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Surf no lixo contemporâneo: a que ponto chegamos! E que mundo deixaremos de herança para Keith Richards?

quarta-feira, 24 de março de 2010

Um fenômeno exclusivamente europeu


Por que o PT não foi, não é e jamais será social-democrata - parte 2 de 3

É preciso entender a social democracia como um fenômeno puramente europeu. Os partidos social-democratas são frutos de uma conjuntura histórica singular, flores de uma geopolítica particular. Resultam de um processo de consolidação da ordem capitalista industrial, egresso da vencida aristocracia. Somente a Europa ocidental pode apresentar essa estufa social, com semelhantes resultados.

O operariado cresce enraiza-se e faz-se classe com uma sensível consciência de si: não se reconhece na decadente aristocracia, não se reconhece na ascendente burguesia patronal. Identifica-se, sim, nos movimentos sindicais e nos nascentes partidos socialistas e anarquistas. Como refere Marx, de classe em si, torna-se classe para si, embora com os desvios institucionais que veremos.

Como o anarquismo rejeita a via parlamentar, não há alternativa senão identificar-se com as instituições que estão conseguindo repartir o excedente e logrando melhores condições de trabalho. As conquistas econômicas do movimento sindical trazem dividendos eleitorais para os partidos social-democratas e vão solidificando uma cultura operária integrada e pacificada com a ordem burguesa.

Temos, portanto, elementos de natureza econômica, política e ideológica que modelam uma classe social com nitidez e contorno. Sabe-se onde tudo começa e não se desconhece onde tudo se limita. Uma diferença marcante entre os que permaneceram marxistas e os revisionistas é que, se para aqueles não há limites, para os renegados o limite máximo é a democracia liberal burguesa, do qual jamais ousarão ultrapassar as fronteiras da terra proibida.

Contudo, há um território político-institucional social-democrata, que o senso de oportunidade dos seus teóricos soube ocupar; não para servir à revolução, mas para satisfazer as necessidades imediatas da classe operária. É de enfatizar que a integração operária ao sistema é uma construção política da praxis social-democrática. O trabalhador – como classe – foi integrado, como efeito da política de compromisso de classe da Segunda Internacional. A dinâmica da formação de classes é um moto-perpétuo de lutas sociais. As classes sociais são continuamente organizadas, desorganizadas e reorganizadas (Przeworski, 1989). Destes três advérbios, a social-democracia soube ser responsável pelo primeiro e o terceiro. Daí o seu êxito.

Os fundamentos para o projeto social-democrata, seriam: a) uma poderosa organização sindical de trabalhadores; b) uma burguesia forte e autônoma em relação ao Estado, com capacidade crescente de investimentos. Uma acumulação burguesa e uma repartição proletária. Essa repartição se faz pela via sindical, na negociação salarial; e pela via eleitoral, através do controle do Estado, com políticas redistributivas de bem-estar social e cultural.

Portanto, são condições de acumulação econômica combinadas com condições estáveis de política institucional, seja no Estado, sejam nos sindicatos. Onde o instituto da representação não é atravessado, transfigurado em aventuras populistas temerárias. O modelo da social democracia está baseada em instituições representativas fortes e legítimas, onde as mediações são operadas por uma luta de classe institucionalmente filtrada pelo movimento sindical e o processo trivalente partidário-eleitoral-parlamentar. Esses filtros institucionais são anteparos do Estado burguês. Tem a finalidade de condensar e resfriar a lava quente das demandas, insatisfações e revoltas do movimento social em bruto. Ao Estado não chega a revolta bruta; mas a demanda líquida, classificada, filtrada, taxada, passível de negociação. Nesse processo ocorre a alienação ou a supressão de direitos. O filtro das instituições, mesmo as instituições de origem operária, como os sindicatos e partidos, alienam (surrupiam!) a natureza e a qualidade original das lutas do genuíno movimento social. Exaurem as lutas do seu conteúdo original para vertê-las em representações transfiguradas de sentido. Essa alienação de direitos assegura a legitimidade do sistema em autorreproduzir-se garantindo a manutenção da ordem, do progresso, da igualdade e da liberdade. Ainda que representações fracionárias de ordem (que não é para todos), de progresso (que não é para todos), de igualdade (que trata igualmente os desiguais), e da liberdade (em abstrato). A síntese dessa equação racionalizante é a democracia parlamentar, uma representação de si própria; um fragmento ilustrativo de participação popular alienada. Um caco sistêmico-ideológico.

