A farsa
da anistia
Motivada
por afirmações de membros da Comissão da Verdade referentes à
necessidade de reinterpretação da Lei da Anistia, a Folha abriu
mais uma vez espaço importante para o debate a respeito do problema.
Artigos assinados e editoriais apareceram nos últimos dias mostrando
como esta é uma discussão da qual o Brasil não pode escapar.
Neste
momento, a Comissão da Verdade começa a desmontar antigas mentiras
veiculadas pelo regime militar, como assassinatos travestidos de
suicídios e desaparecimentos ou aquela afirmação patética de que
as ações de tortura não eram uma política de Estado decidida pela
alta cúpula militar.
Ela
também colocou à luz a profunda relação entre empresariado e
militares na elaboração e gestão do golpe.
No
entanto, uma das maiores mentiras herdadas da- quele período é a
história de que existiu uma anistia resultante de ampla negociação
com setores da sociedade civil e da oposição.
Aquilo
que chamamos de "Lei da Anistia" foi e continua sendo uma
mera farsa.
Primeiro,
não ouve negociação alguma, mas pura e simples imposição das
condições a partir das quais os militares esperavam se
autoanistiar.
O
governo de então recusou a proposta do MDB de anistia ampla, geral e
irrestrita, enviando para o Congresso Nacional o seu próprio
projeto, que andava na contramão daquilo que a sociedade civil
organizada exigia.
Por não
ter representatividade alguma, o projeto passou na votação do
Congresso por míseros 206 votos contra 201, sendo todos os votos
favoráveis vindos da antiga Arena.
Ou seja,
só em um mundo paralelo alguém pode chamar de "negociação"
a um processo no qual o partido governista aprova um projeto sem
acordo algum com a oposição. Há de se parar de ignorar
compulsivamente a história brasileira.
Segundo,
mesmo essa Lei da Anistia era clara a respeito de seus limites. No
segundo parágrafo do seu primeiro artigo lê-se: "Excetuam-se
dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de
crimes de terrorismo, de assalto, de sequestro e atentado pessoal".
Por
isso, a maioria dos presos políticos não foi solta em 1979, ano da
promulgação da lei (por favor, leia a frase mais uma vez). Eles
permaneceram na cadeia e só foram liberados por diminuição das
penas.
Os
únicos anistiados, contra a letra da lei que eles próprios
aprovaram, foram os militares que praticaram terrorismo de Estado,
sequestro, estupro, ocultação de cadáver e assassinato. A Lei da
Anistia consegue, assim, a proeza de ser, ao mesmo tempo, ilegítima
na sua origem e desrespeitada exatamente pelos que a impuseram.
Artigo
do professor Vladimir Safatle, da Filosofia da USP.
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