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quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Conviver com os neo-incluídos está ficando insuportável


Investigação sobre o entendimento humano

A Escócia deu duas contribuições inestimáveis à humanidade: o aguardente chamado uísque e o pensamento de David Hume (ou Home). O subtítulo meio besta deste modesto post refere, aliás, a uma obra do nosso Hume (ou Home), An Enquiry Concerning Human Understanding. Sou um admirador do cara porque ele foi um sujeito sobretudo corajoso (se dizia ateu em pleno século 18, quando hoje ainda é pecado falar nisso), além de muito inteligente, especulativo, inquieto, curioso e com uma colaboração extraordinária para o pensamento ocidental, para Kant, para o constructo empírico da chamada democracia republicana estadunidense, etc.

Depois eu digo por que motivo estou falando de Hume (ou Home). Agora eu quero pegar a outra ponta do barbante que amarra fragilmente este post. Dizer do quanto eu gostei do artigo de Diana Corso, reproduzido logo aqui abaixo. Um texto sintético mas com grande espessura e densidade. Diana está falando (e bem) da velha categoria mobilidade social vertical. Um fenômeno escasso (deserto) no Brasil há pelo menos seis longas décadas. Objeto de estudo para uma geração de pesquisadores sociais e políticos, pelos próximos quarenta anos, certamente. Conquista (provisória) do que eu chamo comumente de lulismo de resultados. Muitos perguntam do por quê "de resultados". De "resultados" e "provisório" porque não são (ainda) conquistas permanentes, irreversíveis, cumulativas em seus efeitos, conducentes a novas reformas e - o principal - orientadas para o socialismo. Não são. De qualquer forma, representam um marco de transposição do velho esquema das oligarquias, mérito exclusivo do presidente Lula, com o auxílio de Dilma Rousseff.

Mas eu também não quero falar precisamente sobre isso. Fiz estes dois pequenos prefácios apenas para contar um episódio pedestre, quase corriqueiro, que aconteceu comigo, mas que ilustra bem a mudança social que estamos vivenciando, e sobre o qual ainda estamos meio tontos e baratinados. Afinal, não é a coruja de Minerva que alça o vôo ao entardecer?

Frequento sempre que posso (neste ano, cada vez menos) uma incerta confraria etílico-gastronômica, aqui em Porto Alegre. Nesses redutos, como vocês sabem, há uma convenção tácita que interdita temas que possam trincar a coesão fraca do grupo. Política partidária, é um deles. Entretanto, um dos confrades, mais por ingenuidade do que por qualquer outra coisa, insiste em mandar-me mensagens cabeludas sobre a escolaridade de Lula, bem como garantias irretorquíveis de que Dilma não é bem assim aquela deusa que estaria apta a guardar o fogo sagrado da moralidade pública, etc. A cruzada do confrade já dura muitos meses. Sempre fiquei no meu quadrado, ignorando tudo. Eis que senão quando, recebo um artigo do teólogo Leonardo Boff, ex-Marina, agora apoiando Dilma. Estranhei muito, li o artigo do homem que desafiou o Ratzinger. Nada. Nada que confirmasse as mensagens anteriores do confrade. Já estava deletando-a quando, finalmente, notei o título do e-mail: "Escândalo envolvendo Lula". De imediato lhe respondi, na linha hilário-cínica do inigualável professor Hariovaldo Almeida Prado. Apontei o engano e parabenizei-o pelo trabalho voluntário e patriótico de denunciar o criptolulismo, o ateísmo, o vermelhismo e os que desvalorizam a moral tradicional, etc. Ele se desculpou pelo engano de ter mandado um texto que não correspondia à intenção do título da mensagem, e frisou que não fazia exatamente um trabalho voluntário, no sentido de que exercia apenas um amadorismo de web e tal. Repliquei com redobrada inspiração hariovaldiana, e talvez errei a mão: expressei vivas congratulações pela sua abnegação e manifestei surpresa, se o trabalho não é voluntário, logo é remunerado, então solicitei uma participação nesse trabalho remunerado, eu também estava precisando de dinheiro, um extra sempre cai bem, essas coisas. Até o momento, ele não me respondeu. Acho que passei do ponto.

