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Surf no lixo contemporâneo: a que ponto chegamos! E que mundo deixaremos de herança para Keith Richards?

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Mitterrand ignorou o autoritarismo do senso comum e venceu



Escala F

Na década de 50, o filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969) uniu-se a um grupo de psicólogos sociais norte-americanos para desenvolver um estudo pioneiro sobre o potencial autoritário inerente a sociedades de democracia liberal, como os Estados Unidos.

O resultado foi, entre outras coisas, um conjunto de testes que permitiam produzir uma escala (conhecida como Escala F, de "fascismo") que visava medir as tendências autoritárias da personalidade individual.

Por mais que certas questões de método possam atualmente ser revistas, o projeto do qual Adorno fazia parte tinha o mérito de mostrar como vários traços do indivíduo liberal tinham profundo potencial autoritário.

O que explicava porque tais sociedades entravam periodicamente em ondas de histeria coletiva xenófoba, securitária e em perseguições contra minorias.

O que Adorno percebeu na sociedade norte-americana vale também para o Brasil. Na semana passada, esta Folha divulgou pesquisa mostrando como a grande maioria dos entrevistados apoia ações truculentas como a internação forçada para dependentes de drogas e intervenções policiais espetaculares como as que vimos na cracolândia.

Se houvesse pesquisa sobre o acolhimento de imigrantes haitianos e sobre a posição da população em relação à ditadura militar, certamente veríamos alguns resultados vergonhosos.

Tais pesquisas demonstram como a idealização da força é uma fantasia fundamental que parece guiar populações marcadas por uma cultura contínua do medo.

É preferível acreditar que há uma força capaz de "colocar tudo em ordem", mesmo que por meio da violência cega, do que admitir que a vida social não comporta paraísos de condomínio fechado.

Sobre qual atitude tomar diante de tais dados, talvez valha a pena lembrar de uma posição do antigo presidente francês François Mitterrand (1916-1996).

Quando foi eleito pela primeira vez, em 1981, Mitterrand prometera abolir a pena de morte na França. Todas as pesquisas de opinião demonstravam, no entanto, que a grande maioria dos franceses era contrária à abolição.

Mitterrand (foto) ignorou as pesquisas. Como se dissesse que, muitas vezes, o governo deve levar a sociedade a ir lá aonde ela não quer ir, lá aonde ela ainda não é capaz de ir. Hoje, a pena de morte é rejeitada pela maioria absoluta da população francesa.

Tal exemplo demonstra como o bom governo é aquele capaz de reconhecer a existência de um potencial autoritário nas sociedades de democracia liberal e a necessidade de não se deixar aprisionar por tal potencial.

Artigo do professor Vladimir Safatle, da Filosofia da USP. Publicado hoje na Folha.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

A revolta da burguesia assalariada



Embora os protestos sociais em curso nos países ocidentais desenvolvidos pareçam indicar o renascimento de um movimento emancipatório radical, uma análise mais detalhada nos compele a elaborar uma série de distinções precisas que, de alguma forma, embaçam essa clara imagem. Três coisas caracterizam o capitalismo de hoje: a tendência de longo prazo de transformação do lucro em renda (em suas duas principais formas: a renda do “conhecimento comum” privatizado e a renda pelos recursos naturais); o papel estrutural mais forte do desemprego (a própria chance de ser “explorado” em um emprego duradouro é percebida como um privilégio); e a ascensão de uma nova classe que Jean-Claude Milner chama de “burguesia assalariada” [Veja Jean-Claude Milner, Clartes de tout, Paris, Verdier, 2011].

