Escravos
da modernidade
Na semana passada,
a imprensa veiculou a notícia de que uma construtora servia-se de
trabalho escravo.
A obra não era
uma hidrelétrica na região Norte ou em algum lugar de difícil
acesso, onde sempre é mais complicado descobrir o que se passa. Na
verdade, a obra encontrava-se quase na esquina com a avenida
Paulista.
Trata-se da
reforma de um dos mais conhecidos hospitais da capital paulista, o
Hospital Alemão Oswaldo Cruz. Ironicamente, a empresa responsável
pela obra chama-se "Racional" Engenharia.
Como não podia
deixar de ser, a empresa afirmou que os trabalhadores respondiam a
uma empresa terceirizada e que os dirigentes desconheciam realidade
tão irracional. Este foi o mesmo argumento que a rede espanhola de
roupas Zara utilizou quando foi flagrada servindo-se de mão de obra
escrava boliviana empregada em oficinas terceirizadas no Bom Retiro.
É muito
interessante como empresas que gastam fortunas em publicidade e
propaganda institucional são tão pouco cuidadosas no que diz
respeito às condições aviltantes de trabalho das quais se
beneficiam por meio do truque tosco da terceirização. Quando se
contrata uma empresa terceirizada, não é, de fato, complicado
averiguar as reais condições a que trabalhadores estão submetidos,
se seus turnos são respeitados e se seus alojamentos são decentes.
Há de se
perguntar se tal desenvoltura não é resultado da crença de que
ninguém nunca perceberá o curto-circuito entre imagens
institucionais modernas, requintadas, "racionais", e
sistemas medievais de exploração.
No fundo, essa
parece ser mais uma faceta de um velho automatismo brasileiro de
repetição: discursos cada vez mais elaborados e modernos, práticas
cada vez mais arcaicas. Afinal, tal precariedade foi feita em nome de
novas práticas trabalhistas, mais flexíveis e adaptadas aos tempos
redentores que, enfim, chegaram.
Não mais a
rigidez do emprego e do controle dos sindicatos, mas a leveza do
paraíso da terceirização, onde todos serão, em um horizonte
próximo, empresas. Cada trabalhador, um empresário de si mesmo.
Que essa
flexibilidade tenha aberto as portas para uma vulnerabilidade que
remete trabalhadores à pura e simples escravidão, isto não
retiraria em nada o brilho da ideia. Pois apenas os que temem o risco
e a inovação poderiam querer ainda as velhas práticas
trabalhistas. Pena que o novo tenha uma cara tão velha.
Pena também que,
como os gregos mostrem a cada dia, quem paga o verdadeiro preço do
risco sejam, como dizia o velho Marx, os que já perderam tudo.
Artigo do
professor Vladimir Safatle, da Filosofia da USP. Publicado na Folha,
no último dia 14/2.
3 comentários:
Nestes tempos neoliberais, o lucro deixou de ser a prioridade número um dos capitalistas para se tornar também a segunda, a terceira, a quarta, a quinta...
Os desvios dos princípios éticos que isto implica, e que antes ainda causavam algum prurido de preocupação, hoje são facilmente justificados da forma mais cínica possível: o mundo é assim mesmo e se eu não fizer outros o farão, defnde-se o capitalista.
E, como cantado naquele famoso bolero, "Asi pasan los dias".
Nestes tempos neoliberais, o lucro deixou de ser a prioridade número um dos capitalistas para se tornar também a segunda, a terceira, a quarta, a quinta...
Os desvios dos princípios éticos que isto implica, e que antes ainda causavam algum prurido de preocupação, hoje são facilmente justificados da forma mais cínica possível: o mundo é assim mesmo e se eu não fizer outros o farão, defnde-se o capitalista.
E, como cantado naquele famoso bolero, "Asi pasan los dias".
A forma como impostei o termo "capitalistas" no comentário anterior pode dar ideia, e certamente dá, de que capitalistas é um determinado grupo de pessoas que, se conseguirmos subtrair-lhe o poder político e econômico de que dispõe, tudo pode melhorar neste planeta Terra, quase como um passe de mágica.
Porém, a coisa não é assim tão simples. Por isso, para ser mais exato, e mais conforme com a realidade atual, tenho que reconhecer que, generalizando, todos nos tornamos capitalistas. Todos passamos a colocar nosso lucro, nosso ganho monetário pessoal na posição de primeira, segunda, terceira... prioridade.
Também os profissionais liberais, dentistas, médicos, engenheiros, aruqitetos, agrônomos, advogados, etc... e o conjunto dos trabalhadores empregados tornaram-se capitalistas ao extremo. Todo mundo quer ganhar o máximo no menor tempo possível e com o menor esforço possível. Todo mundo quer ficar rico em coisa de cinco ou oito anos.
Então, todos nós - generalizando, repito - estamos torcendo pelo suscesso do sistema capitalista.
Postar um comentário