David Hume (1711-1776)
Agora é preciso identificar o perfil do sujeito. A rigor, são dois, uma dupla quixotesca às avessas. Eles andam sempre juntos (não, não são bibas), trabalham na mesma instituição da área médica, ambos são pesquisadores, dois cientistas com doutorado. O que, para essa breve avaliação, é um agravante. Ambos vieram de um estrato social muito baixo. Estudaram com grande esforço e determinação. Nos Estados Unidos e na rua Padre Chagas seriam chamados de "vencedores". Detalhe importante: ambos foram petistas. Viraram o fio depois da crise de 2005, também conhecido como "esquema mensalão". O mentor do cruzado das mensagens provocativas é um sujeito com apreciável formação. Fez pós-doutorado na Inglaterra, fez estudos que duraram vários anos numa famosa instituição científica de Paris e quando volta à Porto Alegre, faz mestrado em filosofia, quando escreve uma tese sobre David Hume (ou Home). Claro, o velho David é vastíssimo e complexo. Um cara da área médica vai se interessar certamente pelos aspectos do método científico do escocês genial. Hoje, o sujeito é professor de Filosofia da Ciência e fomentador oculto de pequenos agentes protofascistas, inflados pelo ressentimento e obnubilado pela mais completa ignorância sobre a política e suas consequencias na vida cotidiana. Apesar de todo esse alpinismo social e cognitivo, são dois sujeitos que experimentam, cada um a seu modo, uma tragédia existencial sem precedentes. Se adornaram de conhecimento e títulos (discutíveis), mas vivem nus e primitivos - simbolicamente, comem cru - como o mais esquecido e pulguento dos lúmpens urbanos.

Neste sentido, é inquietante que o cara tenha escolhido o velho e bom escocês David para
objeto de sua tese de mestrado em filosofia. David é um sujeito que discutiu um pouco (bastante) esses temas dos quais são vítimas os nossos dois quixotes invertidos. A questão da moral é uma delas, afinal, os caras abandonam o petismo por motivações estritamente moralistas e despolitizantes.

Quanto ao ótimo artigo da psicanalista Diana Corso, eu só acrescentaria aquilo que representa essa dupla impagável dos meus confrades, qual seja, a absoluta negação do direito de ascenso social por parte das massas brasileiras. O lulismo de resultados elevou a condição econômica de mais de 50 milhões de pessoas (23 milhões que sairam do lumpesinato para a condição de pobreza + 30 milhões que sairam da pobreza e ascendem ao consumo padrão classe média). Isto precisa ser interditado, na cabeça dos meus confrades. O raciocínio de jerico lhes informa e "ilumina" a novíssima opção protofascista: "De que adianta a gente ter estudado e vencido? Hoje, qualquer ignorante e preguiçoso consegue o mesmo, por outras vias. Lula está premiando a quem não merece, a quem não se esforçou como nós, a quem é ignorante e grosseiro como o próprio Lula".

Isto posto, para esses dois pacóvios ilustrados e materialmente confortáveis, votar no José Serra (foto ao lado), agora, é uma desforra de classe, uma revanche social contra a gravíssima ameaça dos que vêm de baixo, sem mérito, sem lenço, sem documentos, sem títulos, sem aguardente escocês e, sobretudo, sem David Hume (ou Home).

Para mim, essa é a tragédia existencial de uma fina camada de brasileiros (a ambiguidade é proposital). Conviver com os neo-incluídos é insuportável.

20 comentários:

Carlos Eduardo da Maia disse...

Votar no José Serra não é desforra de classe, mas acreditar que os brasileiros podem ser incluídos no mundo de qualidade de vida não apenas ganhando o peixe (o que também é necessário) com esmolas e políticas assistencialistas. Com Serra o Brasil vai ter mais condições de aprender a pescar.

