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sexta-feira, 25 de setembro de 2009
O provincianismo
Visto pelo olho agudo de Fernando Pessoa, em 1928
Se, por um daqueles artifícios cómodos, pelos quais simplificamos a realidade com o fito de a compreender, quisermos resumir num síndroma o mal superior português, diremos que esse mal consiste no provincianismo. O facto é triste, mas não nos é peculiar. De igual doença enfermam muitos outros países, que se consideram civilizantes com orgulho e erro.
O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela — em segui-la pois mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz.
O síndroma provinciano compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o entusiasmo e admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade de ironia.
Se há característico que imediatamente distinga o provinciano, é a admiração pelos grandes meios. Um parisiense não admira Paris; gosta de Paris. Como há-de admirar aquilo que é parte dele? Ninguém se admira a si mesmo, salvo um paranóico com o delírio das grandezas. Recordo-me de que uma vez, nos tempos do « Orpheu», disse a Mário de Sá-Carneiro: «V. é europeu e civilizado, salvo em uma coisa, e nessa V. é vítima da educação portuguesa. V. admira Paris, admira as grandes cidades. Se V. tivesse sido educado no estrangeiro, e sob o influxo de uma grande cultura europeia, como eu, não daria pelas grandes cidades. Estavam todas dentro de si».
O amor ao progresso e ao moderno é a outra forma do mesmo característico provinciano. Os civilizados criam o progresso, criam a moda, criam a modernidade; por isso lhes não atribuem importância de maior. Ninguém atribui importância ao que produz. Quem não produz é que admira a produção. Diga-se incidentalmente: é esta uma das explicações do socialismo. Se alguma tendência têm os criadores de civilização, é a de não repararem bem na importância do que criam. O Infante D. Henrique, com ser o mais sistemático de todos os criadores de civilização, não viu contudo que prodígio estava criando — toda a civilização transoceânica moderna, embora com consequências abomináveis, como a existência dos Estados Unidos. Dante adorava Vergílio como um exemplar e uma estrela, nunca sonharia em comparar-se com ele; nada há, todavia, mais certo que o ser a «Divina Comédia» superior à «Eneida». O provinciano, porém, pasma do que não fez, precisamente porque o não fez; e orgulha-se de sentir esse pasmo. Se assim não sentisse, não seria provinciano.
É na incapacidade de ironia que reside o traço mais fundo do provincianismo mental. Por ironia entende-se, não o dizer piadas, como se crê nos cafés e nas redacções, mas o dizer uma coisa para dizer o contrário. A essência da ironia consiste em não se poder descobrir o segundo sentido do texto por nenhuma palavra dele, deduzindo-se porém esse segundo sentido do facto de ser impossível dever o texto dizer aquilo que diz. Assim, o maior de todos os ironistas, Swift, redigiu, durante uma das fomes na Irlanda, e como sátira brutal à Inglaterra, um breve escrito propondo uma solução para essa fome. Propõe que os irlandeses comam os próprios filhos. Exarnina com grande seriedade o problema, e expõe com clareza e ciência a utilidade das crianças de menos de sete anos como bom alimento. Nenhuma palavra nessas páginas assombrosas quebra a absoluta gravidade da exposição; ninguém poderia concluir, do texto, que a proposta não fosse feita com absoluta seriedade, se não fosse a circunstância, exterior ao texto, de que uma proposta dessas não poderia ser feita a sério.
A ironia é isto. Para a sua realização exige-se um domínio absoluto da expressão, produto de uma cultura intensa; e aquilo a que os ingleses chamam detachment — o poder de afastar-se de si mesmo, de dividir-se em dois, produto daquele «desenvolvimento da largueza de consciência», em que, segundo o historiador alemão Lamprecht, reside a essência da civilização. Para a sua realização exige-se, em outras palavras, o não se ser provinciano.
