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Surf no lixo contemporâneo: a que ponto chegamos! E que mundo deixaremos de herança para Keith Richards?

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O velho Hegel apontou o hoje


O real enfeitiçado

“O indivíduo está sujeito à completa desordem e aos riscos do todo. A massa da população está condenada ao trabalho embrutecedor, insalubre e inseguro das fábricas, manufaturas, minas, etc. Ramos inteiros da indústria, que sustentam largas faixas da população, entram subitamente em falência, seja porque a moda mudou, seja porque os valores de seus produtos caíram por conta de novas invenções em outros países, seja por qualquer outra razão. Massas inteiras são assim abandonadas à irremediável pobreza. O conflito entre a extrema riqueza e a maior pobreza, uma pobreza incapaz de melhorar sua situação, aumenta sempre. A riqueza torna-se um poder predominante. Sua acumulação se processa em parte ao acaso, em parte através do modo geral de distribuição. O lucro desenvolve-se em um sistema multiforme que se ramifica por setores nos quais o pequeno negócio não pode lucrar. A máxima abstratividade do trabalho penetra nos tipos de trabalho mais individuais, e segue ampliando sua esfera. Esta desigualdade entre riqueza e pobreza, esta indigência e necessidade, tem como resultado a desintegração completa da vontade, a rebelião interna e o ódio”.

Parece um texto marxista atual, um comentário - talvez - sobre a crise severa da Europa de nossos dias. Mas não é. Foi escrito por Hegel, por volta de 1804. Marx viria a nascer somente 14 anos depois, em 1818.

Hegel vai mais fundo nas suas premonições. Chegou a elas através da compreensão do conceito de trabalho e sua crescente centralidade na sociedade burguesa que se afirmava. Ele consegue descrever o modo de integração dominante em uma sociedade de produção de mercadorias em termos que prefiguram claramente a abordagem crítica de Marx, mas que seriam escritos quase 50 anos depois.

“O indivíduo – afirma Hegel – satisfaz as suas necessidades por meio do trabalho, mas não pelo produto particular do trabalho; este último, para chegar a satisfazer as necessidades do indivíduo, tem que se transformar em algo distinto do que é”. O objeto do trabalho que era particular, torna-se abstrato e universal, torna-se mercadoria passível de troca. No ato da troca da mercadoria há uma “volta à concretude”, como diz Hegel, e por meio dela são satisfeitas – socialmente – as necessidades concretas dos homens. Essa universalidade transforma igualmente o sujeito do trabalho – o trabalhador e sua atividade individual. O trabalhador unipessoal vê-se forçado a pôr de lado as suas faculdades e desejos particulares. “Quanto mais o homem domina seu trabalho – diz Hegel – mais impotente ele mesmo se torna. Quanto mais mecanizado se torna o trabalho, menor valor ele tem e mais arduamente deve o indivíduo trabalhar. O valor do trabalho decresce na mesma proporção em que cresce a produtividade do trabalho… As faculdades do indivíduo são restringidas de modo ilimitado, e a consciência do operário é degradada ao mais baixo nível de embotamento”.

Herbert Marcuse, um dos maiores estudiosos de Hegel do século 20 (junto com Kojève e Hyppolite), comenta que o filósofo “como que teria ficado aterrado com o que a sua própria análise da sociedade de produção de mercadorias acabara de revelar”. E teria deixado esses textos (Studien über Autorität und Familie e Zeitschrift für Sozialforschung) inacabados, ficando algum tempo sem escrever.

O pavor paralisante do filósofo derivou para uma solução autoritária, visto do prisma dos nossos dias. Ele propõe um Estado absolutista para coibir as deformações sociais através do império da lei. Hegel é tributário do idealismo alemão, para quem o homem, pelos efeitos da Revolução, veio a confiar no seu espírito passando a submeter a realidade aos critérios da razão. Ele chega a ousar dizer que “o pensamento deve governar a realidade”. Os alemães como não souberam fazer uma revolução burguesa, debruçaram-se arrebatados sobre um novo objeto filosófico: a Revolução Francesa. Assim, o que se convencionou chamar de idealismo alemão, por intermédio de seus filósofos Hegel, Kant, Fichte e Schelling, constituiu-se na própria teoria da Revolução Francesa. O clássico das revoluções burguesas. A fundação do mundo ocidental, tal como é conhecido. O advento de um sistema que – hoje – abisma-se no ocaso: o sistema produtor de mercadorias.

A prevalência da idéia de razão, comum a todo o pensamento Iluminista, implicava a liberdade de agir de acordo com a razão.

Hegel, nas suas cogitações, intuiu genericamente algo de extrema atualidade e importância para se entender o mundo da vida, algo que depois seria esmiuçado por Marx: o complexo tema da alienação. Para Hegel, a história do homem era, simultâneamente, a história da alienação do homem - como aponta Marcuse. As instituições e a cultura fundadas e criadas pelo homem acabam por desenvolver leis próprias, leis essas que irão subordinar a liberdade dos indivíduos aos desígnios do estranhamento e da alienação.

O tema da alienação é considerado um dos conceitos centrais de Marx.