E mais, quem foi ex petista ou ex esquerdista (e assumo a carapuça) não se vendeu ao capital, mas adquiriu consciência de que tudo é possível no Brasil e no mundo com a convergência, com o diálogo, com a diplomacia e que a dialética (porque tudo evolui e tudo que é sólido se desmancha no ar) também tem seu lado gradual. Lula que o diga. Vejam a foto acima do Bill Gates, o cara mais rico do mundo que segura uma criança miserável e ele é rico (qual o problema dele ser rico?) porque ele está ajudando a humanidade a se comunicar. A Microsoft e seus bons produtos são peças essenciais
na democratização da informação no mundo que estamos embutidos.

Eliete disse...

Cristóvão,

hoje meu parabéns não vai para a foto, mas para a legenda!
ab

Eliete disse...

Agora, o texto: perfeito. Aqui em São Paulo, temos casos parecidos aos seus "confrades": frequentam "jantares elegantes" com longos debates da "alta cultura". No entanto, infelizmente, a maior parte não conquistou títulos e foi estudar pra valer, mas frequentou os cursos da Casa do Saber, apelidada pelos paulistanos de "Daslusp" e saem repetindo frases feitas. O que têm em comum, a "desforra de classe". Triste.
ab

Remindo disse...

O Brasil mudou com o Lula, mas os leitores de Veja/Folha/Estadão/o Globo e espectadores da Globo e Bandeirantes não conseguem entender isso. Quem sabe outras leituras lhes daria mais informações sobre o Brasil de hoje. Votar no Serra é querer o atraso de volta e a uma visão de mundo que não existe mais.

luciano disse...

bah, feil. eu pensava isso esses dias mesmo, quando ouvi coisas absurdas da boca do meu próprio pai, ex-pdtista brizolista da gema, e agora casado com uma profa. pmdbista que adora qdo a yeda manda baixar o cacete nos professores, os quais não puderam optar, voluntariamente, como ela, entre administrar a fazenda do pai e ganhar uma merreca como prof. de filosofia do estado.

eu penso nisso quase todos os dias quando eu ouço gente criticando a doméstica que tem um celular caro, ou que consegue viajar pra SC nas férias. onde já se viu, pobre e negro dividir o mesmo espaço social que nós, né feil?

ainda bem q tu escreveu isso. não me sinto sozinho nos meus devaneis na parada da Osvaldo Aranha.

e antes que eu me esqueça, Sr. Maia. aposto uma caixa de Malbec (nem q eu gaste toda a minha bolsa de estudo do Gov. Federal para isso) que tu estás enganado. cara, você é tão ingênuo quanto pueril. feche essa ZH de merda e aprenda e pensar por ti próprio!

Unknown disse...

Carlos Eduardo da Maia o seu comentário serviu quase como complemento do texto.Obs:É dever garantido pela Constituição Brasileira dar o peixe para aqueles que não sabem ou não podem pescar(Esmola é obrigação do governo e não do cidadão),o Presidente atual só cumpriu com a obrigação não fez nada além ele continuou vendendo nosso país como se nossos recursos fossem infinitos e colaborou bastante para destruição das nossas maiores riquezas.Todavia é preferível alguém que não queira que os pobres morram,pois pra ensinar as pessoas a pescarem elas precisam estar vivas e saudáveis e o principal elas precisam acreditar nelas,ter dignidade,algo muito presente na nossa população de baixa renda e em falta nas camadas privilegiadas que se orgulham de suas bandidagens

jose grisa disse...

Se esse Carlos Eduardo Maia, é um dos doutores citado no texto do Feil, ele representa com toda a nitidez, a "qualidade" do ensino de pós-graduação no nosso país. Convivo também com alguns que conquistaram esse título, não sabem responder em que sistema nós vivemos, alguns doutores em: grão de semente agrícola, outros doutores de tornozelos, etc. Até pouco tempo nutria uma ilusão que para o cara ser "Doutor" era aquele que adquiria um conhecimento global do mundo interdisciplinar, mas não é caso do nosso mericrático Doutor, que parece subiu a escada o darwinismo social, alguns utilizando muito mais da esperteza do que a inteligência. Conheci muitos operários que se autoalfabetizaram e que dão um banho de conhecimento sobre a sociedade, que muitos Drs. A academia deve rever urgentemente sua pós-graduação. Só para avisar que não voto nem no Serra, Nem na Dilma, nem na Marina, vou fazer um 21.
Grisa

Anônimo disse...

