O
livro da vida militar
“Este
vende a própria mãe.”
O
homem é enfático e preciso, como se espera de um general de quatro
estrelas. Recorre a imagens grosseiras por hábito, pois na caserna
isso era de bom tom. Preparado para comandar, sua fala é curta e
grossa, embora não dê mais ordens. Foi destituído do comando e
expelido do Exército por ter se oposto ao golpe.
De
cabelos já brancos, mas ainda rijo e firme, ele faz um inventário
de ex-colegas e ex-comandados. Pontua friamente, como se estivesse
classificando uma coleção de aracnídeos. Na mesa, aberto à sua
frente, o Almanaque do Exército, o rol de todos os oficiais, de
tenente para cima, das três armas do Exército: infantaria,
cavalaria e artilharia.
Seu
irmão mais novo, cirurgião celebrado, operou e talvez tenha salvado
da morte muitos dos empresários e banqueiros metidos no maldito
golpe. Nem por isso o general foi poupado. A injustiça da cassação
afinou sua percepção crítica e destravou ainda mais a sua língua,
pois se percebe que, embora militar, é pessoa fina.
“Este
outro, além de vender a mãe, entrega.”
O
Almanaque se parece a uma lista telefônica. Siglas miúdas, depois
de cada nome, designam etapas da carreira do oficial desde seu
ingresso na Academia Militar; registram cada mudança de patente;
cada colocação na Escola de Cadetes e nos cursos de especialização
e aperfeiçoamento. Dividido em três seções, uma para cada arma do
Exército, é o livro da vida do militar.
“Este
aqui foi o primeiro da classe.”
Um
primeiro colocado na sua turma da Academia Militar será referido
para sempre como o “primeiro da classe”. Mas que surpresa! Será
nosso Exército tão civilizado que nele impera o critério da
erudição e, por que não, da inteligência? Ou da aplicação no
estudo e na aquisição de conhecimento? Um exército que prioriza a
excelência intelectual?
Não
é bem assim.
“Estudiosos, só os
da artilharia.”
Estes
têm que aprender trigonometria, balística, calcular ângulos de
tiro, compensar a direção do vento, o calibre e o peso da carga
útil, a movimentação do inimigo. São equações complexas.
Aprendem a raciocinar com lógica. Por isso, tornaram-se o grupo
dirigente do Exército; os únicos com visão estratégica. Eles
organizaram e dirigiram o golpe militar.
“O
resto é um bando de ignorantes, piores são os da cavalaria.”
Num
exército que não guerreia há trinta e cinco anos, não há medalha
por bravura em campo de batalha, não há missão perigosa, nem o
teste de situações-limite, seja da unidade ou do indivíduo. Só o
que há é o ponto amealhado em sala de aula, o rigor da continência,
a lisura da farda, o brilho da bota; o domínio retórico de
hipóteses de guerras que nunca serão travadas e suas logísticas
imaginárias. Tudo no papel, na teoria. Gavetas e gavetas de mapas e
planos de ataques estratégicos, avanços e recuos táticos.
“A
principal hipótese era de guerra com a Argentina, tudo bobagem, só
para manter ocupados.”
Para
cada etapa dessa vida militar pachorrenta há um minucioso rito de
pontuação. Postos de comando, postos de chefia de departamento,
tudo é contabilizado. Mas, como em toda a organização burocrática,
as regras só valem para legitimar favoritismo imanente, nunca para
instaurar a meritocracia. As amizades é que decidem. Os vínculos de
lealdade. Não a lealdade leal, que não precisa razões para
existir. É a lealdade calculista, necessária à sobrevivência na
guerra interna pela promoção burocrática. Nesse exército de
oportunistas, as únicas batalhas são as travadas por cada um contra
o seu igual, na disputa pela promoção. As vagas minguando mais e
mais à medida que se sobe a escala da patente.
“O
funil mais apertado está na passagem de coronel para general de
brigada. Só um em cada cinquenta coronéis será general. E quem
sobra será expelido.”
Nessa
milícia de gabinetes, as baixas não se dão no teatro de guerra; se
dão nas listas submetidas pelo Estado-Maior ao comando, para que
decidam as promoções. Preteridos tombam sem dar um tiro. Caem fora.
Um oficial não pode estacionar na mesma patente.
“Para
ser promovido a general, o coronel tem que ter um protetor, tem que
pertencer a um esquema, a um general que o proteja.”
Muito
antes de atingir o coronelato o oficial já investe nesse
pertecimento, através da bajulação e da subserviência. Agarra-se
ao saco de um general.
“Este
aqui foi meu aluno no curso de paraquedistas. Tornou-se um legalista
como eu. Quando resisti ao golpe, ele me acompanhou. Quando fui
expulso, ele também foi. Mas a maioria dos meus subordinados traiu,
aderiu aos golpistas.”
São
dois os modos de assegurar a promoção, puxar o saco de um general e
melar o nome do rival na lista de promoção. Puxar o saco e trair.
Modos que ora se alternam, ora se complementam. Pode acontecer de ter
que trair o próprio general. A traição é o corolário da lealdade
oportunista. Na corporação militar-burocrática, um oficial nunca
se abre com os outros dois ao mesmo tempo. Sempre a um só; assim, ao
ser traído, saberá quem o entregou. Traição também é uma arte.