Para explicar a relação entre estas características, comecemos com Bill Gates: como ele se tornou o homem mais rico do mundo? Sua riqueza não tem nada a ver com o custo de produção daquilo que a Microsoft vende (pode-se até mesmo argumentar que a Microsoft paga a seus trabalhadores intelectuais um salário relativamente alto), isto é, a riqueza de Gates não é o resultado de seu sucesso em produzir bons softwares por preços mais baixos do que seus concorrentes ou por uma “maior exploração” de seus trabalhadores intelectuais contratados. Se este fosse o caso, a Microsoft teria ido a falência há muito tempo: as pessoas teriam optado massivamente por programas como Linux que são de graça e, de acordo com especialistas, de melhor qualidade que os programas da Microsoft. Por que, então, existem milhões de pessoas que ainda compram Microsoft? Porque a Microsoft se impôs como um padrão quase universal, “quase” monopolizando o setor, uma espécie de personificação direta daquilo que Marx chamou de General Intellect (Intelecto Coletivo), o conhecimento coletivo em todas as suas dimensões, da ciência ao prático know how. Gates se tornou o homem mais rico em algumas décadas através da apropriação da renda pela permissão de que milhões participem na forma do “intelecto coletivo” que ele privatizou e controla.

Deve-se transformar criticamente o aparato conceitual de Marx: por causa de sua negligência em relação à dimensão social do “intelecto coletivo”, Marx não vislumbrou a possibilidade de privatização do próprio “intelecto coletivo”. É isto que está no coração da luta contemporânea pela propriedade intelectual: a exploração tem cada vez mais a forma de renda, ou, como diz Carlo Vercellone, o capitalismo pós-industrial é caracterizado pelo “tornar-se renda do lucro” [Veja Capitalismo cognitivo, editado por Carlo Vercellone, Roma, manifestolibri, 2006]. 

Em outras palavras, quando, por conta do papel crucial do “intelecto coletivo” (conhecimento e cooperação social) na criação de riqueza, as formas de riqueza se tornam cada vez mais desproporcionais em relação ao tempo de trabalho diretamente empregado na produção, o resultado não é, como Marx parecia esperar, a autodissolução do capitalismo, mas a transformação gradual do lucro gerado pela exploração da força de trabalho em renda apropriada pela privatização do “intelecto coletivo”.   

O mesmo acontece com os recursos naturais: sua exploração é uma das maiores fontes de renda hoje, acompanhada da luta permanente pra saber quem ficará com esta renda – os povos do Terceiro Mundo ou as corporações ocidentais (a suprema ironia é que, para explicar a diferença entre força de trabalho – que, em seu uso, produz mais-valia sobre seu próprio valor – e outras mercadorias – que somente consomem seu próprio valor em seu uso e, portanto, não envolvem exploração -, Marx menciona como exemplo de uma mercadoria ordinária o petróleo, a própria mercadoria que hoje é a fonte de extraordinários “lucros”…). 

Aqui também não faz sentido vincular as altas e baixas do preço do petróleo com altos e baixos custos de produção ou preços do trabalho explorado – custos de produção são negligenciáveis, o preço que pagamos pelo petróleo é a renda que pagamos para os proprietários deste recurso por conta de sua escassez e oferta limitada.

A consequência deste crescimento na produtividade alavancado pelo impacto exponencialmente crescente do conhecimento coletivo é a transformação do papel do desemprego: embora o “desemprego seja estruturalmente inseparável da dinâmica de acumulação e expansão que constitui a própria natureza do capitalismo enquanto tal” [Fredric Jameson, em Representing Capital, Londres, Verso Books, 2011, p. 149], o desemprego adquiriu atualmente um papel qualitativamente diferente. Naquilo que, possivelmente, é o ponto extremo da “unidade dos opostos” na esfera da economia, é o próprio sucesso do capitalismo (crescimento produtivo etc.) que produz desemprego (produz mais e mais trabalhadores inúteis) – o que deveria ser uma benção (menos trabalho duro necessário) se torna uma sina. 

O mercado global é, assim, em relação a sua dinâmica imanente, “um espaço no qual todos já foram, um dia, trabalhadores produtivos, e no qual o trabalho, em todos os lugares, foi aos poucos retirando-se do sistema” [Fredric Jameson, em Valences of the Dialetic, Londres, Verso Books, 2009, p. 580-1]. Isso é, no atual processo de globalização capitalista, a categoria dos desempregados adquire uma nova qualidade além da clássica noção de “exército industrial de reserva”: devemos considerar em relação a categoria do desemprego “aquelas enormes populações, que ao redor do mundo foram ‘expulsas da história’, que foram deliberadamente excluídas dos projetos modernizadores do capitalismo de primeiro mundo e apagadas como casos terminais sem esperança” [Jameson, em Representing Capital, p. 149]: os assim chamados estados falidos (Congo, Somália), vítimas da fome ou de desastres ecológicos, presos a “rancores étnicos” pseudo-arcaicos, objetos da filantropia e das ONGs, ou (frequentemente os mesmos personagens) da “guerra contra o terror”. 

