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Surf no lixo contemporâneo: a que ponto chegamos! E que mundo deixaremos de herança para Keith Richards?

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O capitalismo se tornou hostil à vida


Entrevista com o sociólogo Richard Sennett

O capitalismo financeiro mudou o mundo. E não para melhor. A opinião é do sociólogo Richard Sennett. A aversão ao longo prazo deste capitalismo foi um dos fatores que originaram a atual crise e que mudou radicalmente as nossas vidas nas últimas décadas. Sennett esteve em Barcelona, na Espanha, apresentando seu último livro, "O Artífice" (Record, 2009), que parte de uma antiga conversa com sua professora Hannah Arendt, a autora de "A condição humana", na qual ela separava a produção física, onde seríamos pouco mais que bestas de carga, da criação mental. Para Arendt, a mente entra em funcionamento uma vez terminado o trabalho. Para Sennett, no processo de produção do artesão – todo aquele que deseja realizar uma tarefa bem feita, e que inclui não apenas a produção manual, mas também programadores, médicos, artistas ou padres – o pensar e o sentir estão integrados. A mão e a cabeça não estão separadas, mesmo que a nossa sociedade valorize apenas uma.

Por que a relação entre a mão e a cabeça é básica?

Nossa potência mental se desenvolveu através das mãos, da manipulação de coisas. Hoje pensamos nas atividades materiais como coisas estúpidas, percebemos nossos cérebros como uma máquina auto-suficiente. É errado. Há um processo aberto entre melhorar as capacidades físicas e o pensamento, uma relação estreita entre a mão, a cabeça e o coração. Pensamos um desenho e acreditamos que essa imagem mental pode projetar-se no mundo. Uma péssima política: não aprendemos da prática.

Parece aquela velha divisão filosófica entre alma e corpo.

Não é apenas a filosofia, a política também. O capitalismo fomentou esta divisão. Nas últimas décadas os bancos negociaram com abstrações, teorizam sobre os valores e perdem o contato com o que é uma fábrica, uma oficina. Muitos compram e vendem empresas que não entendem. Nem precisam, porque compram o seu valor monetarizado. E não há possibilidade, artesanato, de fazer com que a empresa seja boa ou má, não há conhecimento. Compram uma empresa de colchões e a vendem a outra, mas com mais dívida, esta faz o mesmo. A empresa tem cada vez menos capital e tende a quebrar. Perguntei a um dos compradores: viste como se faz um colchão? Me respondeu: para quê, se seria proprietário por apenas três meses. Assim se desenvolve agora a economia capitalista, se despreza a práxis, a mão na massa, não sabem o que fazer porque de fato nunca administraram nada.

É a exploração atual?

Sim, a dominação das finanças sobre a economia real. As finanças são uma operação abstrata. Sempre pensamos que o capitalismo é hostil ao artesanato porque descapacita o artista, mas é mais sofisticado: não está implicado na prática. Teoriza. Por exemplo, com a dívida. É uma das razões da crise atual.

E as outras?

Outra é a forma do tempo no capitalismo hoje: tudo é curto prazo. A economia global se reorienta para o comércio de preços das ações mais que os seus benefícios finais. A noção de administrar uma empresa para ter benefícios a longo prazo desapareceu. Podes ganhar dinheiro com empresas que estão perdendo. De maneira que quando chegas a uma economia como esta não tens interesse em conseguir que a economia real funcione.

Que pensa o autor de "A corrosão do caráter" do alarma pela alta taxa de suicídios em empresas como a Renault ou a France Télécom?