A democracia para ser tolerada precisa ser mitigada, fracionada, representada. A democracia vira um instrumento racionalizante, onde o resultado é nem o reino da liberdade, nem o reino da razão.

O modelo populista (um nebuloso constructo categorial Uspiano, mas vamos pegar o atalho), que é o que está mais próximo de nós, tentou um desenvolvimento nacionalista autônomo e redistributivo baseado no movimento trabalhista, de resto malogrado, porque a burguesia já estava siderada pelo imperialismo e escarneceu do compromisso de classes; é uma representação abstrata, onde não existem mediações por que os líderes operam direto com o povo, indeterminadamente, povo. Na social democracia existe a categoria classe. No populismo subsiste a categoria genérica povo. A social democracia prosperou em uma formação social de pré-abundancia. O populismo é uma contingência política de formações sociais pré-desenvolvidas, onde o trabalhador é desorganizado por que pouco numeroso, e pouco numeroso por que é débil o desenvolvimento das forças produtivas.

Como se vê, o modelo social-democrata exige uma complexa rede de injunções favoráveis que a história não oferece na feira livre, como se fora peixe fresco.

A social democracia lembra o que se chama opção faustiana: o de um sobrinho jovem e operoso, de nome Fausto, que se ofereceu para trabalhar nas indústrias do tio burguês, esperando que o testamento deste lhe reconheça algum dia a prudência e a cordura. Só que para o testamento ser aberto o tio precisa antes morrer, e este ainda está vigoroso e saudável, enfrenta periódicas crises, mas recompõem-se novamente. E como o sobrinho não anda nada bem, pode sucumbir antes!

Kautski teve uma produção teórica muito grande até morrer em 1938, então com 84 anos. Um ano antes, em 1937, ainda publica "Os socialistas e a guerra", em Amsterdan, onde se refugiara do nazismo. Privou com Marx, com Engels, com Lênin, com Rosa. Não aprendeu nada com eles. Trilhou um caminho próprio, o inverso do caminho daqueles com quem se relacionou.

Em 1887, publica um trabalho cujo título era "As doutrinas econômicas de Karl Marx". A propósito deste livro, Paul Mattick relata que antes de publicá-lo, Kautski havia conversado com Engels sobre a teoria do valor. Esta, para Kautski, subsistiria numa economia socialista, com a condição de que o valor fosse conscientemente restabelecido e não fixo pelo jogo das leis cegas do mercado, como no capitalismo. Engels contrapôs ser o valor uma categoria estritamente histórica e que, aparecido com o capitalismo, com ele viria a desaparecer. Kautski aceitou o parecer neste trabalho, onde o valor é considerado uma categoria histórica. Entretanto, em 1922, ao publicar "A revolução proletária e o seu programa", lá estão reintroduzidos, no seu esquema de sociedade socialista, as noções de valor, mercado, dinheiro e a produção mercantil.

No esquema kautskiano, de 1922, temos duas hipóteses, mutuamente excludentes: 1) ou temos a eternização das categorias valor, mercado e dinheiro e as derivações multitudinárias da alienação; 2) ou temos o socialismo sem mercado, sem valor, sem sobretrabalho. A fusão das duas hipóteses é inviável, ou melhor, viabilizou a degenerescência stalinista na URSS: "socialismo" com alienação do trabalho e do Ser.

Leia amanhã, aqui, a parte final deste breve artigo. Ontem, foi publicado a primeira parte, ver abaixo.

7 comentários:

Anônimo disse...

Somente temos que nos lembrar, desconsiderando todas as teorizações, que Stalin tomou nas mãos uma das nações mais pobres e atrasadas do planeta e em menos de cinquenta anos a elevou a um patamar de superpotência e como diz o ditado "contra fatos consumados não há argumentos". O que resta discutir no meu entender é se os meios justificam os fins, só isso, o resto é história. Pimentel

Cazé disse...

Como se não bastasse ser Pimentel, ainda é stalinista.

Carlos Eduardo da Maia disse...