A categoria dos desempregados deve assim ser expandida para agregar uma população de largo alcance, dos temporariamente desempregados, passando pelos não mais empregáveis, até pessoas vivendo nas favelas e outras formas de guetos (todos aqueles desconsiderados pelo próprio Marx como “lúmpem-proletariado”) e, finalmente, áreas inteiras, populações ou estados excluídos do processo capitalista global, como os espaços em branco nos mapas antigos.

Mas esta nova forma de capitalismo não traz também uma nova perspectiva de emancipação? Nisto reside a tese de Hardt e Negri em Multidão: guerra e democracia na Era do Império [Rio de Janeiro: Record, 2005] onde eles pretendem radicalizar Marx, para quem o capitalismo corporativo altamente organizado já era uma forma de “socialismo dentro do capitalismo” (uma espécie de socialização do capitalismo, com os proprietários tornando-se cada vez mais supérfluos), de maneira que seria necessário apenas cortar a cabeça do proprietário nominal e nós teríamos socialismo. 

Para Hardt e Negri, entretanto, a limitação de Marx foi estar historicamente limitado ao trabalho industrial mecanicamente industrializado e hierarquicamente organizado, razão pela qual a sua visão de “intelecto coletivo” seria como uma agência central de planejamento; somente hoje, com a elevação do trabalho imaterial ao padrão hegemônico, a transformação revolucionária se torna “objetivamente possível”. 

Esse trabalho imaterial se desdobra entre dois pólos: trabalho (simbólico) intelectual (produção de ideias, códigos, textos, programas, figuras etc. por escritores, programadores…) e trabalho afetivo (aqueles que lidam com afecções corpóreas, de médicos a babás e aeromoças). 

O trabalho imaterial é hoje hegemônico no sentido preciso em que Marx proclamou que, no capitalismo do século XIX, a produção industrial em larga escala era hegemônica, como a cor específica dando o tom da totalidade – não quantitativamente, mas cumprido um papel chave, emblematicamente estrutural. 

Assim, o que surge é um inédito vasto domínio dos “comuns”: conhecimento compartilhado, formas de cooperação e comunicação etc. que não podem mais ser contidos na forma da propriedade privada – por quê? Na produção imaterial, os produtos já não são objetos materiais, mas novas relações sociais (interpessoais) – em suma, a produção imaterial já é diretamente biopolítica, produção de vida social.

A ironia é que Hardt e Negri se referem aqui ao próprio processo que os ideólogos do capitalismo “pós-moderno” celebram como a passagem da produção material para a simbólica, da lógica centralista-hierárquica para a lógica da autopóiese e da auto-organização, cooperação multi-centralizada etc. Negri é aqui efetivamente fiel a Marx: o que ele tenta provar é que Marx estava certo, que a ascensão do intelecto coletivo é, em longo prazo, incompatível com o capitalismo. 

Os ideólogos do capitalismo pós-moderno estão afirmando exatamente o oposto: é a teoria marxista (e sua prática) que permanecem dentro dos limites de uma lógica hierárquica e sob controle centralizado do Estado, e assim não conseguem lidar com os efeitos sociais da nova revolução informacional. 

Existem boas razões empíricas para esta afirmação: de novo, a suprema ironia da história é que a desintegração do Comunismo é o exemplo mais convincente da validade da tradicional dialética marxista entre forças produtivas e relações de produção com a qual o marxismo contou na sua tentativa de superar o capitalismo. O que arruinou efetivamente os regimes Comunistas foi sua inabilidade em acomodar-se à nova lógica social sustentada pela “revolução informacional”: eles tentaram dirigir esta revolução com um novo projeto de planejamento estatal centralizado de larga escala. 

O paradoxo, assim, é que aquilo que Negri celebra como chance única de superação do capitalismo, é exatamente o que os ideólogos da “revolução informacional” celebram como ascensão de um novo capitalismo “sem fricção”.

