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sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Horroriza-me o sentimento de falsa e melosa fraternidade geral


Por que não festejo e me faz mal o Natal

Não festejo e me faz mal o natal por diversas razões, algumas fracas, outras mais fortes. Primeiro, sou ateu praticante e, sobretudo, adulto. Portanto, não participo da solução fácil e infantil de responsabilizar entidade superior, o tal de "pai eterno", pelos desastres espirituais e materiais de cuja produção e, sobretudo, necessária reparação, nós mesmos, humanos, somos responsáveis.

Sobretudo como historiador, não vejo como celebrar o natalício de personagem sobre o qual quase não temos informação positiva e não sabemos nada sobre a data, local e condições de nascimento. Personagem que, confesso, não me é simpático, mesmo na narrativa mítico-religiosa, pois amarelou na hora de liderar seu povo, mandando-o pagar o exigido pelo invasor romano: "Dai a deus o que é de deus, dai a César, o que é de César"!

O natal me faz mal por constituir promoção mercadológica escandalosa que invade crescentemente o mundo exigindo que, sob a pena da imediata sanção moral e afetiva, a população, seja qual for o credo, caso o tenha, presenteie familiares, amigos, superiores e subalternos, para o gáudio do comércio e tristeza de suas finanças, numa redução miserável do valor do sentimento ao custo do presente.

Não festejo e me desgosta o natal por ser momento de ritual mecânico de hipócrita fraternidade que, em vez de fortalecer a solidariedade agonizante em cada um de nós, reforça a pretensão da redenção e do poder do indivíduo, maldição mitológica do liberalismo, simbolizada na excelência do aniversariante, exclusivo e único demiurgo dos males sociais e espirituais da humanidade.

Desgosta-me o caráter anti-social e exclusivista de celebração que reúne egoísta apenas os membros da família restrita, mesmo os que não se frequentaram e se suportaram durante o ano vencido, e não o farão, no ano vindouro. Festa que acolhe somente os estrangeiros incorporados por vínculos matrimoniais ao grupo familiar excelente, expulsos da cerimônia apenas ousam romper aqueles liames.

Horroriza-me o sentimento de falsa e melosa fraternidade geral, com que a grande mídia nos intoxica com impudícia crescente, ano após ano, quando a celebração aproxima-se, no contexto da contraditória santificação social do egoísmo e do individualismo, ao igual dos armistícios natalinos das grandes guerras que reforçavam, e ainda reforçam - vide o peru de Bush, no Iraque - o consenso sobre a bondade dos valores que justificavam o massacre de cada dia, interrompendo-o por uma noite apenas.

Não festejo o natal porque, desde criança, como creio para muitíssimos de nós, a festa, não sei muito bem por que, constituía um momento de tensão e angústia, talvez por prometer sentimentos de paz e fraternidade há muito perdidos, substituindo-os pela comilança indigesta e a abertura sôfrega de presentes, ciumentamente cotejados com os cantos dos olhos aos dos outros presenteados.

Por tudo isso, celebro, sim, o Primeiro do Ano, festa plebéia, aberta a todos, sem discursos melosos, celebrada na praça e na rua, no virar da noite, ao pipocar dos fogos lançados contra os céus. Celebro o Primeiro do Ano, tradição pagã, sem religião e cor, quando os extrovertidos abraçam os mais próximos e os introvertidos levantam tímidos a taça aos estranhos, despedindo-se com esperança de um ano mais ou menos pesado, mais ou menos frutífero, mais ou menos sofrido, na certeza renovada de que, enquanto houver vida e luta, haverá esperança.

Artigo do professor e historiador Mário Maestri, publicado originalmente no portal La Insignia, em dezembro de 2006.

10 comentários:

Sueli disse...

Mário Maestri consegue colocar em palavras o que a nossa falta de coragem não consegue. Gosto do Natal, por que, geralmente, os meus afetos estão por perto. Um abraço

Anônimo disse...

nao sou fã de natal, mas quanta amargura o texto...

como na escala do universo nosso próprio planeta é invisivel, como pode um mero mortal julgar nao existir uma força superior?

quanto a baboseira de papai noel, bem são invenções humanas...

Anônimo disse...

Parece um texto de um punk de 15 anos. Parabéns.

Anônimo disse...

Texto quase definitiva. Realmente, festa gananciosa, individualista e no estilo burguês do eu tenho e posso. E cada vez mais uma festa consumista por excelência.Viva a festa pagã do 1º dia do ano.

armando do prado

Antonio disse...

Na verdade, essas datas são meras referências para justificar mais consumo, porém, considero o texto do Mário Maestri um verdadeiro show depressivo e amargurado.
O que há de mal em reunir a família, dar uma nova chance àqueles que não se aturam muito, proporcionar reflexões e distribuir presentes com alegria.
Quanto a não acreditar em um ser superior, ... bem, tenho pena daqueles que só acreditam no que vêem.

Nelson disse...

Eu também prefiro muito mais os momentos da partida de um ano e da chegada de um outro. São bem mais descontraídos e prazeirosos. Apesar disso, creio que não devamos descartar por completo o Natal. O que precisamos fazer é abstrair todo esse mercantilismo abjeto que se criou em torno da data e usufruir dos momentos de convivência que o feriado nos proporciona. Isso é, no final, o que importa.

Anônimo disse...

O ano novo não está imune a palavras melosas, muito menos a familiares e parentes sem noção. :-)

Claudia

Anônimo disse...

salve, cristovão,

concordo com a suely, nossa falta de coragem incentiva a baboseira mercantilista do natal. o texto do mario maestri expõe a hipocrisia da festa que manipula nossas famílias.

prefiro também a laicidade dapassagem do ano e do carnaval de rua como símbolos de fraternidade humana.

axé!


carlos-fort-ce

Anônimo disse...

de papai noel gosto das renas. as missas do galo são as mais chatas possíveis, o sermão do papa, bem sermão de papa é ainda mais chato que missa do galo. Os galos deveriam protestar com esse nome.Já os vendedores de porcarias diversas, incluidos eletrodomésticos, automóveis e que tais, assim como os marketeiros gostam muito de natal, os industriais também, donos das companhias de transporte de gado humano, por terra, mar e ar, adoram!...o que já é um indicador do bom gosto...eu fico do lado dos perus e dos galos que não gostam dessas baboseiras.

Anônimo disse...

Tive a infelicidade de ser aluno de Mário Maestri na UPF, em Passo Fundo. Já conhecia o texto acima e, quanto ao seu autor, só me surpreenderei quando emitir opinião positiva sobre algo ou alguém. Não me assusta o fato de ele esculachar o Natal, pois este "grande comunista" celebra o ano inteiro, consumindo bons vinhos e andando de carro importado. Afora isso, sustenta-se entre Porto Alegre e Passo Fundo, produzindo verdadeiras "obras primas" divididas entre opiniões e artigos em jornais, nos quais mostra entender de unha encravada à engenharia espacial.Para isto, serve-se de uma plêiade de estafetas (queimadores de bandeiras, profissionais do movimento estudantil), alguns demorando doze anos para se formarem, enquanto "adoram o mestre". Na graduação, obriga seus alunos a comprarem os seus livros de História do RS, pois comprar de outros autores seria incentivar o consumismo desenfreado que amaldiçoa o homem (!). Quem o conhece, sabe do que falo e é bem por isso, que não me surpreendi ou me choquei com o texto. Não se pode criticar alguém por fazer exatamente aquilo que esperamos que ele faça. Parabéns, professor, pela sua habitual coerência!

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