Uma figura
A mãe de Jorge Luis Borges se chamava Leonor Acevedo Suárez, nascida no Uruguai. Culta, ela fazia traduções do inglês para o espanhol. Muito religiosa, quando foi presa, nos dias gelados do inverno de 1974, foi flagrada rezando pela alma de Perón, que havia morrido dias antes, disse que não tinha ódio dele e orava para encomendar-lhe aos céus. Suspeito que não tenha sido atendida. Deus - consta em algum lugar - não gosta de milico metido a popularesco.
O próprio filho relata sobre Leonor: "Sim, lembro que uma vez recebeu uma ligação, e que uma voz devidamente grosseira e terrorista lhe disse: 'Vou matar você e seu filho'. 'Por que, senhor?', respondeu minha mãe, com uma cortesia um pouco inesperada. 'Porque sou peronista'. 'Bom, disse minha mãe, 'meu filho sai de casa todos os dias às dez da manhã. É só esperar e matá-lo. Quanto a mim, eu fiz (não lembro a idade, oitenta e tantos anos); te aconselho a não perder tempo falando ao telefone, porque, se não se apressar, morro antes'. Então, o outro desligou. No dia seguinte, lhe perguntei: 'Ligaram ontem à noite?' 'Sim', me disse, 'ligou um idiota às duas da manhã', e me contou a conversa. Depois disso não houve mais ligações; o terrorista telefônico deve ter ficado tão surpreso, não? Que não se atreveu a reincidir".
Já com quase cem anos de vida (morreu com 99 anos), Leonor Acevedo Suárez leu "A ilustre casa de Ramires". Borges (foto) diz que ela comentou com o pai dele:
"É o melhor romance que li na minha vida". "De quem é" - perguntou meu pai, e ela disse: "De um escritor português, que se chama Eça de Queirós".
"E parece que acertou" - concluiu Borges.
Leia "A ilustre casa de Ramires", na íntegra, aqui.
6 comentários:
"Deus - consta em algum lugar - não gosta de milico metido a popularesco. "
Sendo assim o Chaves vai se danar no fogo eterno?!
Flics
Jorge Guillermo Borges (1874-1938) era o pai de Jorge Luis (o George da família)
Se a mãe leu "A Ilustre..." já com quase 100 anos e morreu em 1974 - o que é verdadeiro - então o referido comentário com o acima citado deve ter se dado numa reunião kardecista.
Como mãe e filho eram "unha e carne", então Alain Kardec teve ter influenciado a obra de Borges. Certo?
Flics
Flics, de fato há uma diferença grande de datas aí. O pai do Borges morreu na década de 1930. Dona Leonor morreu na década de 70. Se o diálogo sobre o Eça ocorreu quando ela era quase centenária, é de reconhecer que algo não bate.
Debitemos à memória de um octogenário (Borges) falando de reminiscências da casa paterna.
Abç.
CF
Prezado Cristóvão,
Eu ia postar aqui uma observação semelhante à do Flics, em relação à data da morte do pai do Borges, mas ao me deparar com o teu comentário lembrei da parte final daquela "dedicatória/homenagem" dele ao Leopoldo Lugones, na qual ele se imagina entregando um livro ao Lugones muitos anos antes (cena que nunca ocorreu):
"Mi vanidad y mi nostalgia han armado una escena imposible. Así será (me digo) pero mañana yo también habré muerto y se confundirán nuestros tiempos y la cronología se perderá en un orbe de símbolos y de algún modo será justo afirmar que yo le he traído este libro y que usted lo ha aceptado."
Carlos
Muito da genialidade de Borges está nesse jogo de memória e desmemória, ilusão e farsa, verdadeiro e falso. É a matéria prima do ficcionista e poeta.
Agora, pegar ao pé da letra o que diz Borges e cobrar coerência em datas é querer transformá-lo em dono de cartório, com precisão, identificação e chatice.
Só um tolo cobraria isso de Borges e um tolo pretencioso.
Gustavo
Comentário curto, lúcido e sensível. Matou a pau. Ai, os espertos que tão sempre com a régua na mão... engenheiros do impossível... que lástima. Falta-lhes alma!
Marcos
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