Uma visitinha ao velho Hegel, para entender um pouco mais em que mundo vivemos
Hegel tem uma sentença que me parece definitiva para servir de legenda ao atual cenário de crise estrutural do capitalismo: Weltgeschichte ist Weltgerichte, a história do mundo é o juízo do mundo.
Por isso, cabe recordá-lo, em 1806: “Encontramo-nos num período importante, numa época de fermentação, na qual o espírito está dando um salto, saindo de sua forma anterior e assumindo uma forma nova. Toda a massa de representações e conceitos existentes até hoje, os nexos do mundo, dissolveram-se e se fundem como num sonho. Cumpre à filosofia, antes de mais nada, reconhecer e saudar essa aparição, embora haja quem se oponha inutilmente a ela e se aferre ao caduco”.
Blaise Pascal dizia que “a verdadeira filosofia zomba da filosofia”. É o que sempre orientou o pensamento hegeliano e o que manda que façamos no presente momento de erosão de paradigmas e de derretimento de conceitos.
Segundo o estudioso de Hegel, Jean Hyppolite, o professor alemão se preocupou mais com os problemas religiosos e históricos do que com problemas propriamente filosóficos. Hegel, diz Hyppolite, permanece bem próximo do concreto, e o concreto para ele é a vida dos povos, o espírito do judaísmo e do cristianismo. Somente recorre aos filósofos, particularmente Kant e os antigos, para atacar melhor e diretamente o seu objeto, a vida humana tal qual ela se lhe apresenta na história, as preocupações de Hegel são cada vez mais de ordem prática.
Ele estuda as religiões e passa a denominar o cristianismo de uma “religião privada” em oposição à “religião de um povo”, que seria própria da velha mitologia politeísta grega. Para Hegel, a religião antiga, mitológica, é a religião da cidade, uma intuição que o povo tem de sua realidade absoluta. Mas não é a religião admitida pelo moralismo kantiano, que postula a religião como puro ideal moral. É a religião como espírito supra-individual de um povo – oVolksgeist. Uma realidade histórica que ultrapassa infinitamente o indivíduo, mas que lhe permite encontrar-se a si mesmo sob uma forma objetiva – para bem além da estreita idealização moral e subjetiva de Kant.
Hegel diz que o indivíduo – reduzido a si mesmo – é uma abstração. Eis porque, observa Hyppolite, a unidade orgânica verdadeira, o universo concreto, para Hegel, será o povo. O individualismo, para ele, é produto do cristianismo, que ele chamará de “religião privada”. A vida pública cidadã da velha Grécia era estimulada pelo politeísmo, pelos mitos, pelas cerimônias que acabaram formando o que ele chama do “espírito de um povo”.
O homem livre é o homem que participa, diz Hegel. O indivíduo não poderia realizar-se em sua plenitude senão participando do que o ultrapassa e o exprime ao mesmo tempo, de uma família, de uma cultura, de um povo. É somente assim que ele é livre – explica o professor Jean Hyppolite acerca do alemão.
“A supressão da religião pagã pela religião cristã é uma das revoluções mais surpreendentes – conclui Hegel – , e a procura das suas causas deve ocupar mais particularmente o filósofo da história”.
O cidadão antigo era livre porque precisamente ele não opunha a sua vida privada à sua vida pública, ele pertencia à cidade. A cidade não era – como Estado – um poder estranho que o constrangesse. “Como homem livre, obedecia a leis que ele próprio fizera. Sacrificava a sua propriedade, as suas paixões, a sua vida, por uma realidade que era a sua” (Fenomenologia).
A mitologia religiosa antiga, pré-cristã, era a religião da cidade-cidadania, que atribuía aos seus deuses o seu nascimento, o seu desenvolvimento, e suas vitórias. Ao contrário do cristianismo, a religião pagã não era uma fuga para um além, era uma religião da vivência cidadã, participativa. A religião supra-individual – para além do indivíduo – da liberdade. Não havia, portanto, uma oposição entre indivíduo e Estado. Hegel dizia que o cidadão punha a parte eterna de si mesmo em sua cidade e não no além, como o cristianismo.
