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segunda-feira, 8 de abril de 2013

Thatcher: morreu hoje a mulher que quis matar a política


[A propósito da morte, ocorrida hoje, da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, republicamos o comentário que fizemos ao filme 'A Dama de Ferro', publicado originalmente neste blog DG em 23 de abril de 2012.]

 'A Dama de Ferro' é uma alegoria sobre o declínio do neoliberalismo

Ontem à noite, quando saí do cinema onde assistira ao filme da diretora britânica Phyllida Lloyd, me ocorreram três coisas. Senti uma vontade danada de beber uísque. Pura sugestão, é que madame Thatcher bebe o tempo inteiro do filme. Lembrei de Getúlio Vargas e da jornalista Gilda Marinho, uma figura meio folclórica no cenário high society porto-alegrense dos anos 70 e 80.

Me explico: Gilda Marinho foi atacada uma vez por um inimigo oculto e dado a brincadeiras pesadas e maliciosas. Tal pessoa mandou publicar nos classificados em jornal edição dominical um anúncio onde se vendiam dezenas ou centenas de garrafas de uísque vazias. "Tratar com Gilda Marinho, no telefone tal" - dizia o anúncio.

Confesso que desconhecia essa propensão à sede da Baronesa Thatcher. Quantas garrafas vazias ela estaria em condições de vender, hoje? Sendo assim, vejo que a guerra das Malvinas foi um verdadeiro duelo de pinguços. Ninguém desconhecia na Argentina e arredores que o general Leopoldo Galtieri, presidente-ditador na época da guerra pelas ilhas do Atlântico Sul, era outro que abrigava uma pedra de sal na garganta e buscava a cura através da ingestão de hectolitros de álcool.

E falando sobre Getúlio Vargas já podemos comentar o filme sobre a dama de ferro. A imortal frase de Vargas, na hora da morte, "saio da vida para entrar na história", não serve para a senhora Thatcher. Ela ainda vive, mas a história já a abandonou, antes mesmo de convidá-la a adentrar o seu templo de glórias e ilusões.

A qualidade do filme de Phyllida Lloyd está justamente no fato de não entrar muito no mérito político da ex-primeira ministra da Grã-Bretanha. Ao mostrá-la no fim da vida, já enferma pelo Alzheimer, açoitada por fantasmas os mais diversos, mas em especial, Denis, o marido pimentinha, Phyllida faz um julgamento branco do legado político da Baronesa.

David Cameron, o atual primeiro-ministro britânico, igualmente conservador como ela, não gostou do filme, e perguntou "por que logo agora aparece um filme sobre Thatcher?".

Ora, a resposta parece óbvia. Tudo aquilo que foi sólido e sagrado, tudo o que foi construído/destruído por Thatcher agora se desmancha no ar e é profanado. Margaret não saiu da vida e nem entrou para a história.

Margaret é um zumbi condenado a escutar vozes e a ter que ligar todos os eletrodomésticos da sua vetusta residência para ter um segundo de sossego e paz de espírito. Como já não pode mais fazer uma faxina nacional no País, o faz no seu quarto atulhado de lembranças e espectros zombeteiros.

A abertura do filme é brilhante. Margaret apanha meio litro de leite numa mercearia de esquina e não é reconhecida por ninguém. Ao contrário, é ignorada com ênfase de má educação, um sujeito se atravessa no balcão e não respeita a fila do caixa, um negro jovem e muito alto roça o seu traseiro e não presta a atenção à sua idade e sobretudo à sua antiga condição de primeira mandatária do País.

Ela sente que voltou a ser a moça do cotidiano (esse "nocivo espaço da atualidade", como dizia Lukács), quando auxiliava o seu pai na quitanda da família, interior da velha Inglaterra. Chega em casa e tem uma pilha de livros para autografar, até que volta a assinar Margaret Roberts, seu nome de solteira. O inconsciente é malcriado, mesmo não consultado emite seus pareceres sobre nós mesmos, e sobretudo contra nós mesmos.

O carrossel da história volta ao seu ponto de partida. Tudo o que fez de sagrado, está sendo profanado. Ela já não se reconhece no mundo por ela forjado.

'A Dama de Ferro' é um filme sobre o ocaso do neoliberalismo, mesmo sem citá-lo uma única vez e ainda que modelado na linguagem da subjetividade de uma senhora muito idosa governada por sua memória, nem sempre amigável.

Margaret Thatcher foi a face do neoliberalismo, agora está no declínio da existência, cumpre um roteiro meramente biológico, porque a história já a rechaçou e a economia não mais a reconhece.

Margaret sente que já não é mais deste mundo e o fantasma de Denis Thatcher (o marido, que morreu em 2003) insiste em apontar-lhe o excesso de ambição pessoal e o excesso de uísque. Neste ponto, a diretora e a roteirista (Abi Morgan) usam um recurso narrativo de sutil mas aguda crueldade: os fantasmas são uma forma de autocrítica para quem - arrogante - é incapaz de fazer autocrítica.

