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Surf no lixo contemporâneo: a que ponto chegamos! E que mundo deixaremos de herança para Keith Richards?

segunda-feira, 25 de julho de 2011

O relógio



De que nos serviria
um relógio?

se lavamos as roupas brancas:
é dia

as roupas escuras:
é noite

se partes com a faca uma laranja
em duas:
dia

se abres com os dedos um figo
maduro:
noite

se derramamos água:
dia

se entornamos vinho:
noite

quando ouvimos o alarme da torradeira
ou a chaleira como um pequeno animal
que tentasse cantar:
dia

quando abrimos certos livros lentos
e os mantemos acesos
à custa de álcool, cigarros, silêncio:
noite

se adoçamos o chá:
dia

se não o adoçamos:
noite

se varremos a casa ou a enceramos:
dia

se nela passamos panos úmidos:
noite

se temos enxaquecas, eczemas, alergias:
dia

se temos febre, cólicas, inflamações:
noite
aspirinas, raio-x, exame de urina:
dia
ataduras, compressas, unguentos:
noite

se esquento em banho-maria o mel que cristalizou
ou uso limões para limpar os vidros:
dia

se depois de comer maçãs
guardo por capricho o papel roxo escuro:
noite

se bato claras em neve: dia

se cozinho beterrabas grandes:
noite
se escrevemos a lápis em papel pautado:
dia

se dobramos as folhas ou as amassamos:
noite
(extensões e cimos:
dia

camadas e dobras:
noite)

se esqueces no forno um bolo amarelo: dia

se deixas a água fervendo
sozinha:
noite

se te cortas com papel ou feres o pé com vidro: dia

se ao comer com pressa queimas
o céu da boca:
noite

se pela janela o mar está quieto
lerdo e engordurado
como uma poça de óleo:
dia

se está raivoso
espumando
como um cachorro hidrófobo:
noite

se um pinguim chega a Ipanema
e deitando-se na areia quente sente ferver
seu coração gelado:
dia

se uma baleia encalha na maré baixa
e morre pesada, escura,
como numa ópera, cantando:
noite

se desabotoas lentamente
tua camisa branca:
dia

se nos despimos com ânsia
criando em torno de nós um ardente círculo de panos:
noite

se um besouro verde brilhante bate repetidamente
contra o vidro: dia

se uma abelha ronda a sala
desorientada pelo sexo: noite

de que nos serviria
um relógio?

Ana Martins Marques (foto), mineira de BH.

3 comentários:

Anônimo disse...

A foto é muito boa, mas a poesia é primária...não sei como a Folha publicou isso...a critica anda "critica"...

Nicolás disse...

bom...eu achei a poesia otima, pelo simples fato dela ter me emocionado.
Talvez me escape a técnica.
E dai ?
Abs

Anônimo disse...

muita roupa nesta foto.

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