A análise de Hardt e Negri possui três pontos fracos que, em sua combinação, explicam como o capitalismo pode sobreviver ao que deveria ser (em termos marxistas clássicos) uma nova organização da produção que o tornaria obsoleto. Ela subestima a extensão do sucesso do capitalismo contemporâneo (pelo menos em curto prazo) de privatizar o “conhecimento comum”, assim como a extensão com que, mais do que a burguesia, são os próprios trabalhadores que se tornam “supérfluos” (número cada vez maior deles torna-se não somente desempregado, mas estruturalmente inempregável). 

Além disso, mesmo que seja verdade, em princípio, que a burguesia está progressivamente se tornando desfuncional, deve-se qualificar esta afirmação –  desfuncional para quem? Para o próprio capitalismo. Isto quer dizer que, se o velho capitalismo envolvia idealmente um empreendedor que investia dinheiro (seu ou emprestado) em produção organizada e dirigida por ele próprio, recolhendo o lucro, hoje está surgindo um novo tipo ideal: não mais o empreendedor que possui sua própria empresa, mas o gerente especialista (ou um conselho administrativo presidido por um CEO) de uma empresa de propriedade dos bancos (também dirigidos por gerentes que não possuem os bancos) ou investidores dispersos. 

Neste novo tipo ideal de capitalismo sem burguesia, a velha burguesia desfuncional é refuncionalizada como gerentes assalariados – a nova burguesia recebe cotas, e mesmo se ela possui uma parte na empresa, eles recebem as ações como parte da remuneração pelo trabalho (“bônus por sua gerência bem sucedida”).

Esta nova burguesia ainda se apropria da mais-valia, mas da forma mistificada daquilo que Milner chama de “mais-salário”: em geral, a eles é pago mais do que o salário mínimo do proletário (este ponto de referência imaginário – frequentemente mítico – cujo único verdadeiro exemplo na economia global de hoje é o salário de um trabalhador numa sweat-shop na China ou na Indonésia), e é esta diferença em relação aos proletários comuns, esta distinção, que determina seu status. A burguesia no sentido clássico, assim, tende a desaparecer. 

Os capitalistas reaparecem como um subconjunto dos trabalhadores assalariados – gerentes qualificados para ganhar mais por sua competência (razão pela qual a “avaliação” pseudo-científica que legitima os especialistas a ganharem mais é crucial hoje em dia). A categoria dos trabalhadores que recebem mais-salário não está, obviamente, limitada aos gerentes: ela se estende a todos os tipos de especialistas, administradores, funcionários públicos, médicos, advogados, jornalistas, intelectuais, artistas… 

O excesso que eles recebem tem duas formas: mais dinheiro (para gerentes etc.), mas também menos trabalho, isto é, mais tempo livre (para alguns intelectuais, mas também para setores da administração estatal).

O procedimento de avaliação que qualifica alguns trabalhadores para receberem mais-salário é, claramente, um mecanismo arbitrário de poder e ideologia sem nenhuma ligação séria com a competência real – ou, como diz Milner, a necessidade de mais-salário não é econômica, mas política: para manter uma “classe média” com o propósito de estabilidade social. 

