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sábado, 16 de junho de 2012

“A vida do militar é puxar o saco e trair” - afirma general



O livro da vida militar

Este vende a própria mãe.

O homem é enfático e preciso, como se espera de um general de quatro estrelas. Recorre a imagens grosseiras por hábito, pois na caserna isso era de bom tom. Preparado para comandar, sua fala é curta e grossa, embora não dê mais ordens. Foi destituído do comando e expelido do Exército por ter se oposto ao golpe.

De cabelos já brancos, mas ainda rijo e firme, ele faz um inventário de ex-colegas e ex-comandados. Pontua friamente, como se estivesse classificando uma coleção de aracnídeos. Na mesa, aberto à sua frente, o Almanaque do Exército, o rol de todos os oficiais, de tenente para cima, das três armas do Exército: infantaria, cavalaria e artilharia.

Seu irmão mais novo, cirurgião celebrado, operou e talvez tenha salvado da morte muitos dos empresários e banqueiros metidos no maldito golpe. Nem por isso o general foi poupado. A injustiça da cassação afinou sua percepção crítica e destravou ainda mais a sua língua, pois se percebe que, embora militar, é pessoa fina.

Este outro, além de vender a mãe, entrega.”

O Almanaque se parece a uma lista telefônica. Siglas miúdas, depois de cada nome, designam etapas da carreira do oficial desde seu ingresso na Academia Militar; registram cada mudança de patente; cada colocação na Escola de Cadetes e nos cursos de especialização e aperfeiçoamento. Dividido em três seções, uma para cada arma do Exército, é o livro da vida do militar.

Este aqui foi o primeiro da classe.”

Um primeiro colocado na sua turma da Academia Militar será referido para sempre como o “primeiro da classe”. Mas que surpresa! Será nosso Exército tão civilizado que nele impera o critério da erudição e, por que não, da inteligência? Ou da aplicação no estudo e na aquisição de conhecimento? Um exército que prioriza a excelência intelectual?
Não é bem assim.

Estudiosos, só os da artilharia.”

Estes têm que aprender trigonometria, balística, calcular ângulos de tiro, compensar a direção do vento, o calibre e o peso da carga útil, a movimentação do inimigo. São equações complexas. Aprendem a raciocinar com lógica. Por isso, tornaram-se o grupo dirigente do Exército; os únicos com visão estratégica. Eles organizaram e dirigiram o golpe militar.

O resto é um bando de ignorantes, piores são os da cavalaria.”

Num exército que não guerreia há trinta e cinco anos, não há medalha por bravura em campo de batalha, não há missão perigosa, nem o teste de situações-limite, seja da unidade ou do indivíduo. Só o que há é o ponto amealhado em sala de aula, o rigor da continência, a lisura da farda, o brilho da bota; o domínio retórico de hipóteses de guerras que nunca serão travadas e suas logísticas imaginárias. Tudo no papel, na teoria. Gavetas e gavetas de mapas e planos de ataques estratégicos, avanços e recuos táticos.

A principal hipótese era de guerra com a Argentina, tudo bobagem, só para manter ocupados.”

Para cada etapa dessa vida militar pachorrenta há um minucioso rito de pontuação. Postos de comando, postos de chefia de departamento, tudo é contabilizado. Mas, como em toda a organização burocrática, as regras só valem para legitimar favoritismo imanente, nunca para instaurar a meritocracia. As amizades é que decidem. Os vínculos de lealdade. Não a lealdade leal, que não precisa razões para existir. É a lealdade calculista, necessária à sobrevivência na guerra interna pela promoção burocrática. Nesse exército de oportunistas, as únicas batalhas são as travadas por cada um contra o seu igual, na disputa pela promoção. As vagas minguando mais e mais à medida que se sobe a escala da patente.

O funil mais apertado está na passagem de coronel para general de brigada. Só um em cada cinquenta coronéis será general. E quem sobra será expelido.”

Nessa milícia de gabinetes, as baixas não se dão no teatro de guerra; se dão nas listas submetidas pelo Estado-Maior ao comando, para que decidam as promoções. Preteridos tombam sem dar um tiro. Caem fora. Um oficial não pode estacionar na mesma patente.

Para ser promovido a general, o coronel tem que ter um protetor, tem que pertencer a um esquema, a um general que o proteja.”

Muito antes de atingir o coronelato o oficial já investe nesse pertecimento, através da bajulação e da subserviência. Agarra-se ao saco de um general.

Este aqui foi meu aluno no curso de paraquedistas. Tornou-se um legalista como eu. Quando resisti ao golpe, ele me acompanhou. Quando fui expulso, ele também foi. Mas a maioria dos meus subordinados traiu, aderiu aos golpistas.”

São dois os modos de assegurar a promoção, puxar o saco de um general e melar o nome do rival na lista de promoção. Puxar o saco e trair. Modos que ora se alternam, ora se complementam. Pode acontecer de ter que trair o próprio general. A traição é o corolário da lealdade oportunista. Na corporação militar-burocrática, um oficial nunca se abre com os outros dois ao mesmo tempo. Sempre a um só; assim, ao ser traído, saberá quem o entregou. Traição também é uma arte.

