A recente exumação dos restos mortais
do ex-presidente João Goulart, deposto por um golpe civil-militar no
dia primeiro de abril de 1964, remete-nos a diversas considerações
derivadas.
Estão envolvidos no caso, elementos de
disputa de classe pela memória histórica, pelo reconhecimento da
dignidade de um presidente que, morto no exílio, veio a ser
enterrado no Brasil, quase como um clandestino, e sobretudo, o papel
da chamada Comissão Nacional da Verdade, bem como o seu desempenho
no cumprimento de seu propósito original.
Assim como o frio habita o gelo, a luta
de classes habita a sociedade capitalista. A disputa de classes é
uma condição intrínseca, essencial, do modo de produção
capitalista. Essa disputa ocorre em todos os campos da vida social. A
memória do passado é um campo de disputa. A representação que
fazemos do passado é um espaço de intensa e renhida luta. Os
símbolos e o imaginário social do presente estão impregnados
daquilo que resulta deste embate por narrativas que expliquem os
fatos à luz da razão e das conveniências sociais, culturais,
políticas e econômicas. Com isso a desmemória e o esquecimento são
pontos a favor do status quo, para não dizer do conservadorismo,
reacionário e decadente, do qual o Brasil é tão exuberante, desde
sempre.
Lutar contra o esquecimento foi o
objetivo primordial da chamada Comissão da Verdade, do Brasil, a
exemplo do que foi realizado no Uruguai, Argentina e Chile, com
sucesso. Mas a nossa Comissão preferiu outro caminho. Até o momento
não se sabe qual. O seu desempenho é confuso e diversionista. Ao
invés de promover um debate nacional que encaminhe a anulação da
Lei de Anistia, preferiu o espetáculo mórbido de exumar o
presidente Jango, um fato de discutíveis resultados, a não ser o de
recebê-lo com honras de estadista em Brasília, o que é elogiável.
Enquanto nos países do Cone Sul os
militares foram julgados por seus crimes de lesa humanidade (o
ditador Videla morreu recentemente na cadeia), no Brasil, os
militares e policiais civis, agentes do Estado que cometeram graves
crimes, continuam absolutamente impunes e muitos – como o coronel
Brilhante Ustra – escrevem livros e fazem declarações atrevidas,
justificando seus atos genocidas (como se eles tivessem gerado e
obedecido a um Direito particular e provisório, portanto,
não-Republicano, durante o tempo em que estiveram no poder).
A responsabilização desses agentes
públicos deve ser feita com base no Código Penal, já que seus
crimes não podem ser considerados políticos. O crime político é
aquele praticado para atingir o Estado, e não pelo Estado, ou por
funcionários públicos (militares e policiais) em nome do Estado.
A Universidade de Minnesota, dos EUA,
realizou em 2008, um estudo onde analisou cem países que passaram
pela transição entre governos autoritários e democráticos.
Concluiu-se que nos países onde houve punição para os atos
cometidos contra os direitos humanos o grau de violência policial é
menor, ao contrário dos países onde isso não ocorreu, certamente
pela sensação de impunidade. Não vamos muito longe, pessoas presas
por ocasião das recentes manifestações de rua em Porto Alegre,
foram interrogadas com questionamentos muito semelhantes aos métodos
da repressão policial-militar da ditadura 1964/1985.
A todas essas já se vê que a exumação
de Jango é um caso absolutamente isolado. Falta exumar a ditadura e
resgatar o nosso direito republicano à memória. Enquanto isso não
acontecer, nossa democracia estará incompleta.
Artigo de Cristóvão
Feil, publicado originalmente no impresso “Jornalismo B”, em
dezembro de 2013.
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