O exemplo mais flagrante do provincianismo português é Eça de Queirós. É o exemplo mais flagrante porque foi o escritor português que mais se preocupou (como todos os provincianos) em ser civilizado. As suas tentativas de ironia aterram não só pelo grau de falência, senão também pela inconsciência dela. Neste capítulo, «A Relíquia», Paio Pires a falar francês, é um documento doloroso. As próprias páginas sobre Pacheco, quase civilizadas, são estragadas por vários lapsos verbais, quebradores da imperturbabilidade que a ironia exige, e arruinadas por inteiro na introdução do desgraçado episódio da viúva de Pacheco. Compare-se Eça de Queirós, não direi já com Swift, mas, por exemplo, com Anatole France. Ver-se-á a diferença entre um jornalista, embora brilhante, de província, e um verdadeiro, se bem que limitado, artista.
Para o provincianismo há só uma terapêutica: é o saber que ele existe. O provincianismo vive da inconsciência; de nos supormos civilizados quando o não somos, de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades por que o não somos. O princípio da cura está na consciência da doença, o da verdade no conhecimento do erro. Quando um doido sabe que está doido, já não está doido. Estamos perto de acordar, disse Novalis, quando sonhamos que sonhamos. [Em 1928]
Textos de Crítica e de Intervenção, Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1980.
Foto: posteridade pop de Pessoa em parede portuguesa do Porto.
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8 comentários:
Caro Feil, o ilustrado professor Herr Franz Neumann não iria escrever um artigo para o blog?
Eu li um comentário dele aqui mesmo onde se comprometia a mandar uma análise qualquer.
Será que pela avançada idade, o professor falhou ou foram outros os motivos?
O imenso poeta português Fernando Pessoa. Para mim, o maior deles.
Junto com Neruda, Drummond, Gullar, Cortázar, Benedetti, Loyola e alguns outros a razão de eu arriscar umas mal traçadas linhas, vezemquando.
Além de poeta, pensava com profundidade as coisas da vida, dando um toque de consciência política, esoterismo e filosofia.
Quantos de nós, ainda, não somos provincianos?
Belo artigo.
Ricardo Mainieri
Prezado Feil, o Sr. Jota Gê de Araujo Jorge, o mais romântico de todos os poetas, roga a vosmecê uma análise semiótica do seu mais recente sucesso editorial a ser lançado na feira do livro de Porto Alegre: Poemas Para o Rio Grande Adormecer ! Maiores informãções sobre a obra no blog: www.xuviskovic.blogspot.com
Gracias
Feil, que infantilidade, se o governo local fosse petralha tu não iria ter essa perseguição contra qualquer minúcia do nosso estado. Se os estados extratores de petróleo se reúnem o RS tá ficando pra trás, se Pernambuco tem um festival africano o RS tá ficando pra trás, se o governador da Bahia é petista o RS tá ficando pra trás
Ricardo
O provincianismo não está em ter ou não petróleo ou promover ou não festivais afro. O provincianismo está em repetir experiências que demonstraram sua ineficácia e seu malefício, com o deslumbramento do ineditismo. Nós poderíamos continuar sentados, mateando, com o olhar perdido no pampa e ainda assim sermos civilizados. O provincianismo é acreditar que juncar esse pampa de eucaliptos será a nossa redenção.
Mas não se preocupe, vc ainda tem salvação o pode se libertar da mesmice provinciana.
Apesar de não aperecer no texto do F. Pessoa uma única menção ao RS, vc se deu conta q ele em tudo se aplica ao q se passa por aqui. Vc percebeu a ironia do blogueiro!
Eugênio
Ricardo,
Independentemente do partido político que esteja no poder, a formação sociocultural, econômica e étnica do RS torna a classe média altamente reacionária.
Isso não depende de quem ela vota. Basta apenas buscar informações adequadas não na mídia, mas entre pesquisadores acadêmicos de DIVERSAS áreas diferentes e de diversas universidades.
[]'s,
Hélio
"O síndroma provinciano compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades..." ou, como dizia o nosso querido Mario Quintana, "nada mais provinciano do que querer morar no Rio". Hoje há muitos outros Rios mais pórximos do que quando escreveu MQ.
Eis que surge o perfeito retrato da nossa classe média nas palavras de Fernando Pessoa.
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