A arbitrariedade da hierarquia social não é um erro, mas todo o seu propósito, de forma que a arbitrariedade da avaliação cumpre um papel homólogo à arbitrariedade do sucesso de mercado. Isto é, a violência ameaça explodir não quando existe muita contingência no espaço social, mas quando se tenta eliminar esta contingência. É neste nível que se deve buscar pelo que se pode chamar de, em termos um tanto vagos, a função social da hierarquia. Jean-Pierre Dupuy [em La marque du sacre, Paris, Carnets Nord, 2008] concebe a hierarquia como um dos quatro procedimentos (“dispositivos simbólicos”) cuja função é fazer com que a relação de superioridade não seja humilhante para os subordinados: a hierarquia (a ordem externamente imposta de papéis sociais em clara contraposição ao valor imanente dos indivíduos – eu, portanto, experimento meu menor status social como totalmente independente do meu valor intrínseco); a desmistificação (o procedimento crítico-ideológico que demonstra que as relações de superioridade/inferioridade não estão fundamentadas na meritocracia, mas são resultado de lutas objetivamente ideológicas e sociais: meu status social depende de processos sociais objetivos, não de méritos – como diz Dupuy sarcasticamente, a desmistificação social “cumpre o mesmo papel, em nossas sociedades igualitárias, competitivas e meritocráticas do que a hierarquia nas sociedades tradicionais” [p. 208] – isto nos permite evitar a conclusão dolorosa de que “a superioridade do outro é o resultado de seus méritos e conquistas”; a contingência (o mesmo mecanismo, porém sem a sua forma crítico-social: nossa posição em escala social depende de uma loteria natural e social – sortudos são aqueles que nascem com melhores disposições e em famílias ricas); a complexidade (superioridade ou inferioridade dependem de um processo social complexo independente das intenções ou méritos dos indivíduos – digamos, a mão invisível do mercado pode causar o meu fracasso ou o sucesso do meu vizinho, mesmo que eu tenha trabalhado muito mais e seja muito mais inteligente). 

Ao contrário do que parece, todos estes mecanismos não contestam ou sequer ameaçam a hierarquia, mas a tornam palatável, uma vez que “o que desencadeia o turbilhão da inveja é a ideia de que o outro merece a sua sorte e não a ideia oposta, a única que pode ser abertamente expressa” [p.211]. Dupuy extrai desta premissa a conclusão (óbvia, para ele) de que é um grande erro pensar que uma sociedade que seja justa e que se perceba como justa será assim livre de todo o ressentimento – ao contrário, é precisamente em tal sociedade que aqueles que ocupam posições inferiores encontraram uma válvula de escape para seu orgulho ferido em violentas explosões de ressentimento.

Aí reside um dos maiores impasses da China hoje: o objetivo ideal das reformas de Deng Xiaoping era introduzir um capitalismo sem burguesia (como classe dominante); agora, entretanto, os líderes chineses estão descobrindo dolorosamente que o capitalismo sem hierarquia estável (conduzida pela burguesia como nova classe) gera permanente instabilidade – portanto, que caminho tomará a China? 


Mais genericamente, esta é possivelmente a razão pela qual (ex-)comunistas reaparecem como os mais eficientes gestores do capitalismo: sua histórica inimizade com a burguesia enquanto classe se encaixa perfeitamente na tendência do capitalismo contemporâneo em direção a um capitalismo gerencial sem burguesia – em ambos os casos, como Stalin disse a muito tempo, “os quadros decidem tudo” (está surgindo também uma diferença interessante entre a China de hoje e a Rússia: na Rússia os quadros universitários eram ridiculamente mal pagos, eles de fato se confundiam com os proletários, enquanto na China eles são bem remunerados com um “mais-salário” como meio de garantir sua docilidade).                      

Além disso, esta noção de “mais-salário” também nos permite lançar novas luzes sobre os atuais protestos “anti-capitalistas”. Em tempos de crise, o candidato óbvio para “apertar os cintos” são os níveis mais baixos da burguesia assalariada: uma vez que o seu mais-salário não cumpre nenhum papel econômico imanente, a única coisa que permite diferenciá-los do proletariado são seus protestos políticos. 

Embora estes protestos sejam nominalmente dirigidos pela lógica brutal do mercado, eles efetivamente protestam contra a gradual corrosão de sua posição econômica (politicamente) privilegiada. Lembremos da fantasia ideológica favorita de Ayn Rand (de seu Atlas Shrugged), a de “criativos” capitalistas em greve – esta fantasia não encontra sua realização perversa nas greves de hoje, que em sua maioria são greves da privilegiada “burguesia assalariada” motivada pelo medo de perder seu privilégio (o excedente sobre o salário mínimo)? Não são protestos proletários, mas protestos contra a ameaça de ser reduzido à condição proletária. Isto quer dizer: quem ousa se manifestar hoje, quando ter um emprego permanente já se tornou um privilégio? 

