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Surf no lixo contemporâneo: a que ponto chegamos! E que mundo deixaremos de herança para Keith Richards?

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

José Dirceu e o anjo de Drummond






Ideais audaciosos, altos sacrifícios, impulsos heróicos, tudo se dissipará em meio à rotina trivial e monótona de fazer compras e votar”.
                          Perry Anderson


Depois de ser cassado, José Dirceu desabafou de forma reveladora: “Foi como se eu perdesse minha própria vida”. 

Para além da sua falta de amizade com a boa sintaxe, José Dirceu briga não só com o pensamento de esquerda, mas sobretudo com qualquer pensamento. 

A entrevista que concedeu aos jornalistas, no dia seguinte à cassação, tem a profundidade de um aipim. 

Não há pensamento, só a repetição exaustiva do mantra defensivo, “não há provas contra mim”, e a hipostasia do parlamento. Como se o parlamento fosse a instituição absoluta para o exercício da democracia. Cotejar a revogação dos seus direitos políticos com a perda da própria vida é mais que um exagero, é tolice denunciadora da uma concepção aguada de política, de democracia, e de si próprio.

Muito bem, de fato inexistem provas contra o senhor Dirceu. Mas em caso de punição, que caisse atirando, como bom combatente. Dissesse tudo que pensa sobre o parlamento e o sistema representativo. Basta recolher as análises agudas – nunca desmentidas – de Rousseau, de Marx, de Rosa de Luxemburg, de Gramsci, de Karel Kosik, de Perry Anderson, de István Mészaros, e tantos outros, para demonstrar a natureza decaída do sistema político que representa (simula) a democracia entre nós. Mas Dirceu está desarmado de pensamento. Ele que tivera espírito de “comissário”, agora se comporta como “bela alma”, conforme a classificação de Karel Kosik. “Comissário”, para Kosik, é o burocrata político que, se acreditando revolucionário, quer impor seus princípios dogmáticos e indiscutíveis aos outros. E a “bela alma” – simetricamente oposta – é um ser retraído pelo temor de se perverter com a ação política, o que se revela inútil, pois sua passividade acaba por igualmente corrompê-lo face a convivência passiva com o mal.

Na entrevista de José Dirceu, não há um grão de crítica essencial à instituição que acabara de baní-lo por dez anos da política chapa-branca. Nem essencial, nem superficial. 

É aí que o espírito de “comissário” se dissolve na passividade da “bela alma”. Tem uma frase dele na entrevista que é cristalina: “Sou apenas o Zé Dirceu. Me sinto muito bem como Zé Dirceu”. Visivelmente, agora ele é um ser reconciliado com a sua consciência. Viveu grande parte da vida aturdido por uma moral bipartida: estar revolucionário ou ser liberal. O longo processo de cassação na Câmara Federal lhe apaziguou o espírito em conflito, a identidade liberal é a condição harmônica da sua “bela alma”.

Um espírito ingênuo e inconformado com o desfecho do caso José Dirceu pode ainda objetar: “Mas o que queriam que ele dissesse, depois de cassado?”

Ora, todos sabemos que as motivações para cassá-lo foram de natureza política e não pelo envolvimento moral com as trapalhadas delubianas e valerianas. Foi cassado um espectro de Dirceu, o velho Dirceu – que se presumia de esquerda – que foi banido do País junto com dezenas de revolucionários autênticos. A direita brasileira, os donos do Brasil, não se conformam que “aquela gente” hoje esteja no poder. Mesmo que “aquela gente” não seja mais a mesma ideologicamente, e a agenda econômica seja autenticamente neoliberal. A revista “Veja” estampa esse recalque azedo todas as semanas, em todas as suas páginas gravadas de letras e ódio de classe.

Então, o que o velho Dirceu deveria dizer na sua entrevista coletiva?

Estou sendo banido de uma instituição pré-republicana e que não representa a vontade soberana da população brasileira. Aqui nesse parlamento a democracia é uma simulação, onde prevalecem os interesses mais fisiológicos e mais atrasados.

Poderia citar Rousseau que, já no século 18, apontava a impotência do sistema representativo para dar voz à vontade popular. Poderia citar Perry Anderson, para quem o sistema representativo reduziu o cidadão à anêmica condição de consumidor diário e eleitor esporádico, e que tal cidadania é uma fraude e uma sonegação de direitos.

Poderia citar Gramsci e suas elaboradas considerações sobre o que ele acremente denominava de “cretinismo parlamentar” e as imposturas pseudodemocráticas do sistema representativo-parlamentar.

Poderia reclamar pela reforma político-eleitoral que o Congresso brasileiro malocou sabe-se lá em que ordem de prioridade, e ao implementá-lo, certamente, deve apresentar uma reedição das felpudas raposices parlamentares de sempre: um corpo representativo de deputados e senadores em si e para si, com as exceções de praxe (que no caso presente não somam cem parlamentares). Dizer, a plenos pulmões, que a esfera política é demasiadamente importante para ser conduzida por uma casta parlamentar tutelada pelos donos do capital. Dizer que o governo Lula ficou refém do fisiologismo dos congressistas por não ter encaminhado uma reforma político-eleitoral autêntica e que, neste sentido, é um avalista passivo da atual crise. Dirceu, finalmente, poderia citar o velho Dirceu, o dos “ideais audaciosos, dos altos sacrifícios, e dos impulsos heróicos”. Mas, pena, Dirceu não é mais Dirceu. Apareceu uma versão invertida do anjo torto de Drummond e disse-lhe:

“Vai, Dirceu, vai ser liberal na vida!”

E ele foi. No rosto, já sem a máscara revolucionária, estampou-se um sorriso resignado mas feliz. Aos 59 anos, finalmente, descobriu a sua verdadeira identidade.


Artigo de Cristóvão Feil, publicado em Dezembro de 2005, por ocasião da cassação do mandato parlamentar de José Dirceu.

5 comentários:

Unknown disse...

O nome correto é Rosa Luxemburgo.
Não existe esse 'de'.

Róża Luksemburg no original polonês.

Carlos Eduardo da Maia disse...

O maior lobbista dos últimos 10 anos no Brasil, Venezuela, Argentina, Bolívia, Equador e off course em Cuba. Quer fechar negócios nestes países e precisa de ajuda dos governos? Fale com Zé Dirceu que ele consegue.

Wagner Ortiz disse...

Artigo típico de esquerdista mal intencionado: que vc queria que ele dissesse? Acha que a mídia iria repetir/publicar com todas as letras? O projeto dele é outro: um Brasil mais igual. Mas ele é um esquerdista que aprendeu como lutar contra o sistema, juntando-se a ele e fazendo a limonada do limão das instituições.
Ninguém tem moral para criticar Genoino, Dirceu ou Lula quanto à luta para melhorar a vida do povo brasileiro. Quem tentar fazer isto estará fazendo papel de Lacerda.

Anônimo disse...

E pensar que 70% por cento do pT está envolvido nisto, que é o que representa pelo menos os que votaram no Rui Falcão; e que o governo além destes que chamas singelamente de "tripulias" delubianas" tem mais Sarney, Maluf, Collor, Renan, Padilha, Barbalhos e Bernardo Figueiredo....
Triste fim para a esquerda (?)pragmática...
E mais exercito na rua para fazer que bate em sindicalista que faz pose de manifestante...
E um governo "técnico" como pregavam em 64....
E chamando de pessimista os que discordam deste teatrinho indigente de governo de esquerda...
E assim se manifesta a Síndrome de Estocolmo retardada da Dilma.
Miserável do povo brasileiro para contar com um governo destes.

Anônimo disse...

Esquerdista bem intencionados?
Eu acho que eles abandonaram a esquerda já bemm antes da carta aos brasileiro. A lias o Lacerda também teve algum momento algum momento na "esquerda", logicamente depois dr chegar so poder....
Pelo menos a tua consciência não ye traiu na lembrança. ..

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