O fenômeno Thatcher resultou da profunda crise de acumulação do capital experimentada pela Grã-Bretanha nos anos 1970. O sindicalismo foi muito organizado e logrou obter êxito na disputa por melhores salários, condições de trabalho e demais conquistas sociais do chamado welfare state.

Enquanto houve excedente para ser dividido com o capital, os trabalhadores ingleses souberam negociar de forma a se apropriar de parte do bolo produtivo. Quando sobreveio a crise escasseou a redistribuição, surgiram os conflitos, as greves (que não ocorriam desde 1926), a estagflação (inflação de 26%) e rápido aumento das taxas de desemprego (cerca de 1 milhão de pessoas, em 1975).

Passou a haver crise de legitimidade, aumento das dificuldades fiscais, crise na balança de pagamento e monumentais deficits orçamentários. Trabalhistas e conservadores (partido de Thatcher) se revezavam no poder entre 1974 e 1979, com aprofundamento crescente da crise e recrudescimento das greves (transportes, limpeza urbana, setor saúde e inclusive coveiros fizeram paralisações prolongadas).

É neste contexto de profunda crise do capital pondo fim a uma prolongada política de aliança de classes entre os trabalhadores e a grande burguesia decadente que emerge ascensional a estrela de Maggie Thatcher.

O filme mostra a dificuldade sentida por ela para se impor junto aoestablishment do partido conservador, não só por ser mulher, mas sobretudo por ser filha de um pastor metodista e pequeno comerciante do Norte do País. Uma outsider adventícia no seio do baronato que foi e é íntimo da Coroa inglesa.

Pois, para não decepcionar la crema y nata da velha nobreza inglesa, a filha do quitandeiro (como a chamavam à socapa nos corredores do partido) fez de tudo para se impor como a mais realista do Reino Unido.

Assumiu o poder em maio de 1979, já mostrando a que veio. Fez provocações diretas aos então fortíssimos sindicatos de trabalhadores e esgarçou o frágil tecido das relações capital/trabalho ao máximo. Conseguiu com isso, estimular muitas greves prolongadas e que paralisaram o país, por muitos meses. A greve dos mineiros durou quase um ano de confrontos entre o Estado e os sindicatos. Tudo o que ela desejava, politicamente.

O desmantelamento do Estado de bem-estar social atacou as áreas da saúde, assistência social, educação pública, Universidades, a burocracia estatal e o poder judiciário. O salário mínimo foi extinto e os impostos passaram a ser regressivos (poll tax, onde os ricos pagam menos e os trabalhadores pagam mais impostos), como forma de estimular os investimentos privados, já que o Estado estava se exonerando da economia.

Thatcher comprava briga em várias frentes ao mesmo tempo e procurava se legitimar através de um programa habitacional de venda direta das propriedades do Estado aos seus antigos locatários.

O discurso para conseguir o consentimento legitimador calcava nas consignas do ultraliberalismo de Friedrich Hayek: direito de propriedade individual (o plano habitacional garantia isso), cultura do empreendedorismo e do individualismo, regras de controle, responsabilidade financeira e produtividade nas instituições públicas, estímulo aos valores conservadores da classe média (Thatcher é o próprio triunfo da classe média), incentivo ao consumo intensivo à custa do endividamento em massa dos assalariados (como forma de criar um compromisso inescapável com o sistema).

A partir deste ponto, o centro da vida é o mercado. A mercadificação de tudo significa direitos de propriedade sobre processos, coisas e relações sociais (Harvey), supondo que tudo sob o céu é passível de ser atribuído um preço - em dinheiro - e portanto negociável nos termos de um contrato legal.

É o surgimento do chamado homem unidimensional, de que falava Marcuse ainda em 1964. O mercado (e as mercadorias) é um guia próprio para todas as ações humanas, ou seja, o mercado é uma ética.

A meu ver o mais grave dos legados da era Thatcher (1979-1990) é a tentativa de abolição da esfera política.

A queda de braço com o movimento sindical visava a eliminação física dos trabalhadores, como atores sociais reconhecidos. Ela decidiu importar carvão mineral para não negociar a agenda dos mineiros ingleses.

Preferiu comprometer mais e mais as finanças já combalidas do Estado a recuar um milímetro no seu intento de esmagar a capacidade política e orgânica dos sindicatos.

A anulação e a subsunção da esfera política às desigualdades do mercado é a suprema maldade do ultraliberalismo thatcherista. É o seu legado mais forte e permanente. Se a política diz respeito à coexistência e associação de homens diferentes, como nos ensina Hannah Arendt, já se vê que a sua derrocada representa um retrocesso civilizatório.

Aniquilar o fazer político é o mesmo que erradicar a pluralidade humana, estreitar a capacidade que adquirimos culturalmente de buscar objetivos que contemplem o diferente e o desigual, numa síntese dinâmica, provisória e em vias de permanente aperfeiçoamento. Matar a política é o mesmo que condenar o homem a renunciar a sua liberdade, é mantê-lo escravo das suas próprias contingências, batendo cabeça num eterno cotidiano opressivo e redutor.

