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sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Uma loura muito falsa e ordinária


A cerveja: bebendo gato por lebre

O Brasil é o quarto maior produtor de cerveja, com pouco mais de 10 bilhões de litros por ano. A China é o maior de todos, com 35 bilhões, e os EUA são o segundo, com 24 bilhões. A Alemanha vem em terceiro, com uma produção apenas 5% maior que a brasileira.

Segundo norma autorregulatória da indústria cervejeira alemã, a cerveja é composta única e exclusivamente por apenas três elementos, cevada, lúpulo e água, tendo como interveniente um fermento.

Tradicionalmente, o termo malte designa única e precisamente a cevada germinada.

O malte pode substituir a cevada total ou parcialmente. A malandragem começa aqui. Com frequência, lê-se em rótulos de cervejas a expressão "cereais maltados" ou simplesmente "malte", dissimulando assim a natureza do ingrediente principal na composição da bebida.

Com a aplicação desse termo a qualquer cereal germinado, a indústria cervejeira pode optar por cereais mais baratos, ocultando essa opção.

O poder da indústria cervejeira no Brasil (lobby, tráfico de influência etc.) deve ser imenso. Basta lembrar que convenceram as autoridades (in)competentes nacionais de que não estavam violentando normas que regulam a formação de monopólios ao agregar Brahma e Antártica - o que constituiria então cerca de 70% do consumo nacional - com o argumento de que só assim poderiam concorrer no mercado globalizado. Mas depois foram gostosamente absorvidas por uma multinacional do ramo, certamente uma forma sutil de realizar a concorrência prometida. E não foi tomada nenhuma providência.

Aliás, sempre que aparecia no cenário uma empresa nascente que, pela qualidade, pudesse despertar no brasileiro uma eventual discriminação quanto ao sabor, era ela acuada por todos os meios possíveis e finalmente absorvida, e sua produção, reduzida ao mesmo nível da mediocridade dos produtos das duas gigantes.

Aparentemente, o receio era o de que a população cervejeira, ao ser exposta a diferentes e mais sofisticados exemplos, desenvolvesse algum bom gosto e, consequentemente, passasse a demandar cerveja de qualidade.

A cerveja brasileira (com pequenas e honrosas exceções) é como pão de forma: mata a sede, mas não satisfaz o paladar exigente.

Para esclarecer a questão da má qualidade da cerveja brasileira, vamos fazer alguns cálculos.

A produção nacional de cevada tem ficado nos últimos anos entre 200 mil e 250 mil toneladas, das quais entre 60% e 80% são aproveitados pela indústria cervejeira. Essa produção agrícola tem sido suplementada por importação de quantidade equivalente. Em média, portanto, cerca de 400 mil toneladas de cevada são consumidas na indústria da cerveja no Brasil, presumindo-se que quase toda a importação tenha essa finalidade.

O índice de conversão entre a cevada e o álcool é, em média, de 220 litros por tonelada. Como as cervejas brasileiras têm um teor de álcool de 5%, podemos concluir que seria necessário que houvesse pelo menos seis vezes a quantidade de cevada hoje disponível para a indústria nacional da cerveja.

Portanto, a menos que um fenômeno semelhante àquele do "milagre da multiplicação dos pães" esteja ocorrendo, o álcool proveniente da cevada na cerveja brasileira representa cerca de 15% do total.

Há pouco mais de duas décadas foi publicado um relatório de uma tradicional instituição científica do Estado de São Paulo segundo o qual análises de cervejas brasileiras mostravam que um pouco menos que 50% do conteúdo da bebida era proveniente de milho (obviamente sem considerar a água contida).

Como o índice de conversão de grão em álcool para o milho é 80% maior que para a cevada, podemos considerar que a conclusão do relatório em questão atua como álibi, pois satisfaria normas vigentes.

Isso também explica a preferência dos produtores de cerveja pelo milho, pois os preços da tonelada dos dois cereais são aproximadamente os mesmos, apesar de consideráveis oscilações.

Esses números permitem, todavia, concluir que o milho (e outros eventuais cereais que não a cevada) constitui, em peso, quase três quartos da matéria-prima da cerveja brasileira, revelando sua vocação para homogeneização e crescente vulgaridade.

Outro determinante da baixa qualidade da cerveja brasileira é a adição de aditivos químicos para a conservação. O mal não está só nessa condição, mas na sua necessidade. O lúpulo em cervejas de qualidade, sejam "lagers", sejam "ales", é o componente responsável pela conservação -além, obviamente, de suas qualidades de paladar.

Depreende-se daí que os concentrados de lúpulo usados na cerveja brasileira são de baixa qualidade. O que é inexplicável e de lamentar, entretanto, é que as autoridades brasileiras, tão zelosas para com alimentos corriqueiros, sejam tão omissas quando se trata da bebida nacional mais popular e de maior consumo e permitam que o cidadão brasileiro beba gato por lebre.

