A função política do mito gaucheiro
No mito, a natureza das coisas é auto-explicada e, por isso mesmo, tautológicas, onde se define o mesmo pelo mesmo: “gaúcho é gaúcho; sendo gaúcho você é naturalmente tradicionalista; sendo tradicionalista você é naturalmente gaúcho”. E estamos conversados. Permanecemos prisioneiros de uma sentença irrecorrível. Quem estiver fora dessa perspectiva estreita está fora do mundo. É o diferente que precisa ser eliminado. É a temida Juliana Burgos [referência ao conto A Intrusa de Borges].
Sartre diz que a tautologia “é um duplo assassinato: mata-se o racional porque ele nos resiste, mata-se a linguagem porque ela nos trai”. Além disso, a tautologia (muito presente no discurso gauchista) protege-se covardemente atrás do “argumento de autoridade” ou, como diz o senso comum, o ultimato vil do “carteiraço”: “é assim porque é assim”; “porque é, e ponto final”, “eu sei porque sou fulano de Tal”. Ou, o que é pior: “eu sei porque sou seu Pai”.
Barthes diz que a tautologia é uma recusa à linguagem, e toda recusa à linguagem é uma morte: “a tautologia fundamenta um mundo morto, um mundo imóvel”. Os assassinos de Juliana Burgos nunca dialogam com ela, nem a chamam pelo nome; uma “coisa” não merece razão e sensibilidade, merece o silêncio, a morte e o repasto do carancho rapineiro.
O processo mítico começa a desenvolver-se – assegura Raoul Girardet – “a partir do momento em que se opera na consciência coletiva o que se pode considerar como um fenômeno de não-identificação”. O mito trata, então, de fornecer uma postiça identidade imagética às sensibilidades humanas. Como as ilusões estão todas mortas e enterradas, o mito as substitui por imagens de efeito placebo face às inquietações da modernidade avançada.
Lacan diz que “o faltante é estruturante”. Pois, o fenômeno do tradicionalismo narcisista, em que pese a sua simbologia simplória e sem saliências, encerra profundas repercussões na alma popular.
O mito, por ser despolitizante, opera uma ponte entre o passado e o futuro, sem tocar no presente, porque aí habita a política. O futuro será iluminado e glorioso como o passado na versão estancieira, e seleciona imagens identitárias, espelhos dourados ao homem-multidão.
Não somos como os animais, que se alimentam do imediato; a alma humana se alimenta – sobretudo – do faltante, do sonho, da projeção dos contornos do futuro anunciados pelos filósofos, profetas, demiurgos e utopistas. A matéria dos sonhos é feita de retalhos mesclados de utopia, memória, esquecimento, superstição, consciência, inconsciência, religião, encantamento, frustração, satisfação, magia, ciência, lucidez e loucura. O “desencantamento do mundo” (Weber) nunca se completa, novos encantamentos modelam-se nos rescaldos da história, novos mitos surgem para roubar-nos a humanidade, a imaginação e a autonomia.
Trecho de um artigo deste blogueiro publicado no portal da Agência Carta Maior (aqui na íntegra), em 24.10.2004.
5 comentários:
Bala!
"Gaúcho macho e grosso não come carne, rói osso".
Sou obrigado a ouvir de um exilado gaúcho que vive aqui...
Que artigozito buenacho, cumpá!
sou gaucho mas estou fora muitos anos, ontem quando o Jornal Nacional da Globo mostrou a festa farroupilha de POA no Parque, eu estava numa lanchonete no Rio fazendo uma boquinha. Os paraíbas viram aquilo, a gauchada comendo carne com facas imensas e desataram a rir, debochando do exibicionismo dos bombachudinhos. Fiquei quietinho!
que baita artigo, Cristóvão! perfeito ao fenômeno da "bombachização.. unidimensional" e vergonhoso. e o pior é que fora daqui (bom, muitas vezes sobretudo aqui mesmo!) é muito difícil traduzir isso e esclarecer que de fato esta noção sobre o RS é uma abstração, não existe, nunca existiu, na vida real.. mas aí a patrulha do reforçamento de mitos sempre aparece pronta pra dizer "A Verdade" e, como todo mundo sabe, com o dono da verdade não há debate possível.
beijo e bom início de final de semana por aí.
j.
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