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Surf no lixo contemporâneo: a que ponto chegamos! E que mundo deixaremos de herança para Keith Richards?

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008


Eleito por Costa-Gavras

Em 12 de outubro último publiquei aqui neste blog de província uma pequena crítica (leia abaixo) ao filme Tropa de Elite, que acaba de ganhar o prêmio maior do Festival de Berlim.

Isso não é pouca coisa, tanto mais se o presidente do júri tenha sido o grande cineasta Constantin Costa-Gavras (foto).

Leio que Costa-Gavras, conhecido por fazer filmes memoráveis com críticas politizadas e duras a regimes ditatoriais (Estado de Sítio, Missing, etc.) e ao stalinismo (A Confissão), foi um mobilizado eleitor para que o filme do brasileiro José Padilha recebesse o “Urso de Ouro” em 2008.

Muito bom! É sinal evidente de que o respeitado cineasta e intelectual grego não fez uma leitura superficial do Tropa, não resvalou no desvão comum de enxergar traços de fascismo no filme do mesmo realizador do ótimo Ônibus 174 (2002). Gavras entendeu bem o filme de Padilha, onde todo mundo é bandido e os heróis ou ainda não chegaram ou já morreram.

“Tropa de Elite” é ilustração de “Vigiar e Punir”

Não é de graça que o personagem Matias estuda a obra “Vigiar e Punir” no curso de terceiro grau que faz junto a coleguinhas branquinhos e portadorezinhos de um cinismo tão atroz quanto infinito. Aliás, o cinismo parece ser uma tatuagem de nascença dos brancos e privilegiados brasucas. O filme do diretor José Padilha apanha e explora muito bem esse “detalhe”.

O longa-metragem ficcional (ou seria documentário?) Tropa de Elite é uma metalinguagem ilustrativa e hiper-realista do clássico foucaultiano “Vigiar e Punir”. Está tudo lá, roteirizado, decupado e gravado: a docilidade dos corpos, a fisionomia do soldado, o corpo como objeto e alvo do poder, o controle minucioso das operações do corpo, a disciplina que aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência), a microfísica do poder, a minúcia dos regulamentos, o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mínimas parcelas da vida e do corpo... está tudo lá no filme estrelado pelo ótimo Wagner Moura, como o implacável Capitão Nascimento.

Parece que o diretor Padilha escolheu o reconhecidíssimo Wagner para subliminarmente querer dizer que “afinal, tudo isso é ficção, gente!, não levem tão a sério, etcetera e tal”. Mas é só na aparência. O filme é um documentário na linha do “é tudo verdade!” Nada que já não se soubesse à náusea. Mas, quando mostrado em linguagem artística e ancorado nas categorias de Foucault, a coisa fica mesmo como um soco no baixo ventre de qualquer um.

Os apressados dirão – depois de uma leitura rasa e plana – que o filme sobre o BOPE do Rio de Janeiro é um elogio à tortura. Mas só os apressados, só os que têm ejaculação mental precoce, só os sem imaginação, ousarão afirmar esse óbvio ululante. É preciso olhar o que vem depois do óbvio, saber enxergar antes e além dos métodos de tortura. Saber quais são os suportes culturais e plataformas operacionais dessa instituição internacional chamada “tortura”.

A rigor, o que é a tortura diante daquele mondo cane com trilha funk que o filme mostra? A tortura é um detalhe, uma decorrência naturalizada do que é “ser soldado que vê o mundo como uma guerra”. Também está lá no Foucault (leia aqui o primeiro capítulo de “Vigiar e Punir”, esse trecho é praticamente o roteiro conceitual do filme de Padilha).

Ou alguém imagina uma polícia sem tortura? Seria como conceber o sol sem os raios abrasadores, ou os oceanos sem água, as geleiras sem frio.

Não justifico a tortura, entendo-a no contexto do Estado burguês, detentor do monopólio da violência simbólica legítima (Bourdieu). Acabar com a tortura não se resume a impulsos de moralidade hipócrita, mas a eliminar mesmo as instituições que a reproduzem como subproduto imanente de suas existências.

O filme não é uma fábula moral, muito ao contrário, ele não aponta nenhum caminho. Apenas nos mostra de forma eloqüente e crua que o que temos não nos serve e que devemos, afinal, saber inventar um outro mundo possível. Como na psicanálise, ninguém precisa denunciar ou apontar, mas o “paciente” dá-se conta sozinho.

21 comentários:

Anônimo disse...

O filme é genial. Mereceu o urso.

Anônimo disse...

onde estão os "pessoal" que chamavam o filme de fascista? que queriam um filme certinho com bandidinho fazendo coisas feinhas e heroizinhos fazendo coisas bunitinhas? como isso tudo tá misturado no filme, esses "pessoal" ficam confusos, né? no próximo filme o padilha tem que fazer os heróis vestidos de branco e os bandidos todos negros e negras, vestidos de preto. aí pode ser que os "pessoal" fiquem menos confusos, né?

Jucabala

Carlos Eduardo da Maia disse...

O filme não tem nada de fascista. O filme é sim uma crítica a ditadura do "politicamente correto" e mostra a história como ela efetivamente é. Aliás, li este fim de semana o livro elite da tropa e é bem interessante, sobretudo a última parte. Recomendo.

Anônimo disse...

Tropa de Elite tem uma estética diferente. É cinema feito com as vísceras. É novo realismo brasileiro. dpz

Anônimo disse...

"É cinema feito com as vísceras." Santo deus, quanta bobagem! Claro que o filme é fascitão. Pode não ser para um europeu que vê como exótica a prática comum nas periferias das grandes cidades de países periféricos. Quer uma prova: basta ver com que arrogância essas policias militares e esquadrões da morte passaram a atuar depois do filme. Todo o aparelho policial passou a se justificar para a classe média, seja em reportagens de televisão, seja na atuação do dia-a-dia. Toda classe média - principalmente intelectuais de classe média - quer um capitão do lado da cama. Pode precisar no meio da noite. Mas o Costa-Gravas disse que....sinceramente!

Anônimo disse...

Anônimo (a) aí de cima, explique melhor. Quer dizer que o europeu não vê como fascistão, porque acha exotique? Mas como assim exotique se o fenômeno fascista é exclusiva e eminentemente europeu?

É fascistão ou não é fascistão? Vc. tem que escolher my boy/my girl, ou é exotique ou é fascistão. O europeu não pode resolver reunir as duas coisas numa só opinião.

Se vc. não pensou sobre esse paradoxo (e não pensou mesmo!) todo o resto da sua argumentação tremula.

Alvear

Carlos Eduardo da Maia disse...

O filme Tropa de Elite trouxe uma realidade que está sendo vista por todos. E isso é muiiiito bom. As pessoas estão adquirindo a consciência de que quando o poder público não entra em determinado lugar com suas escolas, seu posto de saúde e seu poder polícia, a marginalidade toma conta. E a marginalidade não é Robin Hood, ela é impiedosa, ela mata, ela aniquila, ela exige cumplicidade dos habitantes do local sob pena de ser punido com a perda da vida. E quem é ameaçada por essa zona toda é, sobretudo, a população de baixa renda alvo dos impiedosos traficantes e da violência polícial. Uma coisa está vinculada a outra, numa relação para lá de viciada. A polícia dá armas aos bandidos que recebem grana para abastecer a polícia que faz vistas grossas para a venda de drogas. E o soldadinho que não andar no passo certo também é punido com a perda da vida. O que acho incrível são os comentários de certa esquerda de que o filme é fascista. Ora, não é o filme que é fascista, mas a ausência de Estado e de serviço público de razoável qualidade é que é fascista.

Anônimo disse...

Te decide Maia, ora tu defende menos estado, ora tu defende mais estado.

Café nem pensar. Tem que decidir se vai pôr mais açucar ou menos açcar.

jucah

Anônimo disse...

Cristovão, como leitor frequente do seu blog, mais do que discordar do seu comentário (e quase sempre concordo com você), acho lamentável classificar como "ejaculação mental precoce" quem você diz não atingir a "profundidade do filme". Cheira a arrogância e falta de disposição para o verdadeiro debate. Até porque o filme é tão "didático", com aquela narração em primeira pessoa, que parece mesmo feito para ensinar a nossa burguesia tacanha como é o mundo real. O fileme é fraco!

Jean Scharlau disse...

Não falo do filme porque ainda não assisti, mas publiquei um artigo do Mauro Santayana no www.olobo.net

Já que falaste no Costa-Gavras

Carlos Eduardo da Maia disse...

Isso é um off topic, mas assisti hoje na CNN os discursos da Hillary e do Obama. O Obama é o máximo. Ele é muiiiito bom.

Anônimo disse...

Fascistão no sentido que faz e aceita um estado autoritário que delega aos grupos de assassinos o papel de juizes. Estados como o nosso - com qualquer partido (?) que estiver de plantão no momento. Mas é claro que não vou convencer ninguém que aceita a meia ética, a meia honestidade (nos cartões foram desviados só 00000,2%!!!). Intelectual de aluguel até o regime nazista teve. Abs.

Anônimo disse...

Ronda o gosto de sermos tutelados pelos europeus. Filme proto-fascista.

Anônimo disse...

O Deputado Bolsanaro entrou com projeto para tornar patrimonio nacional a farda e simbolo do Bope pelo sucesso....
Lógico atendendo pedidos e anseios da comunidade facista, e, quem sabe, especial do Maia

Claudio Dode

Anônimo disse...

Interessante verificar a opinião do fascista Reinaldo Azevedo sobre o filme.

armando

Carlos Eduardo da Maia disse...

O Armando e o Cláudio Dode não entenderam o filme. O poder de polícia que é monopólio do Estado tem a obrigação de prender criminoso e não pode torturar e nem fazer justiça com as próprias mãos. O filme não faz apologia a isso, mas mostra a realidade nua e crua de como funciona a complicadérrima relação entre polícia, traficantes e ONGs nos morros do Rio. Fascista não é o filme, mas a realidade da ausência de Estado e da falta de um serviço público razoável.

Anônimo disse...

Concluindo, Maia, a opinião do Reinaldo Azevedo, Jabor, Olavo Carvalho e Mainardi (respectivos blogs), batem com a sua . Por quê?

armando

Anônimo disse...

Maia,

O filme é só um filme, o facista é tu.
Aliás, corrigindo, nazista.

Claudio Dode

Guga Türck disse...

Eu vi o Paulão, do Polícia em Ação, no glorioso canal 20 da nossa linda cidade, produzir nas vielas de uma vila de Porto Alegre imagens do "nosso BOPE" em ação. Foi ridículo. Uns 6 brigadianos fardados com aquele uniforme camuflado, todos de óculos escuros, enfileirados, se deslocando agachados, com arma em punho, vindo em direção à câmera... Como se estivessem em plena operação - ao fundo, claro, a canção tema do filme.
E isso no meio de uma ação policial!
Tudo armado, produzido.
Uma produção cachorra que deveria ser rechaçada veementemente, pois coloca servidores públicos no papel de fantoches midiáticos...
Não sei se o filme é facista, porque não o vi, mas que a reação produzida na sociedade é fascista, isso não há dúvidas!

Anônimo disse...

o Paulão é um funcionário fantasma do Estado do RS, escapa da função pública pra fazer aquela M de programa.

É um negro de alma branca, filiado ao "glorioso" PTB do Zamba.

curvelo

Anônimo disse...

Tóia, o que verdadeiramente me impactou ao assistir o filme foram as cenas de alguns fascistinhas aplaudindo os momentos de tortura... Concluo, assim, que o cinismo... é muito maior!!!
Abraço.
RFPedroso

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