Somente um néscio poderia dizer o que o tal Maia disse; O Serra pode melhor ensinar a pescar. Deve ser por isso que a desigualdade social no estado mais rico do país está nas alturas. Ou talvez ele esteja referindo-se à facilidade da pesca no buraco do metrô que encheu com as constantes enchentes que assolam os mais pobres.
flavio cunha

Remindo disse...

Este senhor Maia é o chamado analfabeto social. Pobre para ele é castigo de Deus. No século 19 ele defenderia a escravidão e na década de 40 a limpeza genética do Hitler.

Remindo disse...

Este senhor Maia é o chamado analfabeto social. Pobre para ele é castigo de Deus. No século 19 ele defenderia a escravidão e na década de 40 a limpeza genética do Hitler.

Omar disse...

Eu acho que ninguém "vira o fio".
Essas pessoas que mudam radicalmente de posição ficam, em função de falta de clareza decorrente, muitas vezes, da pouca experiência/idade, em situações nas quais lhes é confortável momentaneamente.
Com o passar do tempo assumem seu lugar histórico e passam a vida toda tentando provar para si mesmos que esse é o posicionamento correto.

Anônimo disse...

Texto fantástico. Expõe com agudeza uma situação que também vivencio cotidianamente. Mas, é claro, eu nunca saberia expressar a situação com tamanha clareza e competência.

Muito obrigado.

Ah, outra coisa: a filosofia, pelo menos a aqui da ufrgs, se transformou em um covil de protofascistas. Impressionante.

Anônimo disse...

Cristovão, creio que conheço esse sujeito do e-mail.

Faz parte dos 4%.

Idolatra o Denis e o Pugina.

Realmente a cultura formal de nada adianta, se não vier acompanhada de neuronios funcionais.

Carlos Eduardo da Maia disse...

Interessante essa última mensagem: "filosofia, pelo menos a aqui da ufrgs, se transformou em um covil de protofascistas. Impressionante."

Certa esquerda acha que as pessoas que não são de esquerda e que não acreditam em seus ideais e suas religiões por uma série de motivos ou são ignorantes, alienadas, burras ou fascistas. Eu também pensava assim e ainda bem -- e estou feliz comigo mesmo por isso -- que fui além.

Anônimo disse...

As politicas "assistencialistas" são estas que levaram quase trinta milhões de pessoas da pobreza para a classe média.

Politica de classe é aquela que o Serra faz, entrega a telefonica para os Dantas, e eles abrem um negocinho para ensinar a filha dele a pescar em Miami.

Este Maia tem raiva é que vá aparecer neo-classe media no parcão e estragar o footing dele. Eles são os quatro porcento que odeiam o Lula, o PT e pobre.

Claudio Dode

Anônimo disse...

O "Maia" é realmente do além: e devemos mesmo agradecer à mui rentável benevolência do Bill Gates --- graças a ela, podemos nos divertir com aquele pateta... rsss

Anônimo disse...

O cara com o maior QI da história fez a Bomba Atômica...

Tupamaro disse...

Com certeza o gajo da Maia é ex-esquerda que jamais leu Marx, mesmo que superficialmente. Pois só quem não leu Marx pode escrever tamanha besteira sobre Bill Gates.
Então o velho Bill quando jovem decidiu magnanimamente criar a Microsoft e o seu Windows para democratizar a informação no mundo todo! Ora, por favor, todos nós sabemos o que moveu e move Bill Gates, é obter lucro, lucro e mais lucro. E para isso se utilizou de todos os meios, inclusive tentativas de monopolizar o mercado, que lhe rendeu e rende até hoje processos nos USA e Europa.
Lá no Manifesto, Marx e Engels já diziam que o capitalismo revoluciona
o mundo, não intencionalmente mas inexoravelmente e cabe a humanidade se valer disso para ultrapassar o capitalismo e atingir um nível superior de organização da sociedade.

Katarina Peixoto disse...

TEXTO MARAVILHOSO! Bravíssimo!

Cláudio E disse...

Belíssimo texto. Quanto ao Maia: Universidade não encurta orelha de burro,

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