Não os trabalhadores mal pagos (no que sobrou) da indústria têxtil etc. mas o estrato de trabalhadores privilegiados com empregos garantidos (muitos da administração estatal, como a polícia e os fiscais da lei, professores, trabalhadores do transporte público etc.). Isto também vale para a nova onda de protestos estudantis: sua maior motivação é o medo de que a educação superior não mais lhes garanta um mais-salário na vida futura.

Está claro, obviamente, que o enorme renascimento dos protestos no último ano, da Primavera Árabe ao Leste Europeu, do Occupy Wall Street à China, da Espanha à Grécia, não devem definitivamente ser desconsiderados como uma revolta da burguesia assalariada – eles guardam potenciais muito mais radicais, de forma que devemos nos engajar numa análise concreta caso a caso. 

Os protestos estudantis contra a reforma universitária em curso no Reino Unido são claramente opostos às barricadas do Reino Unido em agosto de 2011, este carnaval consumista de destruição, a verdadeira explosão dos excluídos. Em relação aos levantes do Egito, pode-se argumentar que, no começo, houve um momento de revolta da burguesia assalariada (jovens bem educados protestando contra a falta de perspectiva), mas isto foi parte de um amplo protesto contra um regime opressivo. 

Entretanto, até que ponto o protesto conseguiu mobilizar trabalhadores e camponeses pobres? Não seria a vitória eleitoral dos islâmicos também uma indicação da base social estreita do protesto secular original? A Grécia é um caso especial: nas últimas décadas surgiu uma nova “burguesia assalariada” (especialmente na administração estatal superdimensionada) graças à ajuda financeira e empréstimos da União Europeia, e muitos dos protestos atuais, mais uma vez, reagem à ameaça de perda destes privilégios.

Além disso, esta proletarização da baixa “burguesia assalariada” vem acompanhada do excesso oposto: as remunerações irracionalmente altas dos grandes executivos e banqueiros (remunerações economicamente irracionais, uma vez que, como demonstraram as investigações nos Estados Unidos, elas tendem a ser inversamente proporcionais ao sucesso da empresa). 

É verdade, parte do preço pago por essa super remuneração é o fato dos executivos ficarem totalmente disponíveis 24 horas por dia, vivendo assim num estado de emergência permanente. 

Mais do que submeter estas tendências a uma crítica moralista, deveríamos interpretá-las como a indicação de como o próprio sistema capitalista não é mais capaz de encontrar um nível interno de estabilidade autorregulada e de como esta circulação ameaça sair do controle.

Artigo do filósofo Slavoj Žižek. Traduzido por Chrysantho Sholl e Fernando Marcelino.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Pinheirinho tucano: misoginia, porrete e destruição


Toda essa violência contra famintos e famintas em nome de quê? Da restituição de posse da área a um sujeito moralmente suspeito - doleiro e especulador imobiliário - chamado Naji Nahas, que volta e meia está metido com as piores e mais sujas notícias do business-mundo-cão brasuca.


sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

A velha marmita rançosa da mídia brasileira



O jornal britânico Financial Times, uma das bíblias do neoliberalismo, caiu na real, e está fazendo uma série de matérias sobre a crise estrutural do capitalismo, se dando a liberdade de cogitar que estamos experimentando o limiar de um novo sistema de produção, mesmo não se sabendo ao certo aonde iremos.

Esse não é qualquer jornal, o FT é uma publicação que circula desde 1888, tem uma tiragem diária de 2,1 milhões de exemplares, circula em 140 países e tem agências editoriais em 50 países.
     
Corte rápido.

O diário paulistano O Estado de S. Paulo estampou em suas páginas no dia 23 de janeiro último um artigo do ex-ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega, onde ele afirma que os altos ganhos salariais são um dos fortes fatores da atual crise econômica da eurolândia. Pronto, sobrou para os assalariados! É inacreditável que a essa altura da crise alguém ainda atribua a mesma a motivações que não as das finanças hipertrofiadas, o descontrole do crédito e a desregulação geral da atividade econômica, em especial a liberdade de ação dos grandes capitais bancários na Europa e no mundo todo. 
    
Observem que enquanto um jornal de reputação internacional – podemos questionar a sua afiliação político-ideológica – trata da crise de forma direta, frontal e corajosa, o outro, um jornal provinciano como o Estadão, insiste em manter um séquito de especialistas em produzir vianda requentada, como se fora algo fresco e atual, para assuntos tão relevantes como a crise do capitalismo.

