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sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Só as pedras são inocentes


Uma visitinha ao velho Hegel

Hegel tem uma sentença que me parece definitiva para servir de legenda ao atual cenário de crise estrutural do capitalismo: Weltgeschichte ist Weltgerichte, a história do mundo é o juízo do mundo.

Por isso, cabe recordá-lo, em 1806: “Encontramo-nos num período importante, numa época de fermentação, na qual o espírito está dando um salto, saindo de sua forma anterior e assumindo uma forma nova. Toda a massa de representações e conceitos existentes até hoje, os nexos do mundo, dissolveram-se e se fundem como num sonho. Cumpre à filosofia, antes de mais nada, reconhecer e saudar essa aparição, embora haja quem se oponha inutilmente a ela e se aferre ao caduco”.

Blaise Pascal dizia que “a verdadeira filosofia zomba da filosofia”. É o que sempre orientou o pensamento hegeliano e o que manda que façamos no presente momento de erosão de paradigmas e de derretimento de conceitos.

Segundo o estudioso de Hegel, Jean Hyppolite, o professor alemão se preocupou mais com os problemas religiosos e históricos do que com problemas propriamente filosóficos. Hegel, diz Hyppolite, permanece bem próximo do concreto, e o concreto para ele é a vida dos povos, o espírito do judaísmo e do cristianismo. Somente recorre aos filósofos, particularmente Kant e os antigos, para atacar melhor e diretamente o seu objeto, a vida humana tal qual ela se lhe apresenta na história, as preocupações de Hegel são cada vez mais de ordem prática.

Ele estuda as religiões e passa a denominar o cristianismo de uma “religião privada” em oposição à “religião de um povo”, que seria própria da velha mitologia politeísta grega. Para Hegel, a religião antiga, mitológica, é a religião da cidade, uma intuição que o povo tem de sua realidade absoluta. Mas não é a religião admitida pelo moralismo kantiano, que postula a religião como puro ideal moral. É a religião como espírito supra-individual de um povo – o Volksgeist. Uma realidade histórica que ultrapassa infinitamente o indivíduo, mas que lhe permite encontrar-se a si mesmo sob uma forma objetiva – para bem além da estreita idealização moral e subjetiva de Kant.

Hegel diz que o indivíduo – reduzido a si mesmo – é uma abstração. Eis porque, observa Hyppolite, a unidade orgânica verdadeira, o universo concreto, para Hegel, será o povo. O individualismo, para ele, é produto do cristianismo, que ele chamará de “religião privada”. A vida pública cidadã da velha Grécia era estimulada pelo politeísmo, pelos mitos, pelas cerimônias que acabaram formando o que ele chama do “espírito de um povo”.

O homem livre é o homem que participa, diz Hegel. O indivíduo não poderia realizar-se em sua plenitude senão participando do que o ultrapassa e o exprime ao mesmo tempo, de uma família, de uma cultura, de um povo. É somente assim que ele é livre – explica o professor Jean Hyppolite acerca do alemão.

“A supressão da religião pagã pela religião cristã é uma das revoluções mais surpreendentes – conclui Hegel – , e a procura das suas causas deve ocupar mais particularmente o filósofo da história”.

O cidadão antigo era livre porque precisamente ele não opunha a sua vida privada à sua vida pública, ele pertencia à cidade. A cidade não era – como Estado – um poder estranho que o constrangesse. “Como homem livre, obedecia a leis que ele próprio fizera. Sacrificava a sua propriedade, as suas paixões, a sua vida, por uma realidade que era a sua” (Fenomenologia).

A mitologia religiosa antiga, pré-cristã, era a religião da cidade-cidadania, que atribuía aos seus deuses o seu nascimento, o seu desenvolvimento, e suas vitórias. Ao contrário do cristianismo, a religião pagã não era uma fuga para um além, era uma religião da vivência cidadã, participativa. A religião supra-individual – para além do indivíduo – da liberdade. Não havia, portanto, uma oposição entre indivíduo e Estado. Hegel dizia que o cidadão punha a parte eterna de si mesmo em sua cidade e não no além, como o cristianismo.

O Direito romano, para ele, já representa a substituição da vida ética da cidade, que aos poucos desaparece. A imagem do Estado, como um produto de sua própria atividade, desapareceu da alma do cidadão. Este se sente apenas a peça de uma engrenagem que já não lhe pertence ou domina. Este atomismo social prepara o caminho para o advento do cristianismo, onde o Direito é o triunfo do individualismo, mas o que é reconhecido neste homem é a pessoa abstrata, a máscara do homem vivo e concreto. A passividade do homem – diz Hyppolite – vem acompanhada dessa exigência cujo têrmo era o além.

É dessa decomposição da velha cidade que aparece a consciência infeliz, e o cristianismo, para Hegel, é uma expressão disso.

A religião cristã é uma teologia positiva, o homem só se submete a ela porque teme a Deus, um Deus que está muito além dele e do qual ele é escravo.

Mais adiante, Hegel diz que a “nossa religião [a cristã] quer elevar os homens à categoria de cidadãos do céu, cujo olhar está sempre voltado para cima, e com isso se tornam estranhos aos sentimentos humanos”.

Agora, o mundo da vida real e o do pensamento são diferentes, há um abismo entre a moral privada e o ethos - os costumes existentes.

A velha democracia grega está ultrapassada, porque no mundo moderno ela corre o risco de não ser mais que uma dissolução do Estado nos interêsses privados. Os governos já não são mais a expressão de todos, mas aparecem como tendo uma existência independente.

Com a queda de Wall Street o mundo não só dá um salto, como diz o mestre, mas dá cambalhotas, exigindo duas coisas de imediato: conceito, ferramentas para o pensamento, e ação. Hegel dizia que “se a realidade é inconcebível, então cumpre-nos forjar conceitos inconcebíveis”.

O inconcebível no conceito é a antinomia, o encontro da contradição viva e aguda. Portanto, estamos dropando a onda do inconcebível, vivendo a história, o destino e o julgamento do mundo.

O destino é a consciência de si mesmo, “mas como de um inimigo”, é aquilo que o homem é, mas que lhe aparece como se tendo tornado estranho.

A ação política “perturba a quietude do ser”, onde “só as pedras são inocentes, porque elas não agem, mas o homem deve agir”.

Inspirado em Hegel, Karel Kosik pergunta e responde: o que o homem realiza na história? Na história o homem realiza a si mesmo. Não apenas o homem não sabe quem é, antes da história e independente da história, mas só na história o homem existe. O homem se realiza, isto é, se humaniza na história.

Pela primeira vez na história da humanidade, um modelo de produção e reprodução da vida social cresce, se desenvolve e entra em colapso num intervalo de tempo que cabe na vida de um indivíduo. Um sujeito que tenha 50 anos hoje, conseguiu ver o início da hipertrofia dinheirista do capital, depois assistiu a Thatcher dizer que “não existe essa coisa chamada sociedade”, e, agora, olha assombrado para bancos e tradicionais montadoras de automóveis (uma delas chegou a dar nome à sociedade de consumo do século 20) recebendo socorro monetário do outrora tão desprezado Estado.

Na história se realiza o homem, lembra Kosik, e somente o homem. A mercadoria, o dinheiro, são criações culturais humanas, às vezes a ideologia faz com que nos esqueçamos disso, que é elementar, porque tão ocultado por camadas e mais camadas de feitiçarias, passando a ser quase entidades naturais.

Portanto, não é a história que é trágica, mas o trágico está na história – como lembra Kosik. Não é absurda, mas é o absurdo que nasce da história. Não é cruel, mas as crueldades são cometidas na história. Não é ridícula, mas as comédias se encontram na história.

O breve ciclo de trinta anos que ora assistimos se fechar, no palco da história, teve um muito de tudo isso: tragédia, absurdo, crueldade e comédia.

Coisas da vida.

Artigo de Cristóvão Feil, sociólogo.

17 comentários:

Anônimo disse...

a p.q.p. com Christmas sites, fora!

Katarina Peixoto disse...

Oi Cristóvão. Uma sugestão ao brilhante texto, só na tradução da filo da história: juízo do mundo parece mais adequado, não achas? É que a constituição da história como norma - transcendental - é critério porque é instância judicativa. No mais, essa de só as pedras são inocentes é uma das coisas mais extraordinárias e sábias que Hegel disse. Bravíssimo

Carlos Eduardo da Maia disse...

"Christmas sites" está fazendo história. Todos fazem história. Todos fazem suas histórias. Existe uma certa religiosidade em relação à história. Dizem que a história que está sendo construída é enfeitiçada, porque constituída de alienação: o fetiche da mercadoria. O capital e seus agentes e atores é que mandam no pedaço e constroem a história de acordo com seus vícios e interesses. Mas desde quando, vivente, que a história já está determinada? Um "nissei americano", comemorando os acontecimentos de 1989, disse que a história acabou, mas depois ele desdisse e esclareceu: houve uma "ruptura". Talvez ele tenha razão. Talvez. Mas uma coisa é certa, o espírito religioso da ideologia acha que a história deve seguir certa linha, certos caminhos, estratégias e objetivos. E que essa é a via melhor para todos e, portanto, deve ser imposta. Dizem também que esse é o melhor futuro para a humanidade ou é esse caminho ou é a barbárie. Tenho dúvidas acerca de todas essas "histórias". Eu não acredito em histórias impostas.

Anônimo disse...

Alguém poderia traduzir o comentário do pseudônimo.

Anônimo disse...

Os soluços que houveram há um tempo atrás (México e sudeste asiático) foram um indicativo de que algo não vinha bem. Naquelas crises os bancos e principais industrias do planeta praticamente não foram afetadas. Hoje, neste momento, estamos assistindo bancos seculares norte-americanos e europeus desabarem, estamos vendo a GM e possivelmente outras montadoras planejando um possivel processo de concordata, além de um massivo corte de postos de emprego mundo afora. Cidadão Maia a história (ou estavas querendo dizer estória) está acontecendo e temos este milagre chamado internet para acompanhá-la em tempo real. Não é questão ideológica - É REAL - nós vamos passar bem no meio dela. Será necessário faltar dinheiro para frequentar teus shopings e comprar teus malbecs para cair na realidade? Interessante é que há mais de 2000 anos atrás um homem esteve aqui, deu uma olhada, propós soluções práticas para o corpo e espirito e suas palavras os doutos e espertos conseguiram transformar em algo absolutamente virtual, inatingível - a salvação é LÁ e passa por nós! Só porque tu queres Vossa Eminência, cadê a procuração?! A filosofia do Cristo, assim como a de Marx é viva, mutante, critíca e dá soluções, basta seguir ou pelo menos tentar!

Anônimo disse...

Brilhante! Este vai prá o arquivo.
Dalva

Carlos Eduardo da Maia disse...

Volto a dizer, a crise tem um lado positivo. Foi-se o tempo da fé no livre mercado. Mas isso não significa que as velhas profecias dos livros antigos, alguns deles mofados pelo bolor da caducidade, tenham acertado no alvo exato. O futuro da humanidade, a história futura ninguém sabe, porque ninguém viu. Mas existem linguagens a serem seguidas de desenvolvimento social e econômico e com respeito ambiental que não podem ser menosprezadas. Não estou dizendo que esse é um caminho de fé, mas é uma via de meio termo ou de mão dupla, concreta, objetiva e real. Enganam-se aqueles que a humanidade será salva pela ideologia ou religião. Isso é crendice dos pitorescos magos de plantão.

Anônimo disse...

Mas bah, dá proxima vez vou escrever em grego ou russo! To indo!

Anônimo disse...

Panoramix, não adianta, o douto faz ouvidos de mercador, nada é com ele. A única verdade é a sua, esquece e Mala... pois como dizia Cristo "não atirai perolas aos porcos, pois leles não vão entender seu valor"

Carlos Eduardo da Maia disse...

Soluções mágicas nas filosofias de Cristo e Marx são as mais óbvias possíveis: amar uns aos outros e a união dos explorados. Também acho que devemos amar uns aos outros e também acho que os explorados devem se unir. Mas se unir em torno de qual objetivo e para construir qual história? A história da Igreja e do socialismo real? A história do mundo estatizado? A história da catequização da humanidade? A própria história já demonstrou que essas "histórias" não salvaram ninguém. Muito pelo contrário, são histórias do escravismo das idéias e das críticas e da redução do homem aos ordenamentos dos politburos da vida.

Carlos Eduardo da Maia disse...

Rangel, quem acha que enriquecer é burrice não vai mesmo entender os significados das pérolas.

Anônimo disse...

Tem aqueles que se uniram para o "sucesso" do déficit zero, e os resultados estão aí:

- Abandono da saude: o RS teve o pior desempenho no combate a aids, voltou ao ponto ZERO;

- Abandono da Educação: o 4° pior indice de estudantes com idade escolar matriculados.
O Pior desempenho das regiões sul e sudeste na conclusão do ensino médio até 19 anos.

E tem gente que comemora....

Claudio dode

Anônimo disse...

Ah! mas tem aqueles que se uniram para o bom natal das concessionárias de pedágios.

Tem os Unidos do Detran, do daer, do Banrisul....

Claudio Dode

Anônimo disse...

Até mesmo o jornal (FSP) dos Frias, golpista de primeira hora em 64, se rendeu ao discípulo de Hegel. O Publifolha está lançando, de autoria de Jorge Grespan (não é o ex-todo poderoso presidente do FED norte-americano), "Folha Explica - Karl Marx".
Grespan escreve: "as crises se revestem de um caráter funcional, entendidas como mal necessário ou como crises de crescimento, ou ainda, na melhor das hipóteses, como indicadores da incapacidade do setor privado resolver seus problemas sem a intervenção do Estado.

Na teoria de Marx, por outro lado, elas revelam a emergência da dimensão negativa de um sistema marcado pela contradição. Ao contrário do pensamento econômico tradicional, aqui a crise está intimamente associada à crítica. Mas não a uma crítica subjetiva de alguém que analisa de fora e condena, e sim a uma crítica objetiva: desnudando a dimensão negativa no mau funcionamento do sistema, indica-se como o próprio sistema realiza uma espécie de autocrítica. Se o capital é valor que se valoriza, os momentos em que ele desvaloriza o valor existente de maneira inevitável, comprometendo assim a base de seu crescimento, são momentos em que ele mesmo se contradiz, negando as condições de sua existência."

E também: "...o projeto de Marx desdobrar cada forma do sistema como resultado da negatividade das formas anteriores, indo do mais geral ao mais específico e intrincado.

Em primeiro lugar, então, é preciso retomar o aspecto geral. No final do capítulo 3 foi citado um texto que pode servir muito bem nesse sentido: "O capital é trabalho morto, que apenas se reanima, à maneira dos vampiros, sugando trabalho vivo e que vive tanto mais quanto mais trabalho vivo suga". Vimos como essa passagem sintetiza bem a contradição constitutiva do capital em sua relação com a força de trabalho. Mas um aspecto central deve agora ser acrescentado. É que, ao comprar e incorporar a força de trabalho, o capital está também se apropriando da capacidade de medir o valor, que o trabalho abstrato possui numa sociedade de troca de mercadorias. O capital adquire com isso não só a propriedade de se valorizar como a de medir essa valorização; ele se valoriza e se mede.

Mas a sua relação com a mensuração é contraditória, como também sua relação com a valorização, porque ambas derivam da oposição entre capital e trabalho. Ao mesmo tempo que integra a força de trabalho, o capital também precisa negá-la, substituindo-a por máquinas; ou seja, ao mesmo tempo que adquire a capacidade de se medir, o capital reitera que essa capacidade pertence a um agente que ele mesmo põe como seu oposto. Perde então as suas medidas.

Em todos os níveis da apresentação das categorias de "O Capital", aparece essa determinação contraditória da medida e da desmedida."

Leitura interessante, especialmente para entender a crise e para aqueles que desconhecem(ou não querem entender) a importância das teorias do valor-trabalho (mais-valia) no modo de produção capitalista.

Carlos Eduardo da Maia disse...

Marx foi um discípulo, mas nem tanto, de Hegel. Dizem que Marx foi além. Talvez sim, talvez não, talvez quem sabe. Dizem que o jovem Marx é melhor do que o velho Marx. Dizem. Os textos do velho Marx foram escritos a quatro mãos, o complicado Friederich, filho do burguês de Wupperthal é que bancava e pagava as contas da família Marx na Inglaterra. Pobre Jenny que tinha um Von no sobrenome, mas não atirem pedra nela. E os textos sagrados da dupla viraram bíblia da salvação. Qualquer crisisinha que caminha por ai, a bíblia volta a cena. E o pessoal que fazer história.... Chamem o Deckard para matar os replicantes, mas ele é replicante e os replicantes é que são do bem.

Anônimo disse...

Sim, juízo do mundo é mais adequado, Katarina.
Gracias.

CF

Anônimo disse...

Entendam: apenas as ostras e o Maia (chiquérrimo, aliás) entendem o "significado" das pérolas... rsss

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