A bombachização unidimensional do Rio Grande do Sul
Ontem estive no Acampamento Farroupilha (fotos) no Parque da Harmonia. Quero falar um pouco desse fenômeno sul-rio-grandense que se insere nas comemorações da chamada Semana Farroupilha. De forma breve e econômica, vou contar como para alguém de fora do Rio Grande do Sul e que não saiba nada desse entrevero anual de gente, cavalo, bóias fortes, música primária e muito comércio miúdo. Parece uma “feira medieval” do ano 1000, como alguém já disse com rara sensibilidade.
O Parque da Harmonia é uma área verde que fica praticamente no Centro de Porto Alegre, entre o maciço de prédios aglomerados e o lago do Guaíba. Muito rústico, como se pode ver nas fotografias, é uma réplica atemporal e xucra, suspensa no tempo, das feiras medievas que aconteciam fora dos muros das cidades do primeiro milênio. Por ser uma festa da carne, pode-se chamar a essa celebração anual de “a mais autêntica expressão do carnaval farroupilha”, porque prepondera o consumo exagerado (não-republicano, como alguém também disse ontem) de cortes bovinos e ovinos assados em braseiro de lenha. Carnaval etimologicamente como “abandono da interdição da carne”, bem entendido!
De resto, a autenticidade fica por aqui. Tudo o mais é falso, espetacular ou inventado. Embora seja “vendido” como algo de raiz, de tradição e histórico. Nada disso. Tudo é uma apropriação indevida de fatos vertidos num imenso painel mítico com intenção de emprestar uma identidade confortável aos indivíduos do senso comum, aos “gaúchos a pé”, no dizer de Cyro Martins.
O Acampamento representa a quintessência do senso comum acerca de um postiço fundamento heróico no passado rio-grandense. Os indivíduos estão lá, a maioria pilchados com o traje-fantasia do latifúndio, prenhes do nada, cumprindo um rito ditado por uma Tradição integralmente inventada por necessidades políticas e culturais de dominação e mando.
A Semana Farroupilha é uma efeméride oficial fixada e calculada pela ditadura militar em dezembro de 1964, foi uma das primeiras providências “culturais” dos golpistas. Perdura até hoje, e a cada ano adquire cada vez mais força e simpatia popular. É um momento singular de sociabilidade e identidade cultural, não importa aí distinguir a qualificação ideologizada destes elementos de efetiva agregação social.
Como experiência sensível é uma festa pitoresca (e hilária) de grande significado. A gastronomia, apesar de conspirar a cada minuto contra a boa saúde, é farta e saborosa. É de ressaltar, por último, aquilo que o professor Moacyr Flores sempre repete, o “gauchismo” e suas imposições normativas no tocante à música, à indumentária, à gastronomia (absurdamente o churrasco foi oficializado como prato típico do RS, por lei votada no Legislativo) e ao folclore, a médio prazo, tende a inibir e castrar a rica cultura multi-étnica do Rio Grande do Sul.
Em nome da Tradição inventada caminhamos todos para a bombachização do Estado, figurantes passivos de um espetáculo unidimensional emburrecedor e paralisante, onde não há pensamento, só ritos mecânicos auto-explicados e auto-justificados.
Pelo menos a Natureza resta em vigília.
22 comentários:
Bravo, Cristóvão:
abraço
Carmelita
As fotos não são do acampamento deste ano. Dá para se ver os prédio do TRF e das torres gêmeas do MP inacabados.
Ninguém disse que as fotos são deste ano.
Triste quadro da jaguarada. Precisamos de humor e ironia prá suportar a retórica vazia do poder, da mídia e das instituições q domesticam e controlam.
O alienado do borracho deu vivas ao Borges de Medeiros e o Chávez ontem quer impor um modelo bolivariano de educação, sem eurocentrismo que idolatra o super homem e o Cristóvão Colombo. O borracho aprendeu que Borges é coisa boa e o Chávez quer ensinar a todos venezuelanos (sem exceções) que Colombo é coisa ruim. Nenhum dos dois tem razão. Não se pode contar história apenas do avesso, porque não existe apenas os outros 500, como também não é sincera a história contada pela oficialidade, dos vencedores e dos poderosos. A história deve ser contada -- SEMPRE -- da forma mais ampla possível e cabe a todos juntar os caquinhos e fazer o nosso quebra cabeça da verdade.
Trecho que a Diocese de Caxias do Sul divulga. É a simbíose de ideologias com objetivos muito comuns.