Essa é a grande dificuldade da mídia brasileira: servir marmita rançosa como se estivesse oferecendo peixe fresco grelhado sobre folhas tenras. O problema não é o proselitismo de direita tout court, o problema é o proselistismo de direita, proferido por velhos funcionários da ditadura civil-militar (como Maílson e tantos outros) envolto no papel engordurado do palpite manjado, da opinião pessoal e interessada travestida de vontade geral e republicana.

Prestem atenção, a mídia está coalhada de indivíduos, colunistas, apresentadores, leitores de telepromter e outros quetais que estão ali para expressarem as vozes dos seus donos (ou dos seus patrões e dos amigos dos seus patrões), entretanto querem representar o papel de porta-vozes do universal, do democrático e do espírito de nosso tempo.

Ainda bem que eles são péssimos atores e atrizes.

Coisas da vida.

Artigo de Cristóvão Feil, publicado originalmente no blog Jornalismo B, agora em campanha de assinatura da sua publicação em papel. Prestigie e contribua com o Jornalismo B.  

Davos e o desemprego VIP


domingo, 22 de janeiro de 2012

ZH dá nova vida à ex-governadora Yeda, a impagável



Robespierre foi alcunhado “o incorruptível”. Já ex-governadora Yeda ficou conhecida como “impagável”, apenas. Não dá para entender direito o motivo, mas o grupo RBS de alguma forma quer lembrar da dona Yeda, protagonista de um governo estadual tão repleto de trapalhadas quanto vazio de realizações. Aliás, ainda não lemos nem ouvimos nada acerca de autocrítica - ou algo do gênero - por ter criado/apoiado governicho tão deserto.  

Passada a tragédia do quadriênio estrabulega, ficou a comicidade do comportamento nonsense e a confirmada desconexão verbal da ex-governadora tucana. A matéria de ZH deste domingo, consegue alçar dona Yeda ao cume da tolice, tem momentos da mais completa incógnita sobre o que a tucana está querendo comunicar. Exemplo: “Eu quis cursar economia pela paixão que tenho por história e geografia.”

Vá entender!

Coisas da vida. 


Cai de maduro: Schettino é Screttino

O álibi do capitão Schettino é ótimo: - Eu escorreguei no escuro e cai dentro do bote salva-vidas, aí não tive como voltar! 

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Vamos apoiar o 'Jornalismo B'






Índios se suicidam no México por não poderem alimentar os filhos




Grupos de ajuda se formam no Facebook e no Twitter

Pelo menos uns 50 índios rarámuris se suicidaram em dezembro de 2011 na Sierra Tarahumara, no México, por desespero de não poder alimentar seus filhos, denunciou Ramón Gardea, integrante do sindicato Frente Organizado de Campesinos.

Numa entrevista a uma TV mexicana, ele denunciou que “as mulheres indígenas depois de quatro ou cinco dias sem poder dar de comer a seus filhos, ficam deprimidas, e é tanta a sua tristeza, que até 10 de dezembro de 2011, 50 homens e mulheres se jogaram de precipícios nas montanhas”.   

A serra fica no estado de Chihuahua, uma das áreas mais assoladas por uma prolongada seca, cujos efeitos tem causado grandes danos no México.

No Facebook já se formou um grupo chamado Alimentemos la sierra Tarahumara, enquanto no Twitter correm informações sobre a coleta de alimentos através do hashtag #Sierra Tarahumara.

Há um divórcio entre o poder e a política




Entrevista de 23 minutos com o sociólogo Zygmunt Bauman. Considerações sobre o momento atual.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

A vida num dia




O filme-documentário foi produzido pelo cineasta Ridley Scott (Blade Runner), reúne vídeos curtos colocados no YouTube pelos usuários.

São 26 realizadores, 80 mil clips de vídeo e 4.500 horas de material, e tinha todo o potencial para ser uma bagunça. Em vez disso, o documentário "Life in a Day" é tão profundo, intenso e inspirador quanto o seu assunto – a vida, mais especificamente a vida no dia 24 de julho de 2010.

