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quarta-feira, 6 de março de 2013

Se os humanos perturbarem o equilíbrio da Terra, serão pisoteados e jogados fora



O humanismo é uma religião esquecida

Os recentes relatórios científicos informando sobre mudanças climáticas praticamente irreversíveis ou de remota reversão, impõem ao homem abstrato a necessidade de entender onde foi, afinal, que errou.

Evidentemente o vilão número um do aquecimento global é o homo oeconomicus gestado nas usinas de carvão do princípio da Revolução Industrial e, claro, suas subsequentes derivações tecnológicas que teimam cada vez mais em consumir combustíveis fósseis combinado com um modelo perdulário e predatório de produção e consumo – seja no setor primário, seja na indústria de transformação.

Na sua obra Cinco ensaios sobre a psicanálise, Freud detectou aquilo que chamou de feridas narcísicas do homem da modernidade. A primeira ferida foi causada por Copérnico ao provar que o homem e seu pequeno planeta não eram o centro do Universo. A segunda ferida foi causada por Darwin ao mostrar que o homem é tão-somente um elo na evolução das espécies vivas, e não uma criatura especial de Deus para dominar a Natureza. A terceira ferida foi obra do próprio Freud ao mostrar que “o Eu não somente não é senhor na sua própria casa, mas também está reduzido a contentar-se com informações raras e fragmentadas daquilo que se passa fora da consciência, no restante da vida psíquica”.

Em suma, diz Freud, arrasador, somos periféricos, ligeiramente pós-primatas e temos uma consciência opaca, quase sonâmbula. 

O homem que formulou constructos de religiões e filosofias para adornar a própria condição, sem as quais a vida seria mais penosa, aos poucos dá-se conta que não passa de mais um dos tantos animais da vasta fauna terrena. Não foi Platão e Descartes que apontaram a consciência como o elemento distintivo entre os humanos e os outros animais?

Pois hoje quem estiver com os olhos e a estreita janela da consciência abertos para aceitar que nós humanos não devemos ter tanta importância assim, está de fato contribuindo para a salvação do Planeta e o início prático da biofilia - o amor endereçado a todas as coisas vivas.

Esses densos temas estão discutidos por John Gray na obra Cachorros de Palha - Reflexões sobre humanos e outros animais (Ed. Record). Como se vê, o britânico Gray (um liberal) abala as convicções mais arraigadas de todos nós, atirando com pontaria em ícones humanistas, tanto à direita, quanto à esquerda. Ora extraindo inspiração da poesia, onde vale-se até de Fernando Pessoa, ora da literatura de Conrad, ora da filosofia de Hume, de Schopenhauer, de Kant, e de Nietzsche, ele consegue fazer-nos pensar que, de fato, a sombra escura do homem é bem maior do que o seu real tamanho natural. 

O livro é um trabalho inspirado e muito bem escrito sobre antropologia filosófica, mas passa longe dos jargões e da linguagem hermética dos iniciados. Sobre John Gray se pode dizer que talvez seja um Schopenhauer sem a ranhetice deste, sem aquela misoginia agressiva, e que nunca empurrou a empregada do alto da escada, como o filósofo alemão.

Da biologia molecular, Gray trabalha com o que afirma Jacques Monod, segundo o qual a vida é uma casualidade que evoluiu pela seleção natural de mutações randômicas (aleatórias, contingentes). E que, portanto, nem a filosofia, nem as religiões (cuja moralidade entre o certo e o errado está informada por Deus, e que este afinal vai garantir-nos um sentido para a vida), e muito menos o progresso tecnológico podem afastar-nos da jogada de sorte de sermos o resultado (bem ou mal) sucedido de uma loteria cósmica.

O grande alvo de Gray é o humanismo pretensioso dos Iluministas, segundo o qual pode-se perfeitamente substituir a religião tradicional pela fé secular na humanidade. Gray lembra que para a hipótese Gaia, a vida humana não tem mais sentido do que a vida dos fungos.

Gaia, aliás, está na raiz do título Cachorros de Palha. Segundo uma antiga escrita taoísta, nos rituais chineses, cachorros de palha eram usados como oferendas para os deuses. Durante o ritual eram tratados com reverência e respeito. Quando tudo terminava, e não sendo mais necessários, eram pisoteados e jogados fora: "Céu e terra não têm atributos e não estabelecem diferenças: tratam as miríades de criaturas como cachorros de palha" - diz a escrita do sábio Lao-Tsé.

E completa John Gray: "Se os humanos perturbarem o equilíbrio da Terra, serão pisoteados e jogados fora".

Uma leitura que nos reconcilia com os animais e com o Planeta, sem a chatice da conversa "verde" e nem a falsa piedade dos consumidores de pet shop e mascotes caseiros.

Artigo de Cristóvão Feil. Publicado originalmente na revista mensal do MST, em setembro de 2007.

2 comentários:

Anônimo disse...

Artigo excelente, muito boa abordagem e comentário sobre o livro. Também sou fã do livro do Gray há alguns anos. Só não vou compartilhar por aí nas redes sociais em função da última frase, generalizadora, gratuitamente agressiva e preconceituosa. Uma lástima terminar um artigo tão interessante com um tom tipo Aldo Rebelo.

Maurício Santos.

Anônimo disse...

Endosso o comentário anterior. Não existe nada de falso em retirar dois cães das ruas e transformá-los em mascotes domésticos. Isso é puro humanismo! Portanto, a última afirmação, infelizmente, compromete mesmo que de forma parcial, toda a desenvoltura da matéria.

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