JESUS CRISTO GAÚCHO TRADIDONALISTA
"Para principiar a nossa prosa, ainda envoltos pelo clima da Magna Semana dos gaúchos e gaúchas de todas as querências, que nos recorda a epopéia Farroupilha, do 20 de setembro de 1835, nos cabe perguntar: Que jeito tem o Cristo Gaúcho? Como o representamos quando o tornamos nosso conterrâneo?
Uma primeira resposta, que perpassa o nosso imaginário, é com certeza a de um Jesus Cristo herói, montado num flete ligeiro com elegância e facilidade notável, um centauro dos pampas, valente, vigoroso, ágil, leal, camarada, triunfante, impetuoso, ídolo de seus concidadãos[5]. Pilchado de bombacha feita de linho, de cor escura, num padrão xadrez discreto, de cós largo sem alças, dois bolsos na lateral, com punho abotoado no tornozelo, contendo algumas sóbrias marcas nos favos, coincidindo a largura da perna com a largura da cintura, sem qualquer confusão com as calças modernas, posta para dentro das botas pretas de couro liso, que tinem as esporas. A bombacha é presa com uma faixa lisa bege de algodão cru, e sobre ela o cinto de três guaiacas, de uns 10 cm, com duas fivelas frontais, e uma faca atravessada na cintura... O Cristo gaúcho de nossa imaginação talvez esteja usando uma camisa de algodão liso, de cor branca, com gola, de mangas longas e paletó feito do mesmo tecido e da cor da bombacha. Um chapéu preto de 12 cm de aba e copa baixa, tendo um barbicacho de couro cru. Com um pala jogado no ombro, um trançado de oito na mão, um laço na outra e com o lenço vermelho ou branco revoando no pescoço. Podemos conservar o seu bigode e a sua barba, dando uma aparada em suas melenas para que não fique muito caracterizado com o gauche original.
Quando falamos de gaúcho logo nos vem à mente este modelo, idealizado pelo Movimento Tradidonalista Gaúcho, que normatiza até a nossa imaginação com os seus regulamentos, que chegam a ter “Diretrizes para a pilcha gaúcha”.
Cristóvão!
Estive comendo um carreteiro na Casa do Alegrete no acampamento, na sexta à noite.
Deparei-me com a Secretária da Cultural América Leal e sua trupe.
Só não tive indigestão porque não havia comido ainda...
Resolvi ficar por lá, pois tenho grandes amigos do Alegrete e que fui encontrar por lá.
Um deles, inclusive, me explicou a razão do factóide da casa.
Projeto de reestruturação de museu cultural no Alegrete - não me recordo o nome.
Pois este meu amigo não perdeu tempo e deu a sua "chinelada": "Peguei o microfone e disse, na cara dessa gente, que o melhor que o governo faria era reformar a escola mais tradicional da cidade, ao invés de um projeto megalomaníaco desses que não vai sair do papel..."
E é só disso que essa gente da direita gaudéria vive: homenagens, celebrações e projetos - nunca realizações concretas.
É a legítima ejaculação precoce...
E o carreteiro se comportou bem depois? Pelo menos te escreve, telefona, manda e-mail?
Abraço, Guga velho de guerra... essa é a típica "perco o amigo, mas não perco a piada".
Gurizada. Vivo em Porto Alegre desde 1976 e nunca fui visitar o tal acampamento. Agora de tanto vocês falarem até me deu certa curiosidade...
Realmente eu concordo plenamente com suas colocações a respeito do "gauchismo". Eu vou (não frequento), ao "acampamento", desde o seu primeiro ano (uma vez por ano). Lá atrás, era algo espontâneo e sem ideologia. Um grupo se reuniu no Harmonia para jogar conversa fora, tomar chimarrão e cachaça e comer churrasco. Daí, os aproveitadores e usurpadores de corações e mentes, se apropriaram da idéia e, deu no que deu. É uma verdadeira "Disneilândia Gaudéria", falsa, sem conteúdo, assim como as mais diversas manifestações que nascem sem qualquer pretenção e, depois deturpadas para gerarem lucro para alguns.
Hoje, lá estão, os latifundiários, a mídia, os bancos, a elite rural. E o povo? O povo fica andadndo de um lado para o outro, comento churrasquinho de gato, e engolindo esse carnaval, como sendo a única cultura do RS. E mais, estão causando grandes impactos ao parque, mas aí, não vem o Beto-brigão-Moesch, para dar um fim nessa gandaia.
