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terça-feira, 16 de novembro de 2010

A liberdade é, antes de tudo, uma relação social

Hegel e nós

Uma das ideias mais atuais de Hegel diz respeito ao conceito de liberdade.

Ela consiste em lembrar que toda discussão sobre liberdade é inócua se não começar por responder quais condições sociais são necessárias para que uma vida livre possa ganhar realidade.

Um exemplo interessante já fornecido por Hegel (retrato ao lado) dizia respeito à tendência, no interior das sociedades de livre mercado, de pauperização de largas camadas da população devido à concentração de riquezas. Já no começo do século 19, um pensador da envergadura de Hegel não se espantaria se descobrisse que, enquanto o PIB norte-americano por habitante cresceu 36% entre 1973 e 1995, o salário horário de não-executivos abaixou em 14%.

O paradoxo de sociedades que produzem cada vez mais riquezas enquanto tendem a concentrar sua circulação não vem de hoje.

Para Hegel, este não era um problema de "justiça social", mas sim de condições de efetivação da liberdade. Não é possível ser livre sendo miserável. Livres escolhas são radicalmente limitadas na pobreza e, por consequência, na subserviência social. Posso ter a ilusão de que, mesmo com restrições, continuo a pensar livremente, a deliberar a partir de meu livre-arbítrio individual.

Um pouco como o estoico Epiteto, que dizia ser livre mesmo sendo escravo. No entanto, uma liberdade que se reduziu à condição de puro pensamento é simplesmente inefetiva. Ela determina em muito pouco as motivações para o nosso agir.

Assim, uma questão fundamental para a realização da liberdade estava ligada à constituição de um Estado com forte capacidade tributária. Estado capaz de, com isso, diminuir as tendências de concentração de riqueza e de pauperização, como já vimos em outros momentos da história.

Isso permitia a Hegel lembrar que a defesa da liberdade não passava pela crença liberal da redução do Estado a simples ator responsável pela segurança pessoal, assim como pela garantia das propriedades e contratos. Ao contrário, era necessário um ator social capaz de limitar as tendências paradoxais das sociedades civis de livre mercado, quebrando o puro interesse dos particulares.

Mas esta "quebra" e esta "limitação" eram as condições para a realização concreta da liberdade. Pois não se explica o que é liberdade partindo dos sistemas individuais de interesses, embora eles não possam ser simplesmente excluídos. "Liberdade" não é apenas um modo de relação a si, mas também um modo de relação social. Por isto, aqueles para quem o Estado é uma espécie de monstro a limitar as nossas possibilidades de autorrealização talvez não saibam o que dizem.

Artigo de Vladimir Pinheiro Safatle, professor livre docente do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), especialista em epistemologia (teoria do conhecimento) e filosofia da música. Publicado na Folha, edição de hoje.

2 comentários:

Demétrio disse...

O Safatle é um autor inteligente e lúcido, mas esta reflexão, francamente...

Se Hegel, para quem o Estado era uma espécie de "Deus na terra" - ou a materialização da Razão universal - tem atualidade, o que se dirá de Marx, que concebe a liberdade em termos de "emancipação humana" - fato que requer o "fenecimento do Estado", e não a sua mistificação (como ocorre no discurso de "uns" muito afoitos, para quem socialismo é sinônimo de "estatização", quando deveria ser concebido como socialização de poder de decisão sobre todas as esferas da atividade produtiva).

É claro que a liberdade deve ser definida em termos de relação social, mas é preciso, para isso, que se vá muito além do discurso mistificador do Estado de Hegel. Nesse contexto, é fundamentalmente Marx quem tem que ser ouvido.

Gostaria de poder escrever ao Safatle e pedir a ele "mais Marx e menos Hegel" (embora isso talvez não passasse na censura do jornal que ele escreve...).

Nelson disse...

Permita-me discordar, meu caro Demétrio.
Eu vejo como altamente pertinente a argumentação do professor Safatle. Com a verdadeira lavagem cerebral imposta pelo neoliberalismo - que infestou todos os meios, dos bancos escolares e da academia aos órgãos da mídia hegemônica e outros círculos de opinião - deixando a maior parte das pessoas totalmente "grogue" e sem referências, o pensamento de Hegel está atualíssimo, sem dúvida.
E a questão do Estado está na ordem do dia, tanto aqui, no Brasil, como em qualquer lugar deste planeta. Como diz o Chomsky, os neoliberais pregam o Estado mínimo para trabalhadores, velhos e crianças e o Estado-babá para os ricos. Veja-se a intenção dos milionários dos EUA de desonerarem-se ainda mais de impostos. Ao mesmo tempo, esses milionários não descuidam de manter o controle do Estado que lhes garante seus privilégios (palavra já por demais surrada, mas, talvez, insubstituível, para retratar a situação em que vive a alta burguesia)
Então, o controle do aparato estatal é, sim, crucial para qualquer tentativa de mudança dos rumos da sociedade, para sua evolução.
E isto, Demétrio, está conforme com o que preconizava Marx. O passo para a evolução em direção ao socialismo não é outro senão a tomada do Estado pela classe trabalhadora, fazendo-o servir a todos da forma mais igualitária possível.
A destruição do Estado dar-se-ia num estágio mais avançado, o comunismo.

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