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sexta-feira, 22 de julho de 2011

De Borges de Medeiros a Trotsky



João Neves da Fontoura foi diplomata e ex-vice-presidente do RS, quando Getúlio Vargas fora presidente de 1928 a 1930.  

Fontoura publica suas “Memórias” a partir de 1958, quando sai o primeiro volume de 401 páginas, editado pela velha Livraria do Globo, da família Bertaso. O segundo volume porta 490 páginas e foi publicado em 1963, semanas antes de sua morte, em março. É uma leitura muito agradável e rica em informações sobre os acontecimentos políticos do Rio Grande e do Brasil na primeira metade do século 20. Ao contrário das demais lideranças políticas do estado sulino, com raras exceções, João Neves – como ficou conhecido – era um sujeito com uma boa formação intelectual, nunca foi positivista, como seus companheiros do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), porque estudou com os jesuítas de São Leopoldo, onde hoje ergue-se a Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Unisinos.

Leitor refinado, era apreciador da obra de Romain Rolland, aquele da qual Gramsci subtraíra-lhe a genial expressão de que o “pessimismo da inteligência” não deveria abalar o “otimismo da vontade”.

Muito ligado ao grande líder republicano Borges de Medeiros (foto do alto), para bem além dos laços familiares que os uniam, bem como o fato de ambos terem nascido na mesma região do estado, Borges em Caçapava e Fontoura em Cachoeira.

A certa altura da primeira parte de “Memórias”, João Neves arrisca narrar sobre o perfil psicológico de Borges, uma personalidade forte, introspectiva, “que detestava o exibicionismo, a galeria, a popularidade fácil”.  Em tempos de grandes e graves crises políticas, João Neves afirma que jamais vira Borges diferente. “Sua voz não traía emoções, nada denotava nele ansiedade ou receio”. É preciso lembrar que o governo Borges durou mais de 25 anos: da morte prematura de Julio de Castilhos, em 1903, até entregar o poder estadual a Getúlio Vargas, em janeiro de 1928. Sem esquecer que houve a sangrenta guerra civil de 1923, entre borgistas-chimangos e partidários de Assis Brasil, os maragatos, velhos federalistas da revolução de 1893.

João Neves especula que a técnica de contenção do espírito do líder republicano “consistia em compenetrar-se de que os acontecimentos não correm  com maior velocidade porque os homens procurem antecipá-los ou impedí-los com força”. Para Fontoura, Borges – determinista - socorria-se de Comte, quando este dizia que “o homem se agita, e a humanidade o conduz”.  

Anos depois, conta João Neves, lendo a autobiografia de Trotsky (foto ao lado), ele teria encontrado um traço comum na personalidade destes líderes de natureza e ideologias tão distintas, embora, ambos revolucionários. O “profeta desarmado”, criador do Exército Vermelho, escrevera: “Sei, por experiência, o que são os fluxos e refluxos da história, submetidos a certas leis. Não basta que nos impacientemos para os transformar mais depressa. Acostumei-me a considerar a perspectiva da história de um outro ponto de vista que não o da minha situação pessoal” – arrematou o inimigo número um de Stálin.

As “Memórias” de João Neves da Fontoura estão esgotadas há muitos anos. Encontraremos alguns exemplares, talvez, em sebos e colecionadores. É hora, pois, de reeditar esse precioso material de testemunho dos acontecimentos regionais e nacionais da primeira metade do século passado. Leitura prazeirosa, imperdível, mesmo. Não é possível compreender as singularidades e idiossincrasias do Rio Grande do Sul sem conhecer essa obra sensível do militante João Neves. Pode-se – deve-se – discordar das suas convicções pequeno-burguesas e conservadoras, mas jamais dizer que foi um político vulgar e despreocupado com a cidadania e seus requerimentos republicanos, dos quais até hoje tanto carecemos.

4 comentários:

Omar disse...

Irei atrás. Parece uma boa leitura.

Eduardo Martinez disse...

Gracias, Cristóvão. Carecemos sim de reflexões "gauches" sobre nossa identidade, sobre nossa origem, ambas não fictícias.

Por exemplo, São Borja elegeu deputados para a assembleia constituinte da república sonhada por Artigas e entre a eleição e a posse dos eleitos houve o acordo entre espanhois e portugueses. O município passou para o domínio português e boa parte do povo, despertada de supetão no meio do sonho republicano, migrou para o sul e fundou cidades como Durazno no Uruguai.

Gostaria de saborear teus artigos muito bem temperados, dando gosto e cheiro para coisas "desnecessárias", segundo a pauta convencional, como essas. Afinal, o "importante" é saber se vai nevar em Neve Iorque ou chover no molhado em Londres.

Há braços...

Anônimo disse...

Borges de Medeiros, afilhado político de Júlio de Castilho dono do jornal "A Federação", se perpetuaram no poder com a ajuda deste hebdomadário. Tudo é cíclico. Hoje, a poderosa RBS se perpetua no poder com o jornal Zero Hora, mas com uma diferença importante: a sutileza.
O gaúcho é um povo paradoxal, pois enquanto representa a vanguarda ao mesmo tempo é retrógrado e barrista.

Reflexo da dominação intelectual perpetuada pela oligarquia Sirotsky, que assim como as oligarquias nordestinas, conduz a massa ao patíbulo enquanto a classe média está iludida em seus conceitos vazios e errôneos do ter (Ter ou Sêr - Erich Fromm)

Victor disse...

Estou lendo o livro. É um livro ao qual se deveria fazer mais menção aqui no RS. Leitura muito boa para saber como as coisas eram e perceber o Rio Grande do presente. Recomendo com ênfase.

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