Artigo do físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, professor emérito da Unicamp. Publicado hoje na Folha.

15 comentários:

Anônimo disse...

Realmente, o poder do capital dessas grandes empresas é avassalador. Lembremos das antigas cervejarias que faliram, em meados do século 20, vítimas da pressão desses grupos, então emergentes. O governo nada faz contra essa desonestidade ( gato por lebre). O poder é tão grande que eles são os maiores patrocinadores do esporte nacional ( copa do mundo e olimpíadas). Ou seja,uma droga patrocina o esporte. A bebida pode!

Anônimo disse...

Por isso faço as minhas em casa :D Jeremiah Rulez!!!

SBENTENAR disse...

- Julguei que gato por lebre era cevada x repolho!! Por isso que tomo vinho que é uma bebida nobre. Embora exista trmbique é um mercado mais diversificado. Baco é Baco.

Anônimo disse...

Engraçado, parece que já vi esse filme da fusão em algum lugar... Terá sido com as Teles....
Rs, rs, rs.... É muito pilantra solto né não?

udo disse...

por isso que os neoliberais querem Estado mínimo, para suas empresas fazerem essas fraudes de forma livre e desimpedida.

Onde está o Estado?

Cazé disse...

Cerveja feita de milho transgenico que é pior.
Onde está a CTNBio que estava analisando os malefícios dos alimentos com transgênico? Nem ceva mais dá pra tomar é tudo com veneno, gente.

vários um disse...

Gato por Faisão porque cerveja tá caríssimo!
A ignorância é o mal.

Francisco Goulart disse...

Viva a cerveja artesanal de qualidade!

Nelson Antônio Fazenda disse...

Mais umdado a demonstrar o sucesso retumbante daquilo que chamam de livre mercado.

Anônimo disse...

Desisti há muito tempo de tomar cerveja, mas sempre abro uma excessão. Ano passado meu amigo andré da banca da banca de revista da esquina, uruguaio de nascimento me convidou para irmos no patricio dele comer um pancho, o mão de vaca pediu uma cerveja nacional, digo gaucha, aquela cujo comercial tem dois guris com cara de gringo europeu. Bueno depois de tomar a cerveja me inchou a barriga e me acelerou os batimentos cardíacos, pergunta se volto a tomá-la, nuquinha. A uruguaia com nome de mulher não me dá nada disso.Me disseram que a água de lá é melhor, dá uns anos até aquelas papeleras começarem a funcionar a pleno pra ver o que acontece. Abraços
Marcelo J.

Carlos Eduardo Moro disse...

amem!

viva a cerveja artesanal!

malte+lupulo+agua+levedura

Anônimo disse...

moral da história: cerveja não é mais cerveja. pão não é mais pão. etc, tudo foi "rebaixado" a uma categoria muito inferior e letal, só mantém o preço baixo e o nome, porque não é mais o mesmo produto.

Blog Del Güerdo disse...

HAVIA RECEBIDO NO BLOG DO EXTRA-MALTE E FIZ A SEGUINTE RÉPLICA:

ASSERÇÃO CORRETA, RAZÃO ERRADA.
Com todo o respeito que um professor emérito merece, certamente foi a Física que o projetou, porque de Química cervejeira ele nada entende.
A tal "norma autorregulatória" (ela regula a si própria?!?) alemã é a nossa conhecida Lei da Pureza. Além da água e do lúpulo ela cita o malte de cevada no seu texto original de 1516. Órgãos reguladores incluiram a levedura e o malte de trigo ao longo dos anos, reparando erros históricos causado por interesses econômicos e atualização científica.
Com pura cevada não malteada não é possível fazer cerveja. Ela não será convertida em álcool pelo fermento pois as enzimas que transformam o amido em maltose só existem nos grãos malteados.
A conta que ele faz não possui embasamento científico, é uma regra de três primária.
Os "adjuntos cervejeiros" que, por legislação, são citados nos rótulos brasileiros como "cereais não maltados" são quirera de arroz e grits de milho, e podem chegar a 35% do peso de cereal na cerveja comum. Para aumentar a capacidade de transformação em álcool pode ser colocado um percentual de açúcar de cana.
Os "extratos de lúpulo de baixa qualidade" que ele se refere são os mesmos utilizados por quase toda a cerveja feita no mundo. Não há na União Européia indústria que vulgarize o lúpulo. Não há lúpulo na América do Sul (exceto uma pequena produção da variedade Cascade en El Bolsón, sul da Argentina.

Sua assertiva em relação à qualidade média das cervejas brasileiras é incostestável, bem como os favorecimentos imorais inerentes ao monopólio.

Continuemos com nossas cervejas especiais. Esse mundo das negociatas me dá sede.

Abraços
BURGOMESTRE

José Bedeu disse...

Muito interessante!
bom texto

Anônimo disse...

Cada dia q passa, me convenço mais q, como "cervechato", o "mestre", até é um baterista razoável!

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