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Surf no lixo contemporâneo: a que ponto chegamos! E que mundo deixaremos de herança para Keith Richards?

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Woody Allen vende Paris à meia-noite





As anotações de Ernest Hemingway sobre a vida em Paris nos anos vinte, do século passado, foram reunidas em uma obra que se chamou A Moveable Feast (na edição em português virou “Paris é uma festa”), lançada em 1964, portanto, três anos depois da morte do ganhador do Nobel de Literatura de 1954.


Os editores escolheram como epígrafe uma frase de Papa dita em 1950 ao seu futuro biógrafo Aaron Hotchner: “Se você teve a sorte de viver em Paris, quando jovem, sua presença continuará a acompanhá-lo pelo resto da vida, onde quer que você esteja, porque Paris é uma festa ambulante”.


É de supor, portanto, que Woody Allen tenha adotado essa máxima de Papa Hemingway para escrever e dirigir o filme “Meia-Noite em Paris”. O resultado faz de fato justiça à capital da França. Uma cidade cujo planejamento urbano ocorreu ainda na segunda metade do século 19, proibindo a edificação de prédios muito altos, Paris é – há muitos anos - o destino mais visitado pelos turistas do mundo inteiro.


Woody Allen, certamente muito bem remunerado pelos interesses da municipalidade parisiense, a exemplo do que já fizera em 2008 com Barcelona, no filme “Vicky Cristina Barcelona”, agora trabalha para exaltar a deslumbrante Cidade Luz. 


A promoção de grandes cidades virou um business a mais na filmografia de Allen. Fez isso em muitos filmes cujo pano de fundo era Nova York, depois, Barcelona, agora, Paris. Dizem que o próximo objeto urbano de Allen será o Rio de Janeiro. A ver. “Pagando bem, que mal tem”, haverá de pensar o cineasta nova-iorquino. 


Há mais de dez anos reforça-se a tendência de promoção de metrópoles urbanas, numa grande operação de “city marketing” como que descolada de seus países. Isso iniciou em Barcelona, talvez pelo fato de haver a velha disputa nacionalista entre espanhóis (suas múltiplas nacionalidades) e catalães. Arquitetos, urbanistas e sociólogos da Catalunha conceituaram em novas bases a divulgação de suas cidades, agora em sintonia com os requerimentos da globalização neoliberal. Tal conceito procura desagregar os aspectos nacionais, políticos e geográficos, no sentido de des-historicizar seu passado, visando objetivos puramente comerciais, turísticos e sobretudo imobiliários. Entre esses autores, estão intelectuais respeitados como Manuel de Forn, Jordi Borja e o sociólogo das redes, Manuel Castells, muito incensado pelos que não o conhecem em sua total extensão. Eles decalcam as técnicas do planejamento empresarial, sistematizadas na Harvard Business School (na qual aprendizes de feiticeiras ao Paço Municipal de Porto Alegre em 2012 vão beber conhecimentos “milagrosos”). Ora, “isso implica na apropriação da cidade por interesses empresariais globalizados, implica no banimento da política, da eliminação do conflito e das condições de exercício da cidadania” (Carlos B. Vainer). Como dizem Borja e Forn: “A mercadotecnia da cidade, vender a cidade, converteu-se [...] em uma das funções básicas dos governos locais...”.


As instruções (briefing) recebidas por Allen foram essas: queremos reposicionar Paris na bolsa de expectivas de visitantes e usuários solventes, trate de ratificar a Paris do imaginário intelectual e artístico que todos temos, não deixemos que os banlieusard (suburbanos) predominem com suas narrativas de conflito e insurreição, não permitiremos que os magrebinos vençam a Paris branca e burguesa.


Woody Allen cumpriu à risca as determinações dos seus contratantes. Mais: cercou seu filme de graça, poesia e beleza – musical e visual. Fez um belo filme, agradável, leve, engraçado. O protagonista Gil Pender está ótimo, consegue imitar Woody Allen em detalhes deliciosos, especialmente aquele inevitável cacoete de gaguejar nervoso antes de qualquer sentença. De quebra, Allen ainda consegue debochar da direita republicana, dos “criptofascistas do Tea Party”, dos vinhos do Napa Valley, dos pedantes em geral, e dos “americanos que não saberiam viver em outro País”.


Para Woody Allen, que é um intelectual de respeito, deve ter sido fácil fazer o roteiro do filme. Bastou reler “Paris é uma festa”, do Hemingway. Está tudo lá. Inclusive o endereço de Gertrude Stein: rue des Fleurus, número 27 (quase junto ao Jardim de Luxemburgo), onde todos convergiam para compartilhar diálogos inesquecíveis, comidas, schnapps de frutas, espirituosos Calvados, arte, situações literárias, quadros na parede em profusão e belas mulheres.


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Não é possível deixar de registrar a comilança ruidosa de pipocas na sala de cinema. Noto que se cria uma variante subcivilizada de indivíduos consumidores de espetáculos públicos. Essa gente precisa se alimentar o tempo inteiro, caso contrário pode desfalecer ou padecer algo mais grave. Indiscretos, portam - eufóricos - baldes de sua ração alimentar, mastigam o tempo inteiro e promovem ruídos que conspiram contra o silêncio e a concentração exigidos numa sala (pública) de cinema.


Por enquanto, eles consomem somente pipocas, ainda que em quantidades amazônicas. Mas, e se eles entenderem de consumir algo mais substancial, como linguiças e churrascos no espeto?