O Prestes levou esse cuidado à coluna e depois o incorporou às normas de segurança do Partido, ainda mais devido à sua clandestinidade quase permanente. Acabou tornando o partido mais secretivo do que já era, nunca encontros de mais de dois, e sempre aos sussurros.”

Hábitos criam valores. A prática da traição e da dissimulação incorporam-se ao ethos militar. Os valores invertem-se. São todos Esterhazys; nenhum Dreyfuss (*); no lugar da bravura, a crueldade; a desonra, em vez da honra; o povo pobre como inimigo; a maldade levada ao infinito. Degolas em Canudos; execuções de presos rendidos no Araguaia, embora crianças ainda, desmebramento de corpos, em 1974, para fazê-los “desaparecidos”. Ao crime hediondo, segue-se o delito paradoxal, para uma organização burocrática, no entanto lógico na nova escala de valores: a supressão de provas.

Este aqui é o único general que, pelo meu conhecimento, se preocupou em mandar pararem as torturas.”

Embora de extrema direita, o general era espírita; quando soube das torturas foi à Barão de Mesquita de surpresa e mandou parar tudo na hora. Espíritas não admitem que se maltrate nenhum vivente, nem bicho, porque creem na reencarnação; para eles, corpos são moradas provisórias das almas de nossos antepassados que precisam ser veneradas e respeitadas. Você pode estar torturando um bisavô ou a própria mãe, se ela já morreu.

Foi ele sair e recomeçaram tudo. Também, ele não demitiu ninguém, não denunciou, nem internamente, nem em público.”

Pela nova doutrina militar em vigor, da guerra psicológica adversa, o inimigo pode estar em qualquer um, às vezes ainda latente: no artista de teatro, no jovem ingênuo, na menina rebelde, no padre progressista. Nessa doutrina, só a tortura revela a propensão subversiva do suspeito, como na inquisição as máquinas de suplício faziam sair os demônios de dentro das bruxas e desmascaravam os fingimentos dos hereges e cristãos novos.

Este aqui é o mais inteligente e o mais cruel. Da artilharia, é claro. Por isso propôs a abertura lenta, gradual e segura, sabia que estava tudo acabado. É dos antigos, podia ter se alistado na Força Expedicionária, mas não foi; nunca travou uma batalha, nunca esteve numa guerra. Não se sabe até hoje se não se alistou por simpatizar com os nazistas ou se os americanos o vetaram, pela mesma razão.”

O general cassado fecha o almanaque. Chega. Já deu para entender.

[Trecho do livro do jornalista Bernardo Kucinski, intitulado “K.” Editora Expressão Popular, 2012.]

(*) Charles-Marie Ferdinand Welsh Esterhazy, militar frances que vendeu segredos à Alemanha em 1894. A traição foi atribuída falsamente ao oficial judeu Alfred Dreyfuss, depois considerado inocente, mas jamais foi restituído ao exército frances.

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O autor Bernardo Kucinski não menciona diretamente quem é o general que faz as declarações reveladoras do ethos militar brasileiro, ao mesmo tempo evidenciando a inutilidade desta função pública no Brasil. 


Ora, a identidade do general não é difícil de deduzir. Se trata do “irmão de um cirurgião celebrado”. Apostamos que ele está se referindo ao general Euryale de Jesus Zerbini, um grande brasileiro. 


Há, ainda assim, uma controvérsia entre o livro de Kucinski e a realidade: no livro, o militar referido é um “general de quatro estrelas”, portanto general-de-Exército, segundo a hierarquia militar brasileira. E o general Zerbini morreu em 1982 como general-de-brigada, ou seja, com duas estrelas, o posto mais baixo do generalato. Alguém se equivocou: o autor de K. ou os gorilas golpistas que esqueceram de graduar o general Zerbini antes de sua morte.


Euryale de Jesus Zerbini (1908-1982), foi um general-de-brigada do Exército brasileiro, irmão do cirurgião cardiologista Euryclides de Jesus Zerbini, o primeiro médico brasileiro a fazer transplantes de coração. Euryale foi casado com Therezinha Zerbini, uma das líderes do movimento pela anistia, na década de 1970. A informação é da Wikipédia.


No golpe civil-militar de 1964, o general Zerbini, assumiu uma posição legalista. Enveredou pelo Vale do Paraíba rumo ao Rio de Janeiro. Pretendia confrontar as tropas favoráveis ao golpe dos generais Olympio Mourão Filho e Carlos Luiz Guedes, que tinham partido de Minas Gerais também em direção ao Rio de Janeiro, ambos com propósitos francamente golpistas. 

Porém, na medida em que Zerbini foi marchando, a adesão ao golpe por parte dos generais foi se multiplicando. De modo que Zerbini se encontrou isolado no meio do Vale do Paraíba e como resultado teve de entregar-se, não tinha mais como resistir.

Foi preso, expulso do Exército, e logo reformado. Morreu em 1982, em plena ditadura. A redemocratização - que ainda não está completa até hoje - se iniciou em 1985. E desde então vivemos sob um pesado manto de esquecimento e cinismo público. 

2 comentários:

Manolo disse...

Caro Feil,
Sobre a imagem de abertura do blog, uma pequena correção: o autor é Pawel Kuczynski, artista plástico e cartunista polonês.

abraço

Anônimo disse...

Pawla aqui:

http://capu.pl/node/271?page=2

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