“A depreciação do mundo dos homens – diz Marx – aumenta em razão direta da valorização do mundo das coisas. […] Quanto mais produz o operário com o seu trabalho, mais o mundo objetivo, estranho, que ele cria em torno de si, torna-se poderoso, mais ele empobrece, mais pobre torna-se seu mundo interior e menos ele possui de seu. […] O operário põe a sua vida no objeto, a partir de então, esta não mais lhe pertence, a vida pertence ao objeto. […] A alienação do operário em seu objeto apresenta-se, segundo as leis econômicas da seguinte forma: quanto mais o operário produz, menos ele tem para o consumo, quanto mais ele cria valores, mais ele se desvaloriza e perde a sua dignidade; quanto mais forma tem o seu produto, mais disforme é a sua pessoa; quanto mais alto grau de civilização apresenta o objeto, mais rude torna-se o operário; quanto mais poderoso é o trabalho, mais impotente é o seu criador; quanto mais o trabalho se enche de espírito, mais o operário se priva dele e torna-se escravo da natureza. […] Decorre deste resultado que o homem (o operário) não se sente mais livremente ativo senão em suas funções animais: comer, beber e procriar, assim como, ainda habitar, vestir, etc., e que em suas funções de homem ele não se sente mais que um animal. O bestial torna-se humano e o humano torna-se bestial. Comer, beber, procriar, etc. são, é verdade, também funções autenticamente humanas; mas isoladas abstratamente do resto do campo das atividades humanas e se tornando assim, o fim último e único, elas tornam-se bestiais”.

Assim, na modernidade do homem alienado, a consciência dos indivíduos está invertida, porque a própria realidade está invertida. A realidade do mundo das mercadorias é uma representação do real, não é o real. O real está enfeitiçado (fetichizado), reificado, transfigurado em representações subvertidas de sujeito e objeto. As mercadorias são sujeitos qualificados pelos homens, os homens são objetos quantificados pelas mercadorias. O homem sem qualidades, exaurido de humanidade, agora, não se humaniza, por que esbarra sem cessar na hostilidade dos objetos por ele próprio criados, mas que ele não os reconhece como seus. Há um objeto no meio do caminho da nossa humanidade. O nivelamento ético-moral dominante é uma metafórica sarjeta. O resultado dessa desumanização generalizada são os horrores do nosso cotidiano: a violência como reguladora da vida; a morte como normalização do conflito; a crescente fascistização das relações no trabalho, no trânsito, na vida urbana; o capitalismo de quadrilhas; a ciência que conspira contra a Natureza; a divinização do dinheiro; a dinheirização do corpo e dos afetos, etc., etc.

Karel Kosik diz que “Marx nunca abandonou a problemática filosófica, e que especialmente os conceitos de alienação, reificação, totalidade, relação de sujeito e objeto, que alguns canhestros marxólogos [KK refere-se aos stalinistas] proclamariam prazerosamente como o pecado da juventude de Marx, continuam sendo, ao contrário, o constante equipamento conceitual da teoria de Marx. Sem eles "O Capital" é incompreensível”. Sem eles o capitalismo seria incomprensível.

Foi, portanto, com fundadas razões que o nazismo na Alemanha investiu contra Hegel e seu pensamento idealista. Alfred Rosemberg e Carl Schmitt, dois dos principais ideólogos do nacional-socialismo, se pronunciaram furiosamente contra Hegel, dizendo que em conseqüência da Revolução Francesa, “surgiu uma doutrina de poder estranha ao nosso sangue; ela chegou ao seu apogeu com Hegel e foi, então, em nova falsificação, retomada por Marx”. Schmitt chegou a dizer que no dia em que Hitler subiu ao poder, “Hegel, por assim dizer, morreu”.

Isso prova que a força de uma filosofia deve ser avaliada, para muito além do seu valor em si, mas pelos frutos que pode gerar e, sobretudo, pelas mãos que a apedrejam. Cada um a seu modo, tanto Hitler quanto Marx, valorizou como pôde o velho professor alemão.

No presente tempo global de crise terminal, regressismo, boçalidade, “fezes, maus poemas, alucinações e espera” (Drummond), uma visita aos clássicos ilumina o espírito e aquece o coração.

Artigo de Cristóvão Feil, sociólogo.


Foto de Yannis Behrakis/Reuters: protestos e repressão polícial no centro de Atenas, Grécia, durante a oitava greve geral somente em 2010, ontem (15).

3 comentários:

Azarias disse...

Sobre a foto-legenda, lá encima, o texto diz que a Classe Dominante quer dividir o débito; eles querem que nós, a Classe Trabalhadora é que paguemos sózinha. Outro lance, em todas as nações deveria ter Constituições que contivessem em seus ítens/paragrafos, determinações que autoridades executivas, legislativas ou judiciárias deixassem o Cargo/Poder, assim que a população insatisfeita fosse a rua protestar.

Demetrio disse...

Pra vc ver como o conceito de alienação, tal como Marx o desenvolve, tem extrema serventia para entendermos a sociedade atual.

Aliás, a crítica de esquerda, para ser verdadeiramente coerente, efetiva e radical, tem que se dirigir fundamentalmente contra esse conjunto de relações sociais que nós mesmos criamos, mas que parcialmente se autonomizam de nós, se invertem e passam a nos dominar, nos fragmentando e nos enfraquecendo. Infelizmente, a maioria dos "intelectuais orgânicos" de esquerda brasileiros, hoje, se esqueceu disso e passa a atribuir o caráter "de esquerda" aos governos que permitiram aos trabalhadores comprar "mais eletrodomésticos", e com isso se dão por felizes e realizados... isto tem que mudar no futuro próximo.

Precisamos também apontar as saídas, as alternativas possíveis para suplantar de vez a alienação. Isto se faz, não meramente com aumento de poder de consumo dos trabalhadores - apesar de que isso possa até ser feito -, mas com a organização dessa classe, com a consciência crítica dos antagonismos vigentes neste mundo burguês, e fundamentalmente com a generalização do poder de decisão, sobre todos os âmbitos da atividade produtiva, para todos aqueles que realmente produzem a riqueza que a humanidade consome. (temos que relembrar os nossos partidos de esquerda quanto a esses objetivos...). Aqui, estou plenamente de acordo com o que diz Mészáros em Para além do capital.

Oscar T disse...

Muito bom!

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