Quando
somente a violência faz sentido
Vivemos
hoje num mundo em que nem mesmo o senso comum faz sentido. Essa
assertiva é de Hannah Arendt, ainda da década de 1950, mas faz-se
atual - cada vez mais - nos dias do terceiro milênio. O colapso do
senso comum de nossos dias indica que a filosofia e a política
acabaram tendo o mesmo destino: a crescente perda de relevância em
favor da economia, da dinheirização da vida cotidiana e do consumo
como instância principal das relações sociais, deslocando em
definitivo a cidadania, a solidariedade, a própria política, enfim.
Na
década de 1970, Florestan Fernandes (Sociedade
de classes e subdesenvolvimento)
já nos alertava sobre a disjuntiva entre desenvolvimento econômico
e estabilidade política nos Estados nacionais. Essa disjuntiva nem
sempre é evidente, ao contrário, está quase sempre mascarada ou à
sombra do fluxo principal da vida social no capitalismo
pós-concorrencial.
As
mobilizações de massa ocorridas no Brasil, especialmente no último
mês de junho, servem, pois, para tirar o véu escuro da luta de
classes que surdamente insiste em mostrar a sua existência, mesmo
que por fenômenos nem sempre legíveis e claros.
O
lulismo ousou mexer com a então estagnada estrutura de classes
sociais do País. Há segmentos e frações de classe que estavam aí
desde o Brasil-Colônia, o Brasil escravocrata. Ilustrativo disso é
a recentíssima - deste ano de 2013 - legislação de direitos às
empregadas domésticas, uma ponta do século 18 que insistia ainda em
vigir no século 21. Ainda assim, não foram poucos que protestaram
contra esse abuso, muitas vezes alegando - cinicamente - que estavam
protegendo os/as próprias beneficiários dos novos direitos.
Eis,
pois, um enclave mental francamente escravagista impregnado na cabeça
de ditos modernos e descolados. Isso nos mostra que não podemos
esquecer que o capitalismo, para além dos mercados, é antes de
tudo, um produtor de fetiches, ideologias, mitos e representações
da verdade. A ganga bruta deste minério ideológico é o senso
comum, essa verdade pedestre que vagueia pelas ruas e coloniza as
pessoas com certezas absolutizantes e definitivas, mas que raramente
duram trinta dias. Pois, mesmo o senso comum já está desgastado e
sem sentido, como afirma Arendt.
Se
o espírito do homem comum já não pode mais confiar nem no senso
comum, em quê pode confiar? Se a cidadania há muito foi interditada
pelo desgaste continuado da política, em quem confiar? Ora, o homem
enxotado do acolhimento cidadão, tem encontrado abrigo - ainda que
falso e provisório - no seio cálido do consumo para todas as
classes de renda. O consumismo é a sequência lógica da disputa
entre o setor público versus setor privado, incentivado pela
propaganda da ideologia neoliberal nos últimos 30 anos.
É
aí que queremos chegar, neste brevíssimo artigo. As grandes
mobilizações urbanas no Brasil de 2013 está mais informada pelo
consumo do que pela cidadania. Os requerimentos das massas urbanas
(tão fragmentadas quanto a soma das distintas tribos que a compõe)
têm a aparência e um fraco aroma das categorias políticas, mas se
comportam como desejo de consumo de um rol de necessidades por
inovação autorreferente e até narcísica. Aí está uma vitória
da propaganda neoliberal em nosso meio, onde se verifica um
hibridismo entre as mobilizações típicas de históricas
conjunturas anticapitalistas, mas com ingredientes próprios do seu
contrário: a ideologia neoliberal materializada em formatos da ordem
hegemônica do último capitalismo.
Aqui,
é de dar razão ao sociólogo Wolfgang Streeck quando ele afirma que
as manifestações políticas de massa hoje estão reduzindo a
política ao entretenimento. Em junho, ouvi uma mãe perguntar ao
filho adolescente qual inscrição havia no cartaz que ele portava na
passeata do qual participara, ao que o filho respondeu, com ar
ingênuo, mas eufórico: "Não sei o que estava escrito, mãe!"
Entre
um videogame e outro, manifestação de rua como pura diversão, ou
nova esfera de sociabilidade efêmera e sem compromissos de qualquer
ordem. Veja que não há discurso, não há carro-de-som, não há
panfleto (o grande meio de comunicação do discurso político,
protorrevolucionário, desde o século 19), não há palavra.
Aristóteles definia o homem como um ser politico, dotado de fala,
portador de um discurso simbólico.
Essa
definição vale para o cidadão, mas não vale para o consumidor -
esse novo homem unidimensional que emerge da promessa neoliberal sem
passado e sem futuro, pulsando num tempo mítico, eterno presente
autorreferenciado, nulo de humanidade e sentido - como os animais.
Assim
e agora, só a violência se impõe e faz sentido, trazendo nexo à
existência.
Artigo
de Cristóvão Feil, sociólogo, texto publicado originalmente na
edição de setembro/2013 do Jornalismo
B
(em papel).
4 comentários:
Cristóvão, saia do seu ar-condicionado e vá para as ruas. Não escreva sobre o que está acontecendo sem entender a realidade das ruas, as chances do equivoco (confirmadas nesse artigo sem pé nem cabeça) são sempre grandes. Torço para que seja apenas ingenuidade. Abraço.
Caro Anônimo da Madrugada,
Chamo a atenção que vc. está entrando num campo vasto e que pode confundí-lo. Refiro-me ao campo da tolice. Muitos se perdem por aí, que não aconteça o mesmo com vc.
Mas se eu estou entendendo, para fazer um juízo mínimo acerca da Síria, por exemplo, é necessário viver em Damasco ou Lataqia, ou Homs? É isso? E como se faz um juízo sobre o governo de Franklin Roosevelt, na década de '30 e '40 nos Estados Unidos?
Veja que vc. está mergulhado na tolice, de onde é difícil se livrar. Mas tente, saia daí, rapaz.
Estimado Cristóvão, do renomado Psicologo Clinico Jose Antonio Zago, no artigo "Drogadição um jeito triste de viver" de 1994, tem o trecho:
................."Queremos destacar três significados interligados sobre o que entendemos por adoecido existencialmente :-
1-O contexto social consumista, onde a aparência é colocada como mais fundamental que a essência.
Essa visão é determinada pelos magnatas da produção que se utilizam da mídia para inculcar nas pessoas formas de pensar, sentir e agir.
Então, ideologicamente, somos levados a aceitar como natural e verdadeiro que os valores estão nos objetos externos. À medida que a pessoa mais possui, mais se sente identificada com seu meio social. Só aquilo que possui é que tem valor.
Tal ideologia pode levar o ser a ficar distante de seu intimo, com dificuldade de mostrar-se por inteiro e, portanto, ausente de uma comunicação real para com o próximo. Rogers [5] denomina essa carência de sentimento de solidão, ou seja, a incapacidade da pessoa exprimir um contato autêntico ou transparente para com o outro, exatamente por estar distante de si mesma.
Desse modo, o ser é levado a relacionar com um outro não-pessoa, isto é, com um outro coisificado porque o ser se percebe coisa ou mero instrumento, ou, ainda, os objetos que tem.
Isso gera uma sensação de vazio, de ausência, de tristeza íntima porque a ‘riqueza’ está no fora. Esse mesmo sentimento pode estar mais em evidencia naqueles que, apesar de estimulados ou multissolicitados ao consumo, não tem acesso a ele, ficando com a percepção de serem os falidos ou os fracassados do sistema.
Essa característica do adoecer existencial é selada quando o ser, passivo e dependentemente, aceita que esse mundo dado é pronto, acabado.......................
O texto pode ser simplificado como o ciclo da reificação, onde o próprio indivíduo torna-se algo distante para si mesmo e de qualquer senso comum com essência humanística.
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