O neoliberalismo é uma fórmula perversa de apagar a política em favor da ditadura dos mercados.

Os governos que sucederam a primeira-ministra Thatcher conseguiram abolir algumas medidas antissociais da ex-quitandeira, como: o salário mínimo (Tony Blair, trabalhista) e o imposto regressivo (John Major, conservador), mas a desqualificação da esfera política está sendo de difícil reversão, até porque isso se alastrou pelo mundo todo, com a crescente importância da economia sobre a política.

Nem a duplicação da taxa de pobreza na Grã-Bretanha, durante os 11 anos de Maggie no poder, pode ter repercussões tão deletérias como o ataque à política.

Talvez por esse motivo o filme de Phyllida Lloyd tenha igualmente um olhar tão distante da política propriamente dita, embora não seja um filme apolítico. Não o é. Mas, não falar não significa não ser.

'A Dama de Ferro' é um filme fortemente político, exageradamente politizado. Uma alegoria se notabiliza precisamente por não falar diretamente sobre a sua identidade. Uma alegoria é sempre um disfarce, uma representação do objeto ao qual se refere.

A diretora Phyllida e a roteirista Abi quiseram falar do neoliberalismo, justamente no momento do seu lento e inexorável crepúsculo, e o fizeram falando e narrando sobre Thatcher - hoje Baronesa Thatcher de Kesteven (viram, ela também virou la crema y nata da sociedade british!) - no ocaso de sua vida biológica. Simples e direto como pôr um ovo em pé.

Não é à toa que a direita britânica, a começar pelo primeiro-ministro Cameron, não gostou do filme.

Claro, foram cínicos, alegaram que a ex-primeira-ministra foi retratada na sua demência senil, que isso é cruel, etc. Mas jamais admitiram que falar de Thatcher é falar da senilidade do próprio sistemão que ela criou.

Por esse singelo motivo eu reputo o filme 'A Dama de Ferro' de genial. E, depois, mulheres fazendo cinema, sempre resulta em algo inteligente e instigante.

Ah!, Meryl Streep está soberba como a Baronesa demente. Na saída do cinema ouvi alguém perguntar: "E a Meryl Streep, onde aparece no filme?" É o melhor elogio que uma atriz pode receber, melhor que o Oscar 2012.



Ilustração de André Feil (1989)

4 comentários:

Anônimo disse...

Chavez, o cômico e não o político, dizia o seguinte quando estava em apuros : "óhhh quem poderá nos soocrrer".
E essa é a Europa hoje em dia. Não tem para quem pedir ajuda.
Fruto dessa tentativa de assassinato, não existem hoje lideranças na Europa, que ancorados em seu prestígio popular, sejam capazes de peitar o sistema financeiro.
Lula detectou o fenômeno: a população terceirizou seus partidos e sua obrigação de fazer política e os financiadores de campanha não desejam líderes mais fortes do que eles mesmos.
Lula testemunhou d decisão de Blair e Bush de acabar com os paraísos fiscais, medida que Tatcher, que enfrentou os cartéis de energia elétrica, concordaria. Nada aconteceu.
Nada do que os líderes dessa geração diz ou pensa vale de verdade.
Em crises óbvias do sistema financeiro, toca ao Estado pagar a conta e chamar o cidadão a contribuir.
Coisa impensável antes do neoliberalismo.
Está morrendo esse tal neoliberalismo?
Parece que a notícia da sua morte foi muito exagerada.

Nelson disse...

No post "O jornal que incomoda fardas e batinas", publicado no sítio www.cartamaior.com.br no dia 16/03/13, o jornalista Saul Leblon conta um pouco da história do jornal argentino Página 12.
Segundo Leblon, quando da morte de Pinochet, em 2006, o Página 12 saiu-se com a seguinte manchete:
"Que terá feito o inferno para merecer isso?"
Creio que seria o caso de repetir essa imaginativa manchete agora, quando da morte da "Dama de Ferro".

Nelson disse...

Já a foto acima mostra FHC em seu ambiente preferido.
Pela data do encontro, ele devia estar a garantir a Thatcher que seu governo e seu Plano Real, que a propaganda nos vendeu como a salvação do país, deixaria o nosso Brasil genuflexo diante do poder das grandes corporações, nacionais e estrangeiras.
De tal posição, creio, só conseguiremos nos safar daqui a algumas décadas. Isto, se tivermos muito espírito cívico e de entrega em prol do bem do povo e do país.
Mas, como tais atributos estão escassos atualmente, temo que nunca mais conseguiremos tomar outra posição que não a de ajoelhados perante o grande capital.

Anônimo disse...

Se o Chavez quando morreu virou passarinho e veio conversar com o Maduro, provavelmente a Thatcher vai assombrar a vieja Cristina em forma de urubu.

Joel

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