise de acumulação do capital experimentada pela Grã-Bretanha nos anos 1970. O sindicalismo foi muito organizado e logrou obter êxito na disputa por melhores salários, condições de trabalho e demais conquistas sociais do chamado welfare state.

Enquanto houve excedente para ser dividido com o capital, os trabalhadores ingleses souberam negociar de forma a se apropriar de parte do bolo produtivo. Quando sobreveio a crise escasseou a redistribuição, surgiram os conflitos, as greves (que não ocorriam desde 1926), a estagflação (inflação de 26%) e rápido aumento das taxas de desemprego (cerca de 1 milhão de pessoas, em 1975).

Passou a haver crise de legitimidade, aumento das dificuldades fiscais, crise na balança de pagamento e monumentais deficits orçamentários. Trabalhistas e conservadores (partido de Thatcher) se revezavam no poder entre 1974 e 1979, com aprofundamento crescente da crise e recrudescimento das greves (transportes, limpeza urbana, setor saúde e inclusive coveiros fizeram paralisações prolongadas).

É neste contexto de profunda crise do capital pondo fim a uma prolongada política de aliança de classes entre os trabalhadores e a grande burguesia decadente que emerge ascensional a estrela de Maggie Thatcher.

O filme mostra a dificuldade sentida por ela para se impor junto ao establishment do partido conservador, não só por ser mulher, mas sobretudo por ser filha de um pastor metodista e pequeno comerciante do Norte do País. Uma outsider adventícia no seio do baronato que foi e é íntimo da Coroa inglesa.

Pois, para não decepcionar la crema y nata da velha nobreza inglesa, a filha do quitandeiro (como a chamavam à socapa nos corredores do partido) fez de tudo para se impor como a mais realista do Reino Unido.

Assumiu o poder em maio de 1979, já mostrando a que veio. Fez provocações diretas aos então fortíssimos sindicatos de trabalhadores e esgarçou o frágil tecido das relações capital/trabalho ao máximo. Conseguiu com isso, estimular muitas greves prolongadas e que paralisaram o país, por muitos meses. A greve dos mineiros durou quase um ano de confrontos entre o Estado e os sindicatos. Tudo o que ela desejava, politicamente.

O desmantelamento do Estado de bem-estar social atacou as áreas da saúde, assistência social, educação pública, Universidades, a burocracia estatal e o poder judiciário. O salário mínimo foi extinto e os impostos passaram a ser regressivos (poll tax, onde os ricos pagam menos e os trabalhadores pagam mais impostos), como forma de estimular os investimentos privados, já que o Estado estava se exonerando da economia.

Thatcher comprava briga em várias frentes ao mesmo tempo e procurava se legitimar através de um programa habitacional de venda direta das propriedades do Estado aos seus antigos locatários.

O discurso para conseguir o consentimento legitimador calcava nas consignas do ultraliberalismo de Friedrich Hayek: direito de propriedade individual (o plano habitacional garantia isso), cultura do empreendedorismo e do individualismo, regras de controle, responsabilidade financeira e produtividade nas instituições públicas, estímulo aos valores conservadores da classe média (Thatcher é o próprio triunfo da classe média), incentivo ao consumo intensivo à custa do endividamento em massa dos assalariados (como forma de criar um compromisso inescapável com o sistema).

A partir deste ponto, o centro da vida é o mercado. A mercadificação de tudo significa direitos de propriedade sobre processos, coisas e relações sociais (Harvey), supondo que tudo sob o céu é passível de ser atribuído um preço - em dinheiro - e portanto negociável nos termos de um contrato legal.

É o surgimento do chamado homem unidimensional, de que falava Marcuse ainda em 1964. O mercado (e as mercadorias) é um guia próprio para todas as ações humanas, ou seja, o mercado é uma ética.

A meu ver o mais grave dos legados da era Thatcher (1979-1990) é a tentativa de abolição da esfera política.

A queda de braço com o movimento sindical visava a eliminação física dos trabalhadores, como atores sociais reconhecidos. Ela decidiu importar carvão mineral para não negociar a agenda dos mineiros ingleses.

Preferiu comprometer mais e mais as finanças já combalidas do Estado a recuar um milímetro no seu intento de esmagar a capacidade política e orgânica dos sindicatos.

A anulação e a subsunção da esfera política às desigualdades do mercado é a suprema maldade do ultraliberalismo thatcherista. É o seu legado mais forte e permanente. Se a política diz respeito à coexistência e associação de homens diferentes, como nos ensina Hannah Arendt, já se vê que a sua derrocada representa um retrocesso civilizatório.

Aniquilar o fazer político é o mesmo que erradicar a pluralidade humana, estreitar a capacidade que adquirimos culturalmente de buscar objetivos que contemplem o diferente e o desigual, numa síntese dinâmica, provisória e em vias de permanente aperfeiçoamento. Matar a política é o mesmo que condenar o homem a renunciar a sua liberdade, é mantê-lo escravo das suas próprias contingências, batendo cabeça num eterno cotidiano opressivo e redutor.

O neoliberalismo é uma fórmula perversa de apagar a política em favor da ditadura dos mercados.

Os governos que sucederam a primeira-ministra Thatcher conseguiram abolir algumas medidas antissociais da ex-quitandeira, como: o salário mínimo (Tony Blair, trabalhista) e o imposto regressivo (John Major, conservador), mas a desqualificação da esfera política está sendo de difícil reversão, até porque isso se alastrou pelo mundo todo, com a crescente importância da economia sobre a política.

Nem a duplicação da taxa de pobreza na Grã-Bretanha, durante os 11 anos de Maggie no poder, pode ter repercussões tão deletérias como o ataque à política.

Talvez por esse motivo o filme de Phyllida Lloyd tenha igualmente um olhar tão distante da política propriamente dita, embora não seja um filme apolítico. Não o é. Mas, não falar não significa não ser.

'A Dama de Ferro' é um filme fortemente político, exageradamente politizado. Uma alegoria se notabiliza precisamente por não falar diretamente sobre a sua identidade. Uma alegoria é sempre um disfarce, uma representação do objeto ao qual se refere.

A diretora Phyllida e a roteirista Abi quiseram falar do neoliberalismo, justamente no momento do seu lento e inexorável crepúsculo, e o fizeram falando e narrando sobre Thatcher - hoje Baronesa Thatcher de Kesteven (viram, ela também virou la crema y nata da sociedade british!) - no ocaso de sua vida biológica. Simples e direto como pôr um ovo em pé.

Não é à toa que a direita britânica, a começar pelo primeiro-ministro Cameron, não gostou do filme.

Claro, foram cínicos, alegaram que a ex-primeira-ministra foi retratada na sua demência senil, que isso é cruel, etc. Mas jamais admitiram que falar de Thatcher é falar da senilidade do próprio sistemão que ela criou.

Por esse singelo motivo eu reputo o filme 'A Dama de Ferro' de genial. E, depois, mulheres fazendo cinema, sempre resulta em algo inteligente e instigante. 


Ah!, Meryl Streep está soberba como a Baronesa demente. Na saída do cinema ouvi alguém perguntar: "E a Meryl Streep, onde aparece no filme?" É o melhor elogio que uma atriz pode receber, melhor que o Oscar 2012. 

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Cristina K. dá uma no prego outro na ferradura



Para ninguém achar que a presidenta Cristina K é a nec plus ultra da esquerda latinoamericana (depois da correta expropriação da petroleira YPF-Repsol), quero sugerir a leitura de um livro - El Mal - do respeitado jornalista argentino, Miguel Bonasso. 

Recomendo porque eu já o li. É de arrepiar. 

Trata-se de uma denúncia contra o entreguismo disfarçado do casal K. Bonasso é um ex-peronista de esquerda, privou da amizade de Néstor e de Cristina K. e depois rompeu com eles, antes da morte de Néstor. Foi deputado na Argentina, quando teve oportunidade de conhecer a política de mineração do ouro e da prata dos governos Néstor e Cristina. É uma história de escândalos, corrupção, envolvimento no caso Irã/Contras, máfia internacional da mineração, família Bush, contrabando e comércio internacional de armas, políticos-ratazanas e muito-muito dinheiro azeitando essa máquina de malfeitos.

Conceito do jornalista Miguel Bonasso sobre o casal Kirchner: "O gatopardismo [mudar para tudo continuar igual], a venda do mesmo cachorro com diferentes coleiras é uma constante no Modelo K".

terça-feira, 17 de abril de 2012

O pós-lulismo exige uma outra esquerda



Os limites do lulismo

Há alguns anos, o cientista político André Singer cunhou o termo "lulismo" para dar conta do modelo político-econômico implementado no Brasil desde o início do século 21.

Baseado em uma dinâmica de aumento do poder aquisitivo das camadas mais baixas da população por meio do aumento real do salário mínimo, de programas de transferência de renda e de facilidades de crédito para consumo, o lulismo conseguiu criar o fenômeno da "nova classe média".

No plano político, esse aumento do poder aquisitivo da base da pirâmide social foi realizado apoiando-se na constituição de grandes alianças ideologicamente heteróclitas, sob a promessa de que todos ganhariam com os dividendos eleitorais da ascensão social de parcelas expressivas da população.

O resultado foi uma política de baixa capacidade de reforma estrutural e de perpetuação dos impasses políticos do presidencialismo de coalizão brasileiro.

No entanto é bem possível que estejamos no momento de compreensão dos limites do modelo gestado no governo anterior. O aumento exponencial do endividamento das famílias demonstra como elas, atualmente, não têm renda suficiente para dar conta das novas exigências que a ascensão social coloca na mesa.

É fato que o país precisa de uma nova repactuação salarial. As remunerações são, em média, radicalmente baixas e corroídas por gastos que poderiam ser bancados pelo Estado. Por isso, é possível dizer que a próxima etapa do desenvolvimento nacional passe pela recuperação dos salários.

A melhor maneira de fazer isso é por meio de uma certa ação do Estado. Uma família que recebe R$ 3.500 mensais gasta praticamente um terço de sua renda só com educação privada e planos de saúde. Normalmente, tais serviços são de baixa qualidade. Caso fossem fornecidos pelo Estado, tais famílias teriam um ganho de renda que isenção alguma de imposto seria capaz de proporcionar.

Entretanto a universalização de uma escola pública de qualidade e de um serviço de saúde que realmente funcione não pode ser feita sob a dinâmica do lulismo, pois ela exige investimentos estatais só possíveis pela taxação pesada sobre fortunas, lucros bancários e renda da classe alta. Ou seja, isso exige um aumento de impostos sobre aqueles que vivem de maneira nababesca e que têm lucros milionários no sistema financeiro.

Algo dessa natureza exige, por sua vez, uma mobilização política que está fora do quadro de consensos do lulismo. Porém a força política que poderia pressionar essa nova dinâmica ainda não existe no Brasil. Ela pede uma esquerda que não tenha medo de dizer seu nome.

Artigo do professor Vladimir Safatle, da Filosofia da USP. Publicado hoje na Folha.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Dilma começa a enfrentar o sistema financeiro



Mirando no alvo correto


Minutos depois de ser empossado, em 27 março de 2006, no Ministério da Fazenda, Guido Mantega ligou para o secretário-executivo da Pasta, Murilo Portugal. Queria conversar sobre o posto que assumiria. "Não tenho o que conversar porque estou demissionário", disse-lhe Portugal que, até aquele momento, havia sido o segundo deAntonio Palocci no ministério. A informação é do jornal Valor Econômico, edição de hoje.

Ao desligar, Mantega relatou o telefonema sem esconder a contrariedade, compartilhada pelos colegas de governo que estavam ao seu lado. Entre eles, a então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff.

Mantega continua no mesmo lugar e Portugal virou presidente do sindicato dos bancos. A trombada pública aconteceu ontem, quando Mantega subiu o tom para reagir às condições do sistema financeiro para a redução do spread, mas a rota de colisão começou a ser traçada cinco anos atrás, quando Dilma Rousseff ajudaria a remontar a equipe econômica do governo Luiz Inácio Lula da Silva depois da saída de Palocci.

A crise de 2008 imbicaria novamente a curva de juros para cima, reduzindo a marcha da colisão no segundo mandato de 
Luiz Inácio Lula da Silva.

Com a posse de 
Dilma, porém, a rota estava traçada e foi publicamente exposta pela presidente da República: a política monetária é a vantagem comparativa do Brasil num mundo que já derrubou os juros e ainda não tirou o pé da lama.

A curva descendente do 
Copom, a redução dos juros cobrados pelos bancos públicos e a subida de tom do ministro da Fazenda, Guido Mantega, com a Febraban são apenas a confirmação do norte perseguido por Dilma Rousseffdesde que começou a ter ingerência para além dos megawatts.

O que só agora começa a ganhar contornos claros é que a presidente, frequentemente criticada por inabilidade, monta uma ampla aliança política para isolar o sistema financeiro na guerra do spread.

Essa aliança passa pela recuperação do poder dos Estados com a troca do indexador de suas dívidas e o afrouxamento das condições em que incentivos tributários estaduais podem vir a ser concedidos. É a reversão de um processo iniciado duas décadas atrás com a implantação do Real.

Para conter a explosão de demandas - e de sua face monetária, a inflação - trazida pela Constituição de 1988, a estabilidade da economia neutralizou a política.

O país vinha do trauma do impeachment, que abortou o mandato de Fernando Collor, o único governador de Estado eleito para a Presidência da República desde a redemocratização.

Foi aquela crise política que abriu caminho para um plano de estabilidade monetária que esvaziou a federação. Teve como pressupostos o 
Fundo de Estabilização Financeira (FEF), que daria origem à DRU e canalizaria recursos de Estados e municípios para o Tesouro nacional, a Lei de Responsabilidade Fiscal, o acordo da dívida e a privatização dos bancos estaduais.

Com os cofres esvaziados, dívidas a pagar, limites rígidos para contrair novas e proibidos de usar recursos fiscais para atrair empresas, os Estados foram desprovidos de poder político na mesma velocidade em que cresceu sua dependência da União.

A subversão dessa ordem não está em jogo e tampouco se corre o risco de as finanças estaduais voltarem a ser a casa da mãe joana. Até porque o governo federal não parece estar interessado em abrir mão da concentração de recursos políticos e fiscais gerada pelo esvaziamento dos Estados.

O que está em curso, com a discussão da troca do indexador das dívidas estaduais e municipais e o afrouxamento das condições em que incentivos tributários podem ser concedidos pelos Estados, é a recuperação dos governadores como atores políticos capazes de engrossar o setor produtivo no cabo de guerra com o sistema financeiro.

Reabilitados no seu poder de conceder incentivos e investir na infraestrutura de seus Estados, os governadores podem voltar a ser interlocutores das federações industriais e sindicatos que ao longo dos últimos anos têm batido um bumbo surdo na toada do desenvolvimento.

A aliança é reforçada também pela posse em julho do primeiro presidente bancário da história da CUT. Em entrevista a Raphael Di Cunto, publicada hoje no Valor, Wagner Freitas diz que a investida contra o spread bancário será a principal bandeira da entidade sob sua presidência.


Até o senador 
Aécio Neves (PSDB-MG), principal liderança do partido que operou a lógica da federação subordinada, hoje diz que a União virou rentista dos Estados e reclama de juros superiores àqueles pagos pelas empresas aoBNDES.

Pelo teor das propostas feitas pelo sindicato dos bancos, está claro que esta é uma guerra que requer aliados até da oposição. Entre as condições para que o spread seja reduzido há muitas que dependem do Congresso e outras tantas que enfrentariam infinitas batalhas judiciais, como a exigência de que a previdência complementar dos correntistas entre como garantia do crédito.

Muitas dessas garantias são de difícil execução e os bancos sinalizam que, sem elas, não há redução de spread à vista. 



Enquanto isso, como os juros efetivamente já estão caindo, não é difícil para o governo convencer a opinião pública de que a diferença entre o custo de captação e o de empréstimo vai para um bolso que não é o do correntista.


Vitor Belous, leitor do blog Casa das Caldeiras (www.valoronline.com.br), é um exemplo do campo fértil para o discurso do governo. O leitor comenta a alegação de inadimplência para a formação do spread: "As instituições emprestam mais do que a renda mensal do cliente comporta, ultrapassando 30% do comprometimento mensal do tomador. Os bancos pregam em seus informes publicitários o uso consciente do crédito, mas a realidade dentro das agências é outra, bater metas".


Dilma, com os aliados que tem, é bem-sucedida na imagem de que combate a corrupção. É de se supor que também seja capaz de angariar apoio da opinião pública ao isolar quem pinta de vermelho as contas correntes. Na pior das hipóteses, já conseguiu que a banca, agora, se disponha a conversar.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Comissão da Verdade e os rituais da verdade



A noite escura

Deve ser um problema com o nome: "Comissão da Verdade". E também de número: sete pessoas. 

Não creio que haja sete caras no mundo que tenham o mesmo conceito de e sobre a verdade. 

Sempre prevaleceu a verdade de cada um, o assim é se lhe parece, de Pirandelo. Daí a dificuldade de dona Dilma nomear os membros que examinarão atos e fatos criminosos do período ditatorial.

Cada um de nós tem engasgado na garganta um detalhe daquele tempo. Alguns são sabidos, há documentos, fotos, textos e depoimentos bastante divulgados. Muita coisa, porém, continua em sigilo e é natural que a sociedade cobre do governo a verdade dessa "noche oscura" da vida nacional.

Pessoalmente, gostaria de comprovar um episódio que até hoje não sei se é verdadeiro, mas revelador da repressão naquele tempo. Certa noite, um oficial da Aeronáutica e dois soldados saíram da Base Aérea do Galeão numa kombi para apanhar oito inimigos do regime. Todos na zona sul da cidade. Já quase madrugada, o oficial decidiu voltar ao Galeão com os oito subversivos que constavam na lista que recebera de seus superiores.

Na altura da praça Mauá, ele resolveu contar os presos dentro da kombi e viu que só conseguira apanhar sete. Não podia se apresentar ao comando sem os oito detidos. Naquela hora e lugar, não havia ninguém nas ruas, mas ouviu o barulho de uma banca de jornais abrindo na esquina da rua São Bento para receber os primeiros exemplares. Encostou a kombi e mandou que o dono da banca, um italiano de 45 anos, recém-chegado ao Brasil, entrasse no carro.

Pouco depois, entregava no Galeão os oito subversivos, que foram jogados no mar, perto de Itaipu. Carimbaram em cima da lista que lhe haviam dado: "Recebido".

Artigo do escritor Carlos Heitor Cony. Publicado hoje na Folha.

O lar-pântano da direita


Por um movimento de desprezo público aos torturadores e serviçais da ditadura



Honrar o país

Aqueles que hoje desafiam a mudez do esquecimento e dizem, em voz alta, onde moram os que entraram pelos escaninhos da ditadura brasileira para torturar, estuprar, assassinar, sequestrar e ocultar cadáveres honram o país.

Quando a ditadura extorquiu uma anistia votada em um Congresso submisso e prenhe de senadores biônicos, ela logo afirmou que se tratava do resultado de um "amplo debate nacional". 

Tentava, com isto, esconder que o resultado da votação da Lei da Anistia fora só 206 votos favoráveis (todos da Arena) e 201 contrários (do MDB). Ou seja, os números demonstravam uma peculiar concepção de "debate" no qual o vencedor não negocia, mas simplesmente impõe.

Depois desse engodo, os torturadores acreditaram poder dormir em paz, sem o risco de acordar com os gritos indignados da execração pública e da vergonha. Eles criaram um "vocabulário da desmobilização", que sempre era pronunciado quando exigências de justiça voltavam a se fazer ouvir.

"Revanchismo", "luta contra a ameaça comunista", "guerra contra terroristas" foram palavras repetidas por 30 anos na esperança de que a geração pós-ditadura matasse mais uma vez aqueles que morreram lutando contra o totalitarismo. Matasse com as mãos pesadas do esquecimento.
Mas eis que estes que nasceram depois do fim da ditadura agora vão às ruas para nomear os que tentaram esconder seus crimes na sombra tranquila do anonimato.

Ao recusar o pacto de silêncio e dizer onde moram e trabalham os antigos agentes da ditadura, eles deixam um recado claro. Trata-se de dizer que tais indivíduos podem até escapar do Poder Judiciário, o que não é muito difícil em um país que mostrou, na semana passada, como até quem abusa sexualmente de crianças de 12 anos não é punido. No entanto eles não escaparão do desprezo público.

Esses jovens que apontam o dedo para os agentes da ditadura, dizendo seus nomes nas ruas, honram o país por mostrar de onde vem a verdadeira justiça. Ela não vem de um Executivo tíbio, de um Judiciário cínico e de um Legislativo com cheiro de mercado persa. Ela vem dos que dizem que nada nos fará perdoar aqueles que nem sequer tiveram a dignidade de pedir perdão.

Se o futuro que nos vendem é este em que torturadores andam tranquilamente nas ruas e generais cospem impunemente na história ao chamar seus crimes de "revolução", então tenhamos a coragem de dizer que esse futuro não é para nós.

Este país não é o nosso país, mas apenas uma monstruosidade que logo receberá o desprezo do resto do mundo. Neste momento, quem honra o verdadeiro Brasil é essa minoria que diz não ao esquecimento. Essa minoria numérica é nossa maioria moral.

Artigo do professor Vladimir Safatle, da Filosofia da USP. Publicado hoje na Folha

domingo, 8 de abril de 2012

Feito inédito do PT de Porto Alegre
























Maravilha! Alvíssaras!

Os últimos resultados das pesquisas de opinião em Porto Alegre indicam um fato inédito vivido pelo PT de Porto Alegre, ou seja, a sua completa autoanulação como legenda eleitoral e sobretudo como intelectual orgânico da esquerda sul-rio-grandense.

O partido que já tinha atrofiado a sua capacidade de intervenção política agora chega ao ponto mais degradado da sua jornada de rebaixamento orgânico: apresenta-se completamente despreparado até para disputar as eleições municipais de 2012. Se antes já havia se exonerado da política, agora está incapacitado até para disputar o trivial: eleições.

Enquanto isso, Porto Alegre vive a farra desbragada da mais selvagem especulação imobiliária (tendo o capital financeiro - sempre ele - por trás) sob o olhar libertino e dadivoso do Paço Municipal.

sábado, 7 de abril de 2012

Do marxismo ao pós-marxismo



O sociólogo sueco Göran Therborn vem ao Brasil para o lançamento do livro Do marxismo ao pós-marxismo? 
Serão três dias de eventos nas capitais de São Paulo, Rio Grande do Sul e Pará:  no dia 11/04 (quarta-feira, às 19h) é a vez da Câmara Municipal de Porto Alegre.
Planejado como um mapa e uma bússola, Do marxismo ao pós-marxismo?, de Göran Therborn, é uma tentativa de entender as mudanças sociais e intelectuais radicais entre o século 20 e o século 21. Não tem a pretensão de ser uma história das ideias, mas apresenta propósitos bem claros: situar os espaços de pensamento e as práticas de esquerda; identificar o legado do marxismo do século 20 como teoria crítica e analisar o pensamento radical mais recente. 

quinta-feira, 5 de abril de 2012

'Coelhinho' da Páscoa moralmente modificado


O marxismo e a deficiência mental (da direita)



Inquisição e extermínio

Paul Preston, o mais conhecido historiador britânico da Espanha moderna, revela a plena extensão do que define como "holocausto espanhol" do século 20 em seu novo livro, sobre a horrenda repressão e a violência perpetradas pelo general Francisco Franco. O livro também ajuda a explicar a oposição continuada que existe na Espanha quanto ao reconhecimento dessa história sombria.

Mais de 200 mil pessoas foram mortas na Guerra Civil Espanhola, e outras tantas morreram longe das frentes de batalha. Preston mostra como as vítimas foram estigmatizadas. Ele também detalha a violência do lado republicano: os assassinatos extrajudiciais, as execuções após julgamentos sumários, a destruição causada pelas colunas anarquistas e o papel de agentes soviéticos no massacre de trotskistas.

Mas é a violência sistemática das forças de Franco que causa maior choque. Preston descreve como 12 mil crianças foram roubadas de suas mães e as experiências médicas conduzidas pelo comandante do serviço psiquiátrico franquista, que buscava uma causa patológica para as ideias esquerdistas, um "gene vermelho" que vincularia o marxismo a uma deficiência mental, como parte de um racismo eugênico para "depurar nossa raça".

Recentemente, os juízes da Suprema Corte espanhola decidiram demitir o juiz Baltazar Garzón de seu posto, em um caso envolvendo gravações de conversas entre advogados de defesa e seus clientes em um processo de corrupção. Líderes locais do partido do premiê espanhol haviam sido acusados de conceder contratos em troca de propinas. A Suprema Corte decidiu que Garzón havia excedido em seus poderes.

Garzón é o juiz que solicitou a detenção do general chileno Augusto Pinochet em Londres por supostos crimes contra os direitos humanos. Ele também havia iniciado uma investigação sobre a morte de 114 mil pessoas durante a Guerra Civil Espanhola. A Suprema Corte decidiu, quanto a este processo, sustentar os termos da lei de anistia espanhola de 1977, afirmando que ela foi crucial na transição pacífica espanhola da ditadura à democracia, em 1975.

Há a informação de que cerca de 300 mil bebês espanhóis foram roubados de suas mães e vendidos para a adoção, com a conivência da Igreja Católica, entre 1939 e 1989. As mães foram informadas de que seus bebês morreram. A lei de anistia, uma vez mais, impede a investigação de crimes ocorridos na era Franco, mas promotores estão investigando 900 desses casos em todo o país.

A justificativa de freiras e médicos que perpetraram esses crimes era a de que as mães não eram competentes para cuidar de seus filhos, e que as crianças ficariam melhores sob a guarda de pais "devotos".

Artigo do professor Kenneth R. Maxwell, historiador britânico, publicado hoje na Folha.


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