Uma perguntinha, onde é que funcionou o "socialismo sem mercado, sem valor, sem sobretrabalho."?

O Delfim Netto (e eu detestava ele na década de 80) hoje na Folha disse algo que é incontestável, O homem só ganha "humanidade" quando -alimentado- pode exercer sua imaginação criativa.
Quando pode se apropriar, livremente, dos resultados de sua atividade natural: o trabalho. Ao longo do processo evolutivo, ele foi procurando uma organização que lhe propiciasse,simultaneamente, eficácia produtiva (para satisfazer seu estômago) e liberdade individual (para alimentar sua imaginação criadora). Essa organização é o que se chama "economia de mercado" ou, de uma forma difusa, de "capitalismo".Ele não é uma coisa, mas um processo. Tem duas vantagens: não é eterno e não foi inventado. E um problema: precisa de um Estado constitucionalmente forte para garantir o funcionamento da instituição a que se dá o nome de "mercados".

O texto diz que Kautsky não aprendeu nada com Marx, com Engels, com Lênin, com Rosa. Na verdade, Kautsky foi além, transcendeu, olhou por outros ângulos, não ficou preso a uma doutrina, a uma religião que ainda crê (e tem gente que tem fé nisso) que o mundo é movido pela luta de classes entre explorados e exploradores. Mas onde estão, numa sociedade autopoética, complexa, difusa, esses exploradores e esses explorados?

A discussão para um mundo melhor e possível não é ideológica por um motivo muito simples: não interessa a ninguém a pobreza, o que interessa a todos (ricos, classe média e pobres) é a inclusão dos excluídos numa sociedade plural, justa e que propicie a todos qualidade de vida.

Lucas Jerzy Portela disse...

Feil, você esquece de um ponto importante.


Embora o proletariado europeu não tenha se identificado com a aristocracia decadente nem com a burguesia dominante, ao fim do sec XIX ate a segunda guerra mundial, fez um pacto com a aristocracia decadente (mais porque esta se identificada como bastião protetor do legado civilizatorio a ser entregue ao proletariado) - e isso foi fundamental pra social-democracia do continente.

Engels apontou para esta possibilidade, mas nao a viu na pratica. E pensadores que nao sendo marxistas, sao axiais e fundamentais a este, como o cineasta Luchino Visconti e o pseudo-biografista Marcel Proust, retratam bem isso.


Sobre este ponto, livro obrigatorio: As Aventuras de Karl Marx contra o Barao de Munchausen. Mostra entre outras coisas como cada corrente epistemica do fim do seculo se identificava com uma classe: o historicismo alemao com a aristocracia; o positivismo com a burguesia; o marxismo com o proletariado. E como cada corrente epistemica representava um dos entes da triade de Smith: o historicismo defende o Estado; o positivismo o Capital e o Marxismo o Trabalho.

E que, assim, a oposicao era traingular, com Marx ora fazendo alianças taticas ao positivismo (seu cientificismo radical e horror a filosofia), ora ao historicismo (o valor revolucionario da aristocracia como classe que tem capital simbolico, mas eh expropriada dos meios de producao).

alex disse...

Pito no PIG

foi hoje e Lula não perdoou!

http://www.youtube.com/watch?v=klpnHJWrH24&feature=player_embedded

Anônimo disse...

Além disso,Pimentel, a URSS após 1917 passou duas guerras civis,invasoes estrangeiras, cerco feroz(se a burguesia faz esse tipo de oposição ao dócil gov. Lula com mentiras,ameaça de golpe...imaginem ao MAIOR INIMIGO QUE O CAPITALISMO JÁ TEVE!),invasão nazista e holocausto ao povo russo com mais 20 milhoes de mortos além dos invalidos e destruição economica. A URSS lutou praticamente sozinha e venceu a guerra contra os naziztas(vitória de pirro na verdade)e após a chantagem neclear e histeria anti-comunista.
lEONEL SANTOS "STALINISTA".

Anônimo disse...

Muito Boa Feil!
Assim como a intervenção do Pimentel.
Só me desanimo a entrar no assunto pois ele já conta com o INTRUSO mais asqueroso dos blogs: O canalha do Maia. Estes herois do Bial estão cada vez pior, já que as chances deles estão cada vez menores.

Claudio Dode

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