Sendo assim, diante da inevitabilidade do barbarismo de salão, sugiro que os exibidores dividam as salas de cinema: de um lado, os cinéfilos normais, de outro, os incivilizados e eufóricos (no sentido patológico, mesmo) comedores de pipoca.

17 comentários:

Anônimo disse...

Pôxa! Gostei do seu comentário sobre os pipoqueiros de cinema... Eles agem, além dos sintomas que você descreve, como se vissem um filme em suas próprias casas, em que dá para parar o filme (ou nem parar, deixando passar) para ir ao banheiro, por exemplo!
Não vou a cinemas em que desconfio que isso acontece, os dos shoppings, são os mais prováveis.

Paris, NY, Barcelona e Rio são cidades que merecem ser cuidadas pelas especialidades que contém. Essas eu conheço, mas parece que Berlim também carrega a essência burguesa nos moldes que Baudelaire se referia à sua cidade e seus burgueses...

Fernando F disse...

Pipoca não é nada. Pior é aquela necessidade compulsiva de conversar e comentar o filme.
Assistir cinema com comentários é brabo...

Rocco disse...

Sobre um detalhe do post: Manuel Castells deu seu apoio ao recém-eleito prefeito de Barcelona, Trias, do direitista CiU, que depois de três décadas retoma a cidade para a direira e já anunciou que cortará serviços públicos, alguns singelos, mas importantíssimos, como bicicletas de aluguel, e outros ainda mais essenciais.

Anônimo disse...

Sobre os pipoqueiros, além do que você falou, me chamou a atenção que nem deram bola para certas piadas muito boas do filme, como aquela em que o personagem principal dá a idéia do Anjo Exterminador ao Buñuel.

NINGUÉM RIU!!!!!!! FIQUEI APAVORADO!!!!

Anônimo disse...

KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK....
Está tudo tomado! Os bárbaros estão chegando!


armando do prado

Maria Lucia disse...

Ainda bem que tu e o Juremir, do Correio do Povo, estão escrevendo sobre isso.
Sonho com sessões de cinema onde seja proíbido comer pipoca. Sempre sugiro isso quando compro meu bilhete. Tem uma comunidade no Orku "odeio pipoca no cinema". Tomara que essa onda se espalhe e que possamos ver um filme em paz e sem cheiro.

lgonzales disse...

Além do pipoqueiros, dos comentaristas, tem os velhinhos que vão lá só para ver Paris. Aí ficam conversando o filme inteiro como se estivessem na quermesse da igreja. Cinema em shopping é barbárie.

giovani montagner disse...

embora tenha diminuído, ainda temos o pessoal do celular. não basta desligar a chamada, atende e diz que esta no cinema, a primeira vez é quase um sussurro, como o interlocutor não ouviu, a segunda todos na sala escutamos. por isso, há algum tempo decidi ir ao cinema no dia e o horário de menor movimento.
o allen retratou londres também, acredito que foi a primeira escala fora de nova iorque, e li que prepara as malas para roma.

caco velho disse...

Anônimo, tu tá querendo demais, achando que um debilóide pipoqueiro vai entender piada sobre o Anjo Exterminador do Luis Buñuel.

Oscar T disse...

Ainda não vi o filme mas o que tem de mais shopping? Falta de educação tem em qualquer cinema. Por pipocas e celeulares que não vou em sessões de fim de semana há mais de 15 anos.

Antonio Oswaldo Cruz disse...

Acho que poucas pessoas tem menos a ver com o Rio de Janeiro que o Woody Allen. Fico curioso para saber o que ele vai fazer se realmente for contratado para promover a cidade, que é absolutamente horrorosa (sou carioca e moro no Rio).

Omar disse...

Lembro -vagamente- ter assistido o filme Erik - O Viking, em Barcelona, na década de 80. Na frente das poltronas tinha uma mesinha, tipo essas que vem nos aviões, só que fixa. O povo levava alguns comes e bebes para degustar durante o filme. Acho -como disse, lembro vagamente- que tomei uma cerveja. Erik - O Viking, é um filme bem fraquinho.

Carlos Eduardo da Maia disse...

Também não gosto dos pipoqueiros no cinema. O filme do Woody é show. Uma observação, o atual projeto urbanístico de Paris foi feito por Haussmann, nomeado prefeito por Napoleão III e tinha, também, por objetivo alargar as ruas e avenidas para evitar as barricadas das manifestações populares.Há, na beleza de Paris da Belle èpoque, da era do Jazz e de hoje, um tantinho de repressão.

Carlos Eduardo da Maia disse...

Omar, em alguns cinemas da europa, no final da década de 90, era possível fumar. Quando assisti Sibirskiy tsiryulnik em Berlim era uma fumaça só.

Omar disse...

Bah. É verdade. Todos fumavam. Inclusive eu. Ainda bem que isso mudou para melhor.

Anônimo disse...

paris é a única que não foi bombardeada, berlim seria uma linda cidade, barcelona também, além de londres...mas a guerra acabou (berlim, dresde tb) ou danificou bastante as outras. rio de janeiro é bom demais,cara! tá falando porque mora lá, vá morar em belo horizonte pra conhecer o tédio...

Anônimo disse...

Com pipoca ou sem pipoca o filme é uma obra de arte...todo mundo bateu palma no final! Viva Woody Allen! O dia que eu não gostar de um filme dele é porque não entendi...Lúcia Medeiros

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