“O
Prestes levou esse cuidado à coluna e depois o incorporou às normas
de segurança do Partido, ainda mais devido à sua clandestinidade
quase permanente. Acabou tornando o partido mais secretivo do que já
era, nunca encontros de mais de dois, e sempre aos sussurros.”
Hábitos
criam valores. A prática da traição e da dissimulação
incorporam-se ao ethos militar. Os valores invertem-se. São
todos Esterhazys; nenhum Dreyfuss (*); no lugar da bravura, a
crueldade; a desonra, em vez da honra; o povo pobre como inimigo; a
maldade levada ao infinito. Degolas em Canudos; execuções de presos
rendidos no Araguaia, embora crianças ainda, desmebramento de
corpos, em 1974, para fazê-los “desaparecidos”. Ao crime
hediondo, segue-se o delito paradoxal, para uma organização
burocrática, no entanto lógico na nova escala de valores: a
supressão de provas.
“Este
aqui é o único general que, pelo meu conhecimento, se preocupou em
mandar pararem as torturas.”
Embora
de extrema direita, o general era espírita; quando soube das
torturas foi à Barão de Mesquita de surpresa e mandou parar tudo na
hora. Espíritas não admitem que se maltrate nenhum vivente, nem
bicho, porque creem na reencarnação; para eles, corpos são
moradas provisórias das almas de nossos antepassados que precisam
ser veneradas e respeitadas. Você pode estar torturando um bisavô
ou a própria mãe, se ela já morreu.
“Foi
ele sair e recomeçaram tudo. Também, ele não demitiu ninguém, não
denunciou, nem internamente, nem em público.”
Pela
nova doutrina militar em vigor, da guerra psicológica adversa, o
inimigo pode estar em qualquer um, às vezes ainda latente: no
artista de teatro, no jovem ingênuo, na menina rebelde, no padre
progressista. Nessa doutrina, só a tortura revela a propensão
subversiva do suspeito, como na inquisição as máquinas de suplício
faziam sair os demônios de dentro das bruxas e desmascaravam os
fingimentos dos hereges e cristãos novos.
“Este
aqui é o mais inteligente e o mais cruel. Da artilharia, é claro.
Por isso propôs a abertura lenta, gradual e segura, sabia que estava
tudo acabado. É dos antigos, podia ter se alistado na Força
Expedicionária, mas não foi; nunca travou uma batalha, nunca esteve
numa guerra. Não se sabe até hoje se não se alistou por simpatizar
com os nazistas ou se os americanos o vetaram, pela mesma razão.”
O
general cassado fecha o almanaque. Chega. Já deu para entender.
[Trecho
do livro do jornalista Bernardo Kucinski, intitulado “K.” Editora
Expressão Popular, 2012.]
(*)
Charles-Marie Ferdinand Welsh Esterhazy, militar frances que vendeu
segredos à Alemanha em 1894. A traição foi atribuída falsamente
ao oficial judeu Alfred Dreyfuss, depois considerado inocente, mas
jamais foi restituído ao exército frances.
O autor Bernardo Kucinski não menciona diretamente quem é o general que faz as declarações reveladoras do ethos militar brasileiro, ao mesmo tempo evidenciando a inutilidade desta função pública no Brasil.
Ora, a identidade do general não é difícil de deduzir. Se trata do “irmão de um cirurgião celebrado”. Apostamos que ele está se referindo ao general Euryale de Jesus Zerbini, um grande brasileiro.
Há, ainda assim, uma controvérsia entre o livro de Kucinski e a realidade: no livro, o militar referido é um “general de quatro estrelas”, portanto general-de-Exército, segundo a hierarquia militar brasileira. E o general Zerbini morreu em 1982 como general-de-brigada, ou seja, com duas estrelas, o posto mais baixo do generalato. Alguém se equivocou: o autor de K. ou os gorilas golpistas que esqueceram de graduar o general Zerbini antes de sua morte.
Euryale de Jesus Zerbini (1908-1982), foi um general-de-brigada do Exército brasileiro, irmão do cirurgião cardiologista Euryclides de Jesus Zerbini, o primeiro médico brasileiro a fazer transplantes de coração. Euryale foi casado com Therezinha Zerbini, uma das líderes do movimento pela anistia, na década de 1970. A informação é da Wikipédia.
No
golpe civil-militar de 1964, o general Zerbini, assumiu uma posição
legalista. Enveredou pelo Vale
do Paraíba rumo
ao Rio
de Janeiro.
Pretendia confrontar as tropas favoráveis ao golpe dos generais
Olympio
Mourão Filho e
Carlos
Luiz Guedes,
que tinham partido de Minas
Gerais também
em direção ao Rio de Janeiro, ambos com propósitos francamente
golpistas.
Porém, na medida em que Zerbini foi marchando, a adesão
ao golpe por parte dos generais foi se multiplicando. De modo que
Zerbini se encontrou isolado no meio do Vale do Paraíba e como
resultado teve de entregar-se, não tinha mais como resistir.
Foi
preso, expulso do Exército, e logo reformado. Morreu em 1982, em plena ditadura. A redemocratização - que ainda não está completa até hoje - se iniciou em 1985. E desde então vivemos sob um pesado manto de esquecimento e cinismo público.
2 comentários:
Caro Feil,
Sobre a imagem de abertura do blog, uma pequena correção: o autor é Pawel Kuczynski, artista plástico e cartunista polonês.
abraço
Pawla aqui:
http://capu.pl/node/271?page=2
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