Até agora me preocupei com os poucos dons de comunicação que Dilma Rousseff demonstrava, comparada com FHC, que entusiasmava a elite, ou Lula, que galvanizava o povo. Mas começo a mudar de ideia. Já achava bom, sim, termos uma dirigente "normal", sem o carisma de seu antecessor. Mas afirmei que ela precisava de um estilo, até para conter o apetite dos políticos, hoje desmedido. Para não dizer que penso só na ameaça Temer, o poderoso vice, lembro a bancada do PT na Câmara querendo indicar o novo ministro de Relações Institucionais. Se o atrevido movimento tivesse êxito, o presidencialismo acabaria naquele dia - e, com ele, a presidente e, claro, seu insano partido.
Mas hoje, apesar das denúncias que chovem, vejo um roteiro melhor para o governo e o país.
Dilma prossegue um projeto que não podia ser interrompido, simplesmente porque enfim deu prioridade às questões sociais na agenda brasileira - algo que Itamar Franco e FHC esboçaram, mas sem ir tão longe quanto Lula. O projeto que os tucanos tinham se completou em dois mandatos federais. Precisa e merece ser revisto. Já o projeto petista é pauta longa e demorada. Centra a mudança do país na priorização do social. Isso ainda exige muito. Cresceram renda e consumo. É preciso complementar com educação e cultura. A aprovação eleitoral desse projeto - cujos fins podem parecer com os dos tucanos, mas cujos meios o cidadão preferiu - dá continuidade, com mudanças, ao que Lula encetou.
Com mudanças. A mais visível é a das alianças para garantir a governabilidade. Quase todos os analistas as deploram; os equilibrados reconhecem que alianças análogas sustentaram FHC. Ora, como tais alianças parecem corromper os costumes políticos, Dilma estaria ante uma necessidade ou possibilidade inédita: reduzir o peso delas. Dilma não deixa apodrecer. Demite. Depois, é certo, nomeia sem audácia. Lula colocou seu próprio vice no ministério da Defesa. Surpreendeu. Dilma não surpreende. Mas age. Se renovar o gabinete, baixando o desperdício de talento e dinheiro, terá dado um grande passo. Inédito.
Outra mudança chama menos a atenção, até porque não entra no truque freudiano de só culpar, por tudo, "o outro". Mas é mais importante. Falo da melhor articulação das ações públicas, que teve exemplo notável, agora, em São Paulo. Dilma elegeu a sede do principal governo de oposição para integrar programas sociais federais e estaduais. Já é difícil articular as ações de uma única esfera de governo. Unir petistas e tucanos, tendo por meta o Brasil sem Miséria, foi notável. Ela ainda não é uma estadista, mas se vislumbram qualidades suas que vão além da gestão e talvez mostrem uma liderança.
Lula foi um presidente audaz. Adorava políticas novas. Deu certo. Apostou no pré-sal, na expansão do ensino federal, nos programas sociais. Mas, assim como o coração abre e fecha constantemente, alternando diástole e sístole, também na política precisam alternar inovação e consolidação. Vejam: a expansão das universidades abriu vagas para estudantes, aproveitou professores doutores sem emprego, ampliou a educação superior no país com docentes que pesquisam. Muito bem. Mas resta fazer cada departamento ou grupo funcionar. Esse é um trabalho inglório. Não se presta a inaugurações. Prefeitos não o aplaudem. Ao contrário: porque nessa hora você não expande nem dá. Corta e cobra. É coisa de chato. Mas são essas super-formiguinhas que fazem a máquina funcionar. Essa é a grande oportunidade de Dilma - como, ironicamente, talvez pudesse ter sido de Serra.
Trabalhei, entre 2004 e 2008, na avaliação da Capes, órgão que afere a qualidade de todos os mestrados e doutorados do Brasil. É a avaliação que faz a pós-graduação ser nosso único nível de ensino de padrão internacional. Mas, fora do mundo da pesquisa, ninguém a conhece. Aos políticos, inclusive no governo, interessa mais um projeto novo, qualquer um, do que a árdua tarefa de centenas de bons pesquisadores, viajando de graça para ajudar a montar um curso de mestrado ou doutorado. Mas é esse trabalho minucioso que maximiza o investimento. Articulando professores e temas, alunos e teses, avança-se mais do que só pondo dinheiro. Aliás, na avaliação da pós, era difícil e inútil saber quem votava no PT ou nos tucanos: todos se uniam pela qualidade. Isso não dá prestígio junto ao político tradicional, mas vai direto na veia da sociedade. O beneficiado é o doutorando, o ensino, a pesquisa, a inovação. A política sai de uma visão subordinada a shareholders, os políticos, que pensam ser seus donos ou proprietários, para outra em que contam os stakeholders, as partes interessadas, isto é, tanto os que põem a mão na massa quanto os que a vão consumir.
Será esse o papel de Dilma na Presidência? Exige muito trabalho, fé enorme e pouca vaidade. Ela parece ter essas qualidades. Elogia Lula (a "herança bendita") e também FHC. Não disputa com eles. Revejo aqui minha tese de que o presidente do Brasil teria de ser um grande comunicador político. Precisamos é do presidente adequado ao momento. Creio que, depois de muitos anos no fragor das batalhas - padecer e derrubar a ditadura, levar um presidente ao impeachment, vencer a inflação, privatizar, consagrar a agenda social - o Brasil talvez possa ter um clima mais tranquilo. Não será fácil. Porém, se a presidente continuar por aí e mantiver o sangue frio, acredito que, o mais tardar no final de 2013, terá ganho a aposta. O que obviamente, em nossa recente tradição, a credenciará para a reeleição e, quem sabe, um segundo mandato com menos hipotecas partidárias. Mas essa é outra história.
Artigo de Renato Janine Ribeiro, professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo, publicado no jornal Valor Econômico, edição de hoje.