De
chegada quero dizer que “Os Descendentes” é um grande filme. O
roteiro e a direção estão a cargo de Alexander Payne, que dá um
tratamento leve – mas comprometido – a temas complexos da vida
cotidiana. O personagem que o tempo inteiro está em cena é Matt
King, herdeiro de um baronato de terras no valioso Havaí, onde
nasceu o presidente estadunidense Barack Obama. Informe-se que o
arquipélago foi descoberto pelos portugueses, mas os EUA, depois de
invadirem militarmente as ilhas no finalzinho do século 19, anexaram
ao seu território. Hoje, é um dos tantos estados dos EUA.
King,
vivido pelo correto George Clooney, é um advogado rico, que não
amadureceu, tem duas filhas muito jovens, e a mulher vive seus
últimos dias em coma profundo, depois de um grave acidente de
lancha, possivelmente durante uma bebedeira tão juvenil quanto
irresponsável.
Todos
os que aparecem na tela de “Os Descendentes” são indivíduos
imaturos e despreparados para a vida adulta. Mesmo o veterano pai da
comatosa mulher de Matt King, apesar de avançado nos anos, dá um
soco no olho de um menino, por este ter dito um disparate imbecil
acerca de sua mulher portadora do mal de Alzheimer. Repito: todos são
juvenis, homens e mulheres improvisados para a vida adulta.
Vejam
os muitos primos do protagonista vivido por George Clooney: herdeiros
de uma riqueza ancestral, baseado na posse de uma terra usurpada aos
nativos, aparentemente não trabalham, flanam por aí com copos na
mão, camisas havaianas (sim, no Havaí, se usam camisas havaianas!)
esperando ficarem mais ricos do que já são. A cena – quase no
final – na qual os primos se reúnem para decidir sobre a venda de
suas terras, deliberação essa que cabe ao advogado da família,
Matt King, é risível e urdida com leveza pelo diretor Alexander
Payne, com simplicidade e objetividade, mostrando-os em grupo, nunca
individualmente, como uma pequena manada, todos em traje
informalíssimo (alguns com camisas havaianas), aguardando
bovinamente o momento em que poriam a mão em mais bufunfa, talvez
nem mesmo sabendo o quê fazer com aqueles excessivos dólares.
Quando
Matt King/George Clooney recebe a notícia do médico sobre o estado
clínico terminal de sua mulher, parece que ele acorda de um longo
sono letárgico, na direção oposta da mulher, portanto. Essa
condição é confirmada quando sua filha de 17 anos lhe informa que
a mãe/esposa estava tendo um caso afetivo com um corretor de
imóveis. King ao ser informado da aventura da mulher corre
desabalado pelas ruas do bairro residencial onde mora, uma cena entre
o hilário e o tenso, porque o diretor é um craque e consegue fundir
elementos aparentemente conflitivos num mesmo trecho narrativo e faz
disso enlevo, arte e fruição, dotando a cena de grande densidade e
força dramática.
Nestas
pequenas soluções de roteiro é que o cara mostra o talento, seja
de diretor, seja de roteirista mesmo. Outra cena que impacta, agora
pela beleza plástica e poética, é quando Alex, a filha mais velha
de King, recebe a notícia da irreversibilidade do estado da mãe e,
na piscina, submerge chorando, o que parece agravar tanto o sufoco
que sente quanto a depressão do momento. Cinema, como dizia
Hitchcock, é mais imagem que palavra. As palavras são acessórios
de uma linguagem narrativa fundada sobretudo na imagem e no impacto
visual.
Quando
se confirma que a mulher de King não tem volta, que basta desligar
os aparelhos para que ela finalmente morra, todos os personagens
crescem em cena, o pai, as duas filhas, e até o namoradinho de Alex,
a fiha de 17 anos. O rapaz é a imbecilidade andante, uma versão
engordurada de Beavis e Butthead, e no entanto, subitamente passa a
ingressar na fileira dos adultos.