O Direito romano, para ele, já representa a substituição da vida ética da cidade, que aos poucos desaparece. A imagem do Estado, como um produto de sua própria atividade, desapareceu da alma do cidadão. Este se sente apenas a peça de uma engrenagem que já não lhe pertence ou domina. Este atomismo social prepara o caminho para o advento do cristianismo, onde o Direito é o triunfo do individualismo, mas o que é reconhecido neste homem é a pessoa abstrata, a máscara do homem vivo e concreto. A passividade do homem – diz Hyppolite – vem acompanhada dessa exigência cujo têrmo era o além.
É dessa decomposição da velha cidade que aparece a consciência infeliz, e o cristianismo, para Hegel, é uma expressão disso.
A religião cristã é uma teologia positiva, o homem só se submete a ela porque teme a Deus, um Deus que está muito além dele e do qual ele é escravo.
Mais adiante, Hegel diz que a “nossa religião [a cristã] quer elevar os homens à categoria de cidadãos do céu, cujo olhar está sempre voltado para cima, e com isso se tornam estranhos aos sentimentos humanos”.
Agora, o mundo da vida real e o do pensamento são diferentes, há um abismo entre a moral privada e o ethos - os costumes existentes.
A velha democracia grega está ultrapassada, porque no mundo moderno ela corre o risco de não ser mais que uma dissolução do Estado nos interêsses privados. Os governos já não são mais a expressão de todos, mas aparecem como tendo uma existência independente.
Com a queda de Wall Street [em 2008] o mundo não só dá um salto, como diz o mestre, mas dá cambalhotas, exigindo duas coisas de imediato: conceito (ferramentas para o pensamento) e ação. Hegel dizia que “se a realidade é inconcebível, então cumpre-nos forjar conceitos inconcebíveis”.
O inconcebível no conceito é a antinomia, o encontro da contradição viva e aguda. Portanto, estamos dropando a onda do inconcebível, vivendo a história, o destino e o julgamento do mundo.
O destino é a consciência de si mesmo, “mas como de um inimigo”, é aquilo que o homem é, mas que lhe aparece como se tendo tornado estranho.
A ação política “perturba a quietude do ser”, onde “só as pedras são inocentes, porque elas não agem, mas o homem deve agir”.
Inspirado em Hegel, Karel Kosik pergunta e responde: o que o homem realiza na história? Na história o homem realiza a si mesmo. Não apenas o homem não sabe quem é, antes da história e independente da história, mas só na história o homem existe. O homem se realiza, isto é, se humaniza na história.
Pela primeira vez na história da humanidade, um modelo de produção e reprodução da vida social cresce, se desenvolve e entra em colapso num intervalo de tempo que cabe na vida de um indivíduo. Um sujeito que tenha 50 anos hoje, conseguiu ver o início da hipertrofia dinheirista do capital, depois assistiu a Thatcher dizer que “não existe essa coisa chamada sociedade”, e, agora, olha assombrado para bancos e tradicionais montadoras de automóveis (uma delas chegou a dar nome à sociedade de consumo do século 20) recebendo socorro monetário do outrora tão desprezado Estado.
Na história se realiza o homem, lembra Kosik, e somente o homem. A mercadoria, o dinheiro, são criações culturais humanas, às vezes a ideologia faz com que nos esqueçamos disso, que é elementar, porque tão ocultado por camadas e mais camadas de feitiçarias (ou fetiches), passando a ser quase entidades naturais.
Portanto, não é a história que é trágica, mas o trágico está na história – como lembra Kosik. Não é absurda, mas é o absurdo que nasce da história. Não é cruel, mas as crueldades são cometidas na história. Não é ridícula, mas as comédias se encontram na história.
O breve ciclo de trinta anos que ora assistimos se fechar, no palco da história, teve um muito de tudo isso: tragédia, absurdo, crueldade e comédia.
Coisas da vida.
Hegel tem uma sentença que me parece definitiva para servir de legenda ao atual cenário de crise estrutural do capitalismo: Weltgeschichte ist Weltgerichte, a história do mundo é o juízo do mundo.