O documentário dura 1h 30 minutos. 

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

O Chile e os Vereadores de Porto Alegre



A velha nova direita

Quando Sebastián Piñera (foto) ganhou a Presidência chilena, não foram poucos os que saudaram a sua vitória como a prova maior da vitalidade da democracia no país andino.

Empresário de sucesso, com imagem de homem eficaz e sem grande envolvimento visível com a ditadura de Pinochet, Piñera parecia uma reversão da onda esquerdista que domina a América Latina desde o início do século. Ele era o homem indicado para mostrar, à política latino-americana, a via da modernização conservadora.

No entanto nada deu certo. Depois de dois anos de governo, Piñera protagoniza a maior catástrofe da história da política chilena recente. Com níveis recordes de baixa popularidade, o presidente parece ter servido para mostrar como a direita latino-americana perdeu sua hora.

Desde o movimento dos estudantes chilenos que pediam educação pública de qualidade para todos - revolta esta apoiada por mais de 70% da população -, ficou visível como havia um grande descompasso entre o que o povo queria e o que o governo estava disposto a oferecer.

O povo pediu claramente serviços públicos de qualidade e disponíveis a todos. O governo, com seu ideário neoliberal envelhecido e ineficaz, continuou recusando-se a desenvolver as condições econômicas para o fortalecimento da função pública e para a liberação de largas parcelas da população pobre das garras dos financiamentos bancários contraídos para pagar a educação dos filhos.

Depois, diante da firmeza da revolta estudantil, só passou pela cabeça de Piñera reforçar o aparato de segurança e repressão, isso na esperança de quebrar as demandas sociais.
Discursos contra "nossos jovens que não foram bem-educados pelos pais e que agora querem tudo na boca" ou "os estudantes arruaceiros" e outras pérolas da mentalidade pré-histórica foram ouvidos. Prova maior da incapacidade de responder de forma política a problemas políticos.

Agora, como se não bastasse, seu governo teve de voltar atrás em uma tentativa bisonha de retraduzir a "ditadura militar" chilena em uma novilíngua onde ela se chama "regime militar". Prova indelével de que a direita latino-americana nunca conseguiu fazer a crítica e se desvencilhar de vez de seu apoio às ditaduras.

Quando o assunto volta à baila, eles agem com um estranho espírito de solidariedade, como vimos na votação feita pela Câmara Municipal de Porto Alegre para a modificação do nome de uma avenida que se chamava "Castello Branco". O pedido de modificação, feito bravamente pelo PSOL, foi arquivado.

Nesse vínculo ao passado e nessa inabilidade diante do presente, evidencia-se claramente como a nova direita latino-americana não conseguiu renovar seu guarda-roupa.

Artigo do professor Vladimir Safatle, da Filosofia da USP. Publicado na Folha, no último dia 10 de janeiro.

O ex-abuelo Daniel Melingo



Melingo foi saxofonista na banda Los abuelos de la nada, hoje é um cantor/compositor que transita do tango à milonga, passando pelo candombe e a murga, não esquecendo do rock e do jazz. Um grande músico da América Latina.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Os avós do nada



A banda roqueira argentina Los abuelos de la nada foi formada em 1967. Enquanto isso, o sucesso no Brasil era o sub do sub roqueiro Roberto Carlos (sim, o sujeito começou como "roqueiro", acreditem). O vídeo acima foi gravado en vivo no Luna Park, de Buenos Aires, em 1983.

Reparem o estilo rítmico dos caras, com ênfase no chamado tempo fraco da composição, ficando no meio do caminho entre o ska e o rocksteady, mais rápido. Ou seja, é quase um reggae jamaicano, que estava surgindo precisamente na década de 60.  

As memórias trazem diamantes e ferrugem...



A ótima composição Diamonds and Rust (Diamantes e Ferrugem) é da cantora (e compositora) Joan Baez, mas a interpretação dos metaleiros – tias brontossáuricas - do Judas Priest me parece melhor. A Baez não consegue perder a sua afetação folk (o caipira estadunidense) carregando demais no seu soprano demi-caractere. Já os caras do Judas deixam-na mais límpida e bela.

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