Esse,
a meu ver, é o traço essencial do filme de Alexander Payne. A
expressão descendente, em latim, significa o "que
desce". Todos descem e chapinham na depressão e na mediocridade
cotidiana, até que Payne coloque a inflexão catártica determinada
pelo coma da mulher do protagonista principal. A partir daí ocorre o
ascenso, a subida, a progressão existencial no rumo da
autoconsciência, da lucidez e da desalienação da vida cotidiana.
Matt King já não quer mais vender a terra ancestral, em que pese a
pressão dos primos. Ele não quer mais se comportar como um ser
mecânico que cumpre de forma alienada com um roteiro secreto onde
não há reflexão, onde não há espaço para a dúvida e por
conseguinte para a liberdade. King já não está mais disposto a
fazer o que o sogro espera dele, o que os primos esperam dele, ou o
que a sociedade espera dele.
Ele que fora "um homem devorado por
seus papéis", como diz a socióloga Agnes Heller, dá uma
cambalhota moral-existencial e começa a entender o que está a sua
volta. A consciência de King agora quer fazer a "condução da
vida" para buscar a auto-realização através da autofruição
da personalidade. O personagem de Clooney quer elevar-se acima de si
mesmo, onde o cume disso é representado pela catarse (purgação) da
conjugação de fatos cotidianos inexoráveis e esmagadores
para qualquer indivíduo.
Há
um provérbio dos índios Guaranis, habitantes autóctones do Brasil
meridional que diz o seguinte: “Quando
se corre muito, há que parar e esperar pela alma”. King/Clooney
"corre" muito no filme "Os Descendentes", então
pára para refletir e esperar a sua alma. Ele precisa reencontrar a
sua humanidade perdida, recompor os cacos do seu ser genérico,
remontar a sua integridade moral e reconstituir-se como homem
completo. Goethe dizia que todo homem pode ser completo, inclusive na
sua cotidianidade.
A
belíssima cena de despedida de Matt King da mulher vegetativa no leito de morte é um
ponto alto do cinema contemporâneo: ele já está mudado, sem
rancor, elevado, terno, adulto, comovido (sem pieguice) e ao mesmo
tempo realista e íntegro - desalienado, enfim.
7 comentários:
Cristóvão. Belíssimo texto. Sem tergiversações para falar de uma história crua muito bem contada, com narrativa e estética ao encontro do que o roteiro deseja. Tela cheia de um cotidiano chato e piegas e que vai se alterando para a visceralidade de uma vida real! Abraço. Cassol
Tóia, e quando o Dr. King sai à procura do amante da mulher levando consigo as filhas e o namoradinho de uma delas; haverá momento mais infantil? Contudo, se assim não fosse, parece que o personagem não atingiria a maturidade que a realidade de todos exigia. A. Payne foi perfeito! Enfim, parabenizo-te pela análise. Abraço.
Muito bom o texto, tomara que o filme o mereça!
Vou na toada do Anônimo, meu caro Feil. O teu texto, excelente, desenha um filme idem. A conferir, portanto.
De outra parte, fazendo alusão à foto acima, o que podemos constatar é a continuação da mesmice na ordem internacional. O Sistema de Poder que domina Israel desde sempre só faz arrochar o Apartheid contra os palestinos ao mesmo tempo em que os chamados organismos internacionais, ONU e outros, órgãos da mídia hegemônica e (de)formadores de opinião preferem olhar para outro lado.
Violência é coisa exclusiva do Assad, na Síria.
Bom filme, mas Clooney já fez coisas melhores, como, p. ex., Syriana e Conduta de Risco, que não mereceram a mesma acolhida pela Academia que distribui os Oscars, porque estes filmes desnudam os USA, assim como Zona Verde estrelado por Matt Damon.
Outro grande filme de Hollywood é Margin Call. Se McCarthy estivesse vivo estes filmes jamais seriam exibidos.
"Informe-se que o arquipélago foi descoberto pelos portugueses...", como sempre nossos ascendentes descobrindo territórