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Surf no lixo contemporâneo: a que ponto chegamos! E que mundo deixaremos de herança para Keith Richards?

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008


Comentário ao filme “Batismo de Sangue”

Culpa, cigarros e pau-de-arara

Ontem, finalmente consegui assistir ao filme “Batismo de Sangue” (2007), do diretor mineiro Helvécio Ratton, roteirizado a partir do livro homônimo de Frei Betto (1983).

Um filme tecnicamente bem realizado, com uma reconstituição de época onde é difícil se encontrar defeitos (talvez na churrascaria cênica de São Leopoldo, duvido que já existisse o tal rodízio de assados por volta de 70) e onde todos fumam cigarros compulsivamente, o tempo todo. A fotografia é boa (ganhou prêmio no Festival de Brasília) mas de textura irregular, em cenas no interior da França, onde o protagonista Frei Tito acaba seus dias (num convento dominicano construído a partir de um projeto de Le Corbusier), ela se modifica de súbito.

Quero dizer que não li o livro do Frei Betto. Por isso mesmo só posso comentar o filme, tão somente. Não sei o motivo, talvez apenas uma cisma, mas eu imaginava que o livro/filme tratasse de forma mais abrangente o tema da luta armada. Não é nada disso, o objeto narrativo gira em torno dos religiosos dominicanos, mais precisamente sobre o jovem frade Tito de Alencar Lima, cuja história acaba numa tragédia pessoal devastadora. A coisa é tão dramática, crua e profunda que eu temo que o filme não tenha podido alcançar o subterrâneo no qual foi se afundando Frei Tito. Precisaríamos, talvez, de um Ingmar Bergman para dar conta dessa empreitada.

São muitas as camadas de material objetivo e subjetivo que encobrem o lento e inexorável resvalar de Tito para a tragédia pessoal – políticos, religiosos e psi. Não sei qual o juízo do inteligente e preparadíssimo Frei Betto sobre o assunto, mas o seu colega Tito convenceu-se (delirantemente) de que havia cometido um animicídio – no qual o indivíduo imagina ter perdido a alma por ter pecado. Tito incorpora a tortura sofrida pela repressão do Estado, através dos agentes Fleury, Raul Careca e Pudim, e esta torna-se autônoma dentro de si, contando com a inestimável contribuição da inefável e onipresente categoria da culpa judaico-cristã – essa quase instituição Ocidental promotora de sofrimento e auto-repressão aos “mansos e humildes de coração”.

Num dos diálogos, em Paris, Tito diz a seu colega que já não acreditava em mais nada: “Nem Cristo, nem Marx, nem Freud”. O “Mal-Estar na Civilização” conciliado com o mistério da Santíssima Trindade, seria isso?

De fato, um coquetel explosivo, tanto mais se estiver turbinado por continuadas sessões de pau-de-arara, onde – para muito além do massacre físico – era visada a destruição da identidade mesmo do sujeito. Na tortura física acontece a desconstituição dos simbolismos e das sublimações intelectuais (e religiosas) e o desmoronamento das representações idealizadas do nosso próprio eu. A tortura não é somente um moedor de carnes, seria uma redução compreendê-la assim, mas sobretudo um moedor de almas.

Quando a irmã de Tito vai visitá-lo, preocupadíssima, na França, este não a recebe. Alega, mal abrindo uma fresta na porta, que o delegado (torturador) Fleury estava vigiando-os. Tito, neste momento, é uma nova persona (Jung), criado por Fleury, Raul Careca e Pudim - em última instância, também pelo impostor general Médici.

É o ponto mais alto da chamada tortura exitosa: a anulação do sujeito e a substituição por uma nova identidade, agora ressignificada por uma brutal e implacável autocrítica, quase que admitindo que a repressão dos agentes públicos tem de fato sentido. E para Tito, tinha mesmo sentido, o que deixa de ter sentido é a sua própria vida. Por isso ele não hesita em abreviá-la. Está autorizado pelos seus novos senhores, os que povoaram a sua alma tripulando a sua própria culpa.

De resto, o filme fica devendo uma reflexão mais politizada sobre o processo da luta armada conduzida por setores importantes da esquerda brasileira no final da década de sessenta e início da década de setenta. É mais uma peça memorialística do nosso conflito social recente que não ousa fazer um balanço sobre o conjunto da sua própria obra.

Mas ainda há tempo, se a Espanha, que viveu a sua sangrenta guerra civil na década de trinta, ainda não esgotou essa fonte narrativa e reflexiva, nós brasileiros temos muitas histórias para contar e janelas para abrir.

“Batismo de Sangue” pode ser visto em Porto Alegre, na sala do Santander Cultural, sempre às 15h, até sábado. O ingresso custa 3 reais. Recomendo.

10 comentários:

Anônimo disse...

Li o livro há muito tempo, não tive coragem de assistir o filme, pela exposição da violência e os maus tratos, mas o principal objetivo do livro é esclarecer a morte de Carlos Mariguela e a participação dos franciscanos no episódio. Acredito também que temos muito a pesquisar e debater sobre a luta armada no Brasil.
um abraço
Carmelita

Anônimo disse...

O que ajudou a destruir Tito e parte dos dominicanos foi a onda espalhada na época pelos canalhas, que os dominicanos entregaram Marighela de bandeja, sem tortura. Claro que isso era uma mentira deslavada, mas pegou e os dominicanos começaram a sofrer uma certa patrulha.

armando

Carlos Eduardo da Maia disse...

Rodízio nasceu nas pizzarias no final da década de 70, pelos anos 78, 79. Lembro que era bacana fazer campeonato de quem comia mais. Um amigo meu conseguiu comer 28 pedaços de pizza na Chuvisco, ali na Cristóvão Colombo em POA.

Anônimo disse...

O velho militante Marighella errou. Foi ingênuo em confiar nos padres, muito jovens e recém chegados à ALN, sem nenhum treinamento de campo, e outras cositas. Ele foi para o ponto com os dominicanos de forma quase irresponsável e acabou caindo numa arapuca mortal. Quem abriu o bico mesmo foi o frei Fernando Brito, o filme é fiel aos fatos.

Lobato

Anônimo disse...

Mulher que é bom... nada, né seu maia?
É só corrida idiota pra ver quem em embuxa menos com mais pizza horrível da Chuvisca. Lá a pizza era táo ruim que tinha pizza sabor milho. Tinha um grão de milho a cada dez centímetros dquilo que chamavam de pizza.

Anônimo disse...

Só um detalhe, que já pertence à história. Marighela vinha sendo "acompanhado" há vários meses antes do assassinato, via ligações que ele fazia e recebia na Livraria Duas Cidades (existente até há 2 anos - ainda com uma senhora da época do Marighela). A livraria era o ponto de contato com os dominicanos e, por tabela, dos acertos e encontros. Concluindo, houve tortura e das pesadas, mas os canalhas queriam apenas checar o que já sabiam.

armando

Carlos Eduardo da Maia disse...

O erro de Marighela foi investir na luta armada.

Anônimo disse...

Esse filme deveria ser exibido em praça pública ou no Planeta Atlântida. A maioria (jovens e nem tão jovens assim) não têm idéia do que foi esse período na história deste país. O que choca também é ver 'médicos monstros' a serviço da tortura. sv

Anônimo disse...

Isso que é só um pedacinho da história, imagina o resto...sv

Anônimo disse...

Ainda sobre esta passagem na história do Brasil, o blog do Mello pulica hoje um editoral da Folha de São Paulo (tão atenta à democracia hoje) onde o Sr. Otávio Frias de Olveira elogia o governo Médici, dizendo "o Brasil de hoje(1971) é um país onde o ódio não viceja".
Esta é a nossa respeitada imprensa!
um abraço
Carmelita

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