Na minha equipe estamos estudando o desemprego a longo prazo em Wall Street e encontrando coisas muito similares. Alcoólicos e suicídios não apenas entre os que perdem o trabalho, mas entre os que permanecem e que estão tão estressados porque para preservar o posto de trabalho têm que fazer cada vez mais. O capitalismo nos últimos 20 anos se tornou completamente hostil à construção da vida. No antigo capitalismo corporativo de meados do século XX podias sofrer injustiças, mas construir a vida. Nos últimos 20 anos se converteu em algo desumano, e a esquerda está tão contente por serem homens práticos que podem falar com os banqueiros. De fato, o primeiro movimento na crise foi ajudar os bancos. Na Inglaterra foram comprados quatro e mesmo assim se decidiu não interferir no que fizeram.

Qual é a alternativa?

Não podemos voltar ao antigo capitalismo. A esquerda deve refletir sobre como fazer crescer empresas que realmente permaneçam. Empresas de tamanho pequeno como as do norte da Itália e do sul da Alemanha, com trabalhos muito especializados. Não fabricam em massa e trabalham mais a longo prazo, desde a formação dos trabalhadores até as suas relações de exportação. Um trabalho artesanal, que pode ser muito avançado, como telas de alta definição para cirurgias.

"O Artífice" é o início de uma trilogia de despedida?

Queria unir as preocupações básicas da minha obra, a relação entre o material e o social, o concreto e o abstrato. Depois me dedicarei ao violoncelo, terei recuperado a possibilidade de tocá-lo, mas só me restam dez anos na mão. Certamente, todos os músicos são artesãos, sabem que não existe uma ideia musical sem base física. O segundo livro será dedicado à relação entre o material e o social: a confiança, o respeito, a cooperação, a autoridade, o artesanato das relações sociais. E o terceiro, à nossa relação com o meio ambiente.

Você não aceita o que está por trás da ideia de sustentabilidade?

Porque não somos proprietários da natureza. Sustentabilidade significa manter as coisas como estão. É uma metáfora errônea. Podemos viver com muito menos. Menos tráfego, menos carbono. Diferentes tipos de prédios. Devemos mudar a noção da modernidade de que o ser humano sempre dominaria a natureza. Produz autodestruição. Copenhague foi terrível, especialmente os chineses, que cinco dias antes diziam “verde, verde”, e depois que não, que não queriam que ninguém interferisse nem conhecesse a sua tecnologia. Aterrador. E os europeus, fora do jogo.

A entrevista é de Justo Barranco e foi publicada no jornal argentino Clarín, de 23/12/2009. A tradução é do Cepat. Pescado do portal IHU - Unisinos.

P.S.: Richard Sennett é um sociólogo norte-americano que não se filia à corrente marxista. Como ele mesmo admite, sofreu influências de Hannah Arendt, de quem foi aluno, e de Michel Foucault, ambos igualmente não-marxistas, antistalinistas, mas não antimarxistas. Como se pode notar, não precisa ser marxista para estar convencido que o capitalismo é um modo de produção e de reprodução das relações socias que está com os dias contados, embora o seu final não vá acontecer de forma espontânea e unívoca.

3 comentários:

Anônimo disse...

Uau, Gracias Feil. Primeira vez desde que comprei esta engenhoca que consigo ler algo que se coaduna com o que eu consigo pensar. Já era fã de Hannah Arendt, parece que vou ser fã de um Norte Americano que tem consciencia (coisa rara). A massificação da produção causa miséria, o que causaria a produçaõ especcializada (para poucos)? Isto poderia fazer uma elite? Abraços Marcelo J.

rafael disse...

pô dizer que o "capitalismo é hostil à vida" é chover no molhado, ou sangrado... na sua forma mais perfeita e explícita, civilizatória e colorida, eficiente e eficaz, o nacional socialismo alemão, já percebemos o valor que esse modo de produção dá à vida...

Anônimo disse...

Parabéns pelo artigo.
É o que eu sempre comento sobre os bancos (qualquer probleminha na conta e tem multa sobre multa, juros, ligações desaforadas) - O Banco acha que é fácil ganhar dinheiro, por isso é tão ávido pela moeda. Enfim, o dinheiro manda, a Natureza, o espoliado, não importa, desde que haja lucro.

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