A prefeitura, do seu Foga$$a, "cedeu" (?), para não sei quem, nem como, nem por quanto, áreas para estacionamento , onde os eleitos, cobram 8 "pilas", e fica TODO MUNDO CONTENTE. Tudo isso prá comemorar a derrota do farrapos. E pergunto: quais as façanhas servem de modelo a toda a terra? Mariorangelgeografo.blogspot.com
Está feito o imbroglio.É possível se recriar a partir de outra leitura do tradicionalismo um novo senso comum emancipatório? Mesmo porque, em certo sentido, esta releitura aparece na reapropriação popular efetivada por exemplo pelo MST.Como longuinquo descendente de índia charrua sequestrada por um civilizado bandeirante imagino que o velho Antônio Gramsci poderia nos dar pistas de um novo processo inspirado na reatualização da noção de nacional-popular.
Sou gaudério de Uruguaina, conheço bem esse mundinho guasca, por isso prefiro comer o entrecot do Panchos. Tem ar-condicionado e chopp, quer algo melhor?
Apesar de perdido aqui nos fundões de Sâo Paulo tive duas opotunidades de frequentar o Acampamento. É realmente um parque de diversões hegemonizado pelo latifúndio e frequentado por classes urbanas cuja identidade em crise em tempos "globalização" a faz aceitar espaços míticos de paz e hierarquia. Para as classes urbanas mais transnacionalizadas basta frequentar shoppings e se forem intelectualizadas porque não Paris, com acento lacaniano e quejandos?
O Olívio Dutra quis fazer isso, professor Bento Monteiro. Mas ficou como o "gaúcho a pé", sem o auxílio do PT para pensar e depois criar esse senso comum emancipatório. Olívio tem origem e o "phisique du role" para enfrentar essa, mas ele também não é o Ulisses. Aliás, como diz o Feil, onde está o PT nesta hora?
Impossível, completamente impossível os movimentos e organizações "tradicionalistas" incorparem um novo senso comum emancipatório. Os velhos caudilhos, os Borges da vida, são tidos como herois para esse povo e assim vai continuar e assim segue a história. Quem gosta gosta quem não gosta não gosta. E o MST é muito mal visto por aqui. Não sei porque carga dágua, ninguém gosta do MST, porque invade propriedades, tranca estradadas e coloca as crianças, as mulheres e os idosos no centro de todas as confusões. MST não é espelho para nada.
Maia: gaudério do rego gordo-branco!
Caro professor:
Creio que não "É possível se recriar a partir de outra leitura do tradicionalismo um novo senso comum emancipatório", pelo menos tal como o termo "tradicionalismo" está dado no imaginário coletivo guasca. O único senso comum emancipatório do qual podemos falar quando nos referimos a tal termo, aliás, é o das crenças irrefletidas, do preconceito, do ranço cultural e o do patético complexo de superioridade que por aqui grassam. Tal "tradicionalismo", diga-se de passagem, é anticultural por definição, pois sufoca e engessa o presente a um passado irreal e delirante. O "acampamento farroupilha", aliás, é o simulacro máximo das relações sociais intra-estância, modelo a partir do qual o MTG construiu e legitimou sua hiper-realidade guasca, que tem no famigerado desfile de 20 de setembro o ápice da "matrix gaudéria".
Creio, no entanto, que se o senhor substituisse "do tradicionalismo" por "da história do RS", poderíamos começar a falar em tal senso comum emancipatório. Creio, além disso, que essa é uma conseqüência que pode ser extraída dessa excelente série com a qual nos brinda o Cristóvão.
Bem, o que posso dizer ao Maia, que ensaiou uma resposta ao seu questionamento? Nada, pelo menos enquanto ele continuar não entendendo o que está em discussão...
Carlos Eremildo Maia
O MST pode não ser (ainda bem que não é! espelho para ti. Espelho para ti é a Pantalhona Yeda, o cowboy Jobim, e aturma selinho...
Parabéns Cristóvão, belo texto! Quanto ao Olivio Dutra, não esqueçamos que o Secretário da Cultura do governo dele (aliás, sua indicação pessoal para o cargo) não teve a coragem de mexer neste "tradicionalismo" inventado nos anos 40. Certamente, com o Pilla Vares teria sido diferente!
Diferente com o Pilla??? Pra fazer isso, ele teria que bater de frente com os interesses da RBS, que ganha muito dinheiro com essa pantomima. Duvideodó.
Não entendi, Luciana. Pilla Vares foi secretário de Cultura, e no entanto...
Caro Anõnimo,
o argumento fundamenta-se na leitura gramsciana de "bom senso comum". Talvez a questão a ser feita é porque o tradicionalismo tem tanto êxito junto a determinadas classes - inclusive populares - certamente há valores positivos mesclados ao reacionarismo. O pensamento tradicionalista provavelmente é para estas classes uma estrutura de consolação (Adorno)nestes tempos de incerteza, mas acredito que deva ser examinado de forma dialética.
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