Por que o PT não foi, não é e jamais será social-democrata - parte 3 (final)
A social-democracia opta pelo neoliberalismo
O mal denominado socialismo democrático, da Segunda Internacional, não querendo romper com a ordem do mercado, adapta-se a ele, reformando-o por dentro; com isso supunham estar em trânsito para o socialismo. O reformismo pode não levar ao socialismo, mas certamente conduz a uma boa discussão.
Adam Przeworski sustenta que "as reformas levariam ao socialismo se e somente se fossem (1) irreversíveis, (2) cumulativas em seus efeitos, (3) conducentes a novas reformas e (4) orientadas para o socialismo". Ora, diz esse professor da Universidade de Chicago, as reformas são reversíveis. O neoliberalismo desfez muitas conquistas importantes do movimento social, nos últimos anos, tanto no Brasil, mas, principalmente, na Europa. As reformas, de outra parte, não são necessariamente cumulativas. Um sem-número de novos problemas são demandados diariamente pela produção-reprodução do capital. Problemas que sequer eram cogitados no início do século 20, hoje fazem parte de um pesadelo social, resultante do "papel civilizador do capital" como: o comprometimento ambiental; a autonomia do dinheiro e a heteronomia dos indivíduos; a violência horizontalizada; as máfias localizadas que competem com o Estado e atuam na lógica do valor; a esfera da subjetividade e os cacos de fascismo capilarizado nas relações interpessoais, familiares, profissionais, religiosas, étnicas, cuja usina geradora é a alienação do trabalho e a "valorização do valor" (Marx). "O sistema do direito, o campo judiciário são canais permanentes de relações de dominação e técnicas de sujeição polimorfas", conforme aponta Foucault. Menos do que uma legitimidade a ser estabelecida, o direito (a lei) é um procedimento de sujeição. A questão central do direito, a soberania do Estado e a obediência dos indivíduos, deve ser traduzida como dominação, heteronomia e sujeição.
Outra questão: nem todas as reformas são conducentes a novas reformas. Em várias situações, observa Przeworski, reformas que satisfazem demandas imediatas dos trabalhadores prejudicam possibilidades futuras. Ele lembra Rosa de Luxemburgo: "No grau em que os sindicatos têm condição de intervir no setor técnico da produção, são capazes somente de opor-se à inovação técnica. [...] Nesse aspecto, agem em uma direção reacionária". Hoje, pelo menos na Europa, o inimigo oculto da diminuição da jornada de trabalho são os sindicatos dos trabalhadores plenamente empregados. Oculto, por que não o dizem de frente, mas colocam empecilhos e pautam outras demandas que acabam inviabilizando a adoção da medida.
Finalmente, objeta o professor polonês, "mesmo que as reformas fossem irreversíveis, cumulativas e mobilizadoras, aonde elas conduziriam?" Certamente também não conduziriam ao socialismo. Reformas, no limite, conduzem a mais reformas, não ao socialismo. A questão do pleno emprego é uma demanda, hoje, de difícil atendimento. Mesmo que conquistada, tem como conseqüencia o retardamento das possibilidades de liberação do trabalho do jugo da alienação. Como o trabalho vivo está cada vez mais escasso, o movimento trabalhista e seus equivalentes partidários propugnam pela quixotesca medida de socializar o tempo de trabalho entre vários indivíduos, como forma de atender a mais trabalhadores. Isso aumenta a concorrência entre os trabalhadores jogando para o espaço a antiga solidariedade de classe e o "internacionalismo proletário", já que o indivíduo da China compete com o trabalhador de Igrejinha (RS).
O reformismo é o caminho inevitável dos socialistas em geral, mesmo os revolucionários pós-leninistas com franjas de poder; entretanto, tem que ser entendido nas suas limitações, como uma esfera que só tenha movimento de rotação (em volta do próprio eixo), onde está ausente o movimento de translação ao "céu socialista". E esse movimento de translação, de trânsito, é o busílis; como diz um personagem do Rubem Fonseca.
A adoção de reformas no exercício do poder executivo ocorre no marco da contingência política consubstanciada numa ação consciente face a relações desiguais de força. Contudo, no plano teórico não se pode borrar o horizonte das nossas determinações, e nem inventar sucedâneos com pedaços desconexos da realidade. O resultado, quase sempre, é um frankenstein-teórico de vida tão longa quanto as "células" que o compõem.
O sucedâneo da intuitiva metáfora de Adam Smith sobre a "mão invisível" do mercado, que tudo ajustará à sua lógica prosaica de melancias em carroça; seria a "mão visível" do mercado que, por um controle panóptico de técnicas infalíveis, teria o condão de instaurar o socialismo sem a abolição do mercado. O socialismo-com-mercado, então, seria uma questão de mais visibilidade ou menos visibilidade: o rebaixamento da teoria social a uma mera lei da ótica. No PT temos vários exemplos de filiação a esse bizarro socialismo-panóptico-de-mercado.
Se para os socialistas sinceros, ainda que infecundos, do maio de 68, o socialismo é a imaginação no poder; para o social-positivismo prevalece o postulado que rebaixa a imaginação à simples observação e controle gerencial do mercado. Reservando à imaginação tarefas tão criativas quanto ver televisão e consumir.
A contradição social-democrata ilustrada pela profissão de fé "marxista" em um socialismo baseado na luta parlamentar e num processo "natural" de superação do capitalismo não dava base de sustentação à gestão do Estado. Era preciso sustentar teoricamente o edifício de areia kautskiano. A primeira vitória nacional efetiva, pelo voto, dos social-democratas foi na Suécia, em 1920. Confrontaram-se, então, com a realidade, e foram socorrer-se de Keynes para imprimir alguma pecualiaridade diversa da política clássica do liberalismo.
"O keynesianismo forneceu o alicerce para o compromisso de classes, dando aos partidos políticos representantes do operariado uma justificativa para exercer cargos políticos em sociedades capitalistas", modelo do qual eles não queriam se afastar.
Agora havia uma razão para estarem no poder. A eliminação do "hiato do pleno emprego", assegurando que não haveria desemprego de homens e máquinas. Como? Aumentando o consumo. Com isso, refaz-se um círculo de legitimidade entre o pensamento distributivista social-democrata e a racionalidade keynesiana. Há uma convergência complementar de interesses entre o anseio "particularista" de consumo das classes assalariadas e o interesse "universal" da produção de mercadorias.
O casamento do keynesianismo com a social democracia foi exitoso até o final da década de 60. O declínio keynesiano corresponde à crise do capitalismo democrático, como assegura Przeworski. A ideologia neoliberal passa, então, a hegemonizar o conjunto das políticas econômicas do final do século 20, quando a social democracia não hesita em adotá-lo como base material de sustentação de uma fórmula de gestão que já não ruboriza-se em corresponder à integralidade dos interesses fetichizados da mercadoria. Onde, Tony Blair, do partido trabalhista inglês, e ex-primeiro-ministro da Inglaterra, pontifica como síntese acabada de um processo que transforma o indivíduo em estranho a si próprio, em favor de um personagem que suspeita dominar, mas que é por ele arrastado e subjugado.
A opção idealista, moralista e "naturalista" pela economia de mercado exauriu os remanescentes conteúdos "socialistas" da ideologia social-democrata. Tal como a taxidermia "empalha" animais para representá-los vivos à nossa memória; assim também a ideologia social-democrata representa um socialismo empalhado e nostálgico de um passado que nunca se faz futuro. E paralisa-se num eterno presente de divinização do mercado. Tributário dos próprios temores, se pereniza comovedoramente na ordem que só ousou contestar com frases respeitosas, sem verbo e sem predicado. Os ideais audaciosos estão arquivados na gaveta da resignação.
O neoliberalismo é a maquiagem refeita de uma velha ideologia que já foi tolerante com a democracia consentida pelo capital. A crise estrutural do sistema acentua-lhe a face autoritária e mal disfarça o sentido repúdio que sempre votou à democracia da forma liberal. "Os proprietários do capital rejeitam abertamente um compromisso que implica influência pública sobre o investimento e a distribuição de renda. Pela primeira vez em muitas décadas, a Direita possui um projeto histórico próprio: libertar a acumulação de todas as cadeias impostas pela democracia. Porque a burguesia não conseguiu completar a sua revolução." - finaliza Przeworski.