Por isso, cabe recordá-lo, em 1806: “Encontramo-nos num período importante, numa época de fermentação, na qual o espírito está dando um salto, saindo de sua forma anterior e assumindo uma forma nova. Toda a massa de representações e conceitos existentes até hoje, os nexos do mundo, dissolveram-se e se fundem como num sonho. Cumpre à filosofia, antes de mais nada, reconhecer e saudar essa aparição, embora haja quem se oponha inutilmente a ela e se aferre ao caduco”.
Blaise Pascal dizia que “a verdadeira filosofia zomba da filosofia”. É o que sempre orientou o pensamento hegeliano e o que manda que façamos no presente momento de erosão de paradigmas e de derretimento de conceitos.
Segundo o estudioso de Hegel, Jean Hyppolite, o professor alemão se preocupou mais com os problemas religiosos e históricos do que com problemas propriamente filosóficos. Hegel, diz Hyppolite, permanece bem próximo do concreto, e o concreto para ele é a vida dos povos, o espírito do judaísmo e do cristianismo. Somente recorre aos filósofos, particularmente Kant e os antigos, para atacar melhor e diretamente o seu objeto, a vida humana tal qual ela se lhe apresenta na história, as preocupações de Hegel são cada vez mais de ordem prática.
Ele estuda as religiões e passa a denominar o cristianismo de uma “religião privada” em oposição à “religião de um povo”, que seria própria da velha mitologia politeísta grega. Para Hegel, a religião antiga, mitológica, é a religião da cidade, uma intuição que o povo tem de sua realidade absoluta. Mas não é a religião admitida pelo moralismo kantiano, que postula a religião como puro ideal moral. É a religião como espírito supra-individual de um povo – oVolksgeist. Uma realidade histórica que ultrapassa infinitamente o indivíduo, mas que lhe permite encontrar-se a si mesmo sob uma forma objetiva – para bem além da estreita idealização moral e subjetiva de Kant.
Hegel diz que o indivíduo – reduzido a si mesmo – é uma abstração. Eis porque, observa Hyppolite, a unidade orgânica verdadeira, o universo concreto, para Hegel, será o povo. O individualismo, para ele, é produto do cristianismo, que ele chamará de “religião privada”. A vida pública cidadã da velha Grécia era estimulada pelo politeísmo, pelos mitos, pelas cerimônias que acabaram formando o que ele chama do “espírito de um povo”.
O homem livre é o homem que participa, diz Hegel. O indivíduo não poderia realizar-se em sua plenitude senão participando do que o ultrapassa e o exprime ao mesmo tempo, de uma família, de uma cultura, de um povo. É somente assim que ele é livre – explica o professor Jean Hyppolite acerca do alemão.
“A supressão da religião pagã pela religião cristã é uma das revoluções mais surpreendentes – conclui Hegel – , e a procura das suas causas deve ocupar mais particularmente o filósofo da história”.
O cidadão antigo era livre porque precisamente ele não opunha a sua vida privada à sua vida pública, ele pertencia à cidade. A cidade não era – como Estado – um poder estranho que o constrangesse. “Como homem livre, obedecia a leis que ele próprio fizera. Sacrificava a sua propriedade, as suas paixões, a sua vida, por uma realidade que era a sua” (Fenomenologia).
A mitologia religiosa antiga, pré-cristã, era a religião da cidade-cidadania, que atribuía aos seus deuses o seu nascimento, o seu desenvolvimento, e suas vitórias. Ao contrário do cristianismo, a religião pagã não era uma fuga para um além, era uma religião da vivência cidadã, participativa. A religião supra-individual – para além do indivíduo – da liberdade. Não havia, portanto, uma oposição entre indivíduo e Estado. Hegel dizia que o cidadão punha a parte eterna de si mesmo em sua cidade e não no além, como o cristianismo.
O Direito romano, para ele, já representa a substituição da vida ética da cidade, que aos poucos desaparece. A imagem do Estado, como um produto de sua própria atividade, desapareceu da alma do cidadão. Este se sente apenas a peça de uma engrenagem que já não lhe pertence ou domina. Este atomismo social prepara o caminho para o advento do cristianismo, onde o Direito é o triunfo do individualismo, mas o que é reconhecido neste homem é a pessoa abstrata, a máscara do homem vivo e concreto. A passividade do homem – diz Hyppolite – vem acompanhada dessa exigência cujo têrmo era o além.
É dessa decomposição da velha cidade que aparece a consciência infeliz, e o cristianismo, para Hegel, é uma expressão disso.
A religião cristã é uma teologia positiva, o homem só se submete a ela porque teme a Deus, um Deus que está muito além dele e do qual ele é escravo.
Mais adiante, Hegel diz que a “nossa religião [a cristã] quer elevar os homens à categoria de cidadãos do céu, cujo olhar está sempre voltado para cima, e com isso se tornam estranhos aos sentimentos humanos”.
Agora, o mundo da vida real e o do pensamento são diferentes, há um abismo entre a moral privada e o ethos - os costumes existentes.
A velha democracia grega está ultrapassada, porque no mundo moderno ela corre o risco de não ser mais que uma dissolução do Estado nos interêsses privados. Os governos já não são mais a expressão de todos, mas aparecem como tendo uma existência independente.
Com a queda de Wall Street [em 2008] o mundo não só dá um salto, como diz o mestre, mas dá cambalhotas, exigindo duas coisas de imediato: conceito (ferramentas para o pensamento) e ação. Hegel dizia que “se a realidade é inconcebível, então cumpre-nos forjar conceitos inconcebíveis”.
O inconcebível no conceito é a antinomia, o encontro da contradição viva e aguda. Portanto, estamos dropando a onda do inconcebível, vivendo a história, o destino e o julgamento do mundo.
O destino é a consciência de si mesmo, “mas como de um inimigo”, é aquilo que o homem é, mas que lhe aparece como se tendo tornado estranho.
A ação política “perturba a quietude do ser”, onde “só as pedras são inocentes, porque elas não agem, mas o homem deve agir”.
Inspirado em Hegel, Karel Kosik pergunta e responde: o que o homem realiza na história? Na história o homem realiza a si mesmo. Não apenas o homem não sabe quem é, antes da história e independente da história, mas só na história o homem existe. O homem se realiza, isto é, se humaniza na história.
Pela primeira vez na história da humanidade, um modelo de produção e reprodução da vida social cresce, se desenvolve e entra em colapso num intervalo de tempo que cabe na vida de um indivíduo. Um sujeito que tenha 50 anos hoje, conseguiu ver o início da hipertrofia dinheirista do capital, depois assistiu a Thatcher dizer que “não existe essa coisa chamada sociedade”, e, agora, olha assombrado para bancos e tradicionais montadoras de automóveis (uma delas chegou a dar nome à sociedade de consumo do século 20) recebendo socorro monetário do outrora tão desprezado Estado.
Na história se realiza o homem, lembra Kosik, e somente o homem. A mercadoria, o dinheiro, são criações culturais humanas, às vezes a ideologia faz com que nos esqueçamos disso, que é elementar, porque tão ocultado por camadas e mais camadas de feitiçarias (ou fetiches), passando a ser quase entidades naturais.
Portanto, não é a história que é trágica, mas o trágico está na história – como lembra Kosik. Não é absurda, mas é o absurdo que nasce da história. Não é cruel, mas as crueldades são cometidas na história. Não é ridícula, mas as comédias se encontram na história.
O breve ciclo de trinta anos que ora assistimos se fechar, no palco da história, teve um muito de tudo isso: tragédia, absurdo, crueldade e comédia.
Coisas da vida.
Artigo de Cristóvão Feil, sociólogo. Publicado originalmente neste blog Diário Gauche, em 12/dezembro/2008, portanto dois/três meses depois da grande quebra de bancos/seguradoras nos EUA, da chamada crise do subprime, e que tem continuidade até os nossos dias, agora assolando a Europa e a sua terminal moeda comum, o euro.
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