Comentário ao filme “Batismo de Sangue”
Culpa, cigarros e pau-de-arara
Ontem, finalmente consegui assistir ao filme “Batismo de Sangue” (2007), do diretor mineiro Helvécio Ratton, roteirizado a partir do livro homônimo de Frei Betto (1983).
Um filme tecnicamente bem realizado, com uma reconstituição de época onde é difícil se encontrar defeitos (talvez na churrascaria cênica de São Leopoldo, duvido que já existisse o tal rodízio de assados por volta de 70) e onde todos fumam cigarros compulsivamente, o tempo todo. A fotografia é boa (ganhou prêmio no Festival de Brasília) mas de textura irregular, em cenas no interior da França, onde o protagonista Frei Tito acaba seus dias (num convento dominicano construído a partir de um projeto de Le Corbusier), ela se modifica de súbito.
Quero dizer que não li o livro do Frei Betto. Por isso mesmo só posso comentar o filme, tão somente. Não sei o motivo, talvez apenas uma cisma, mas eu imaginava que o livro/filme tratasse de forma mais abrangente o tema da luta armada. Não é nada disso, o objeto narrativo gira em torno dos religiosos dominicanos, mais precisamente sobre o jovem frade Tito de Alencar Lima, cuja história acaba numa tragédia pessoal devastadora. A coisa é tão dramática, crua e profunda que eu temo que o filme não tenha podido alcançar o subterrâneo no qual foi se afundando Frei Tito. Precisaríamos, talvez, de um Ingmar Bergman para dar conta dessa empreitada.
São muitas as camadas de material objetivo e subjetivo que encobrem o lento e inexorável resvalar de Tito para a tragédia pessoal – políticos, religiosos e psi. Não sei qual o juízo do inteligente e preparadíssimo Frei Betto sobre o assunto, mas o seu colega Tito convenceu-se (delirantemente) de que havia cometido um animicídio – no qual o indivíduo imagina ter perdido a alma por ter pecado. Tito incorpora a tortura sofrida pela repressão do Estado, através dos agentes Fleury, Raul Careca e Pudim, e esta torna-se autônoma dentro de si, contando com a inestimável contribuição da inefável e onipresente categoria da culpa judaico-cristã – essa quase instituição Ocidental promotora de sofrimento e auto-repressão aos “mansos e humildes de coração”.
Num dos diálogos, em Paris, Tito diz a seu colega que já não acreditava em mais nada: “Nem Cristo, nem Marx, nem Freud”. O “Mal-Estar na Civilização” conciliado com o mistério da Santíssima Trindade, seria isso?
De fato, um coquetel explosivo, tanto mais se estiver turbinado por continuadas sessões de pau-de-arara, onde – para muito além do massacre físico – era visada a destruição da identidade mesmo do sujeito. Na tortura física acontece a desconstituição dos simbolismos e das sublimações intelectuais (e religiosas) e o desmoronamento das representações idealizadas do nosso próprio eu. A tortura não é somente um moedor de carnes, seria uma redução compreendê-la assim, mas sobretudo um moedor de almas.
Quando a irmã de Tito vai visitá-lo, preocupadíssima, na França, este não a recebe. Alega, mal abrindo uma fresta na porta, que o delegado (torturador) Fleury estava vigiando-os. Tito, neste momento, é uma nova persona (Jung), criado por Fleury, Raul Careca e Pudim - em última instância, também pelo impostor general Médici.
É o ponto mais alto da chamada tortura exitosa: a anulação do sujeito e a substituição por uma nova identidade, agora ressignificada por uma brutal e implacável autocrítica, quase que admitindo que a repressão dos agentes públicos tem de fato sentido. E para Tito, tinha mesmo sentido, o que deixa de ter sentido é a sua própria vida. Por isso ele não hesita em abreviá-la. Está autorizado pelos seus novos senhores, os que povoaram a sua alma tripulando a sua própria culpa.
De resto, o filme fica devendo uma reflexão mais politizada sobre o processo da luta armada conduzida por setores importantes da esquerda brasileira no final da década de sessenta e início da década de setenta. É mais uma peça memorialística do nosso conflito social recente que não ousa fazer um balanço sobre o conjunto da sua própria obra.
Mas ainda há tempo, se a Espanha, que viveu a sua sangrenta guerra civil na década de trinta, ainda não esgotou essa fonte narrativa e reflexiva, nós brasileiros temos muitas histórias para contar e janelas para abrir.
“Batismo de Sangue” pode ser visto em Porto Alegre, na sala do Santander Cultural, sempre às 15h, até sábado. O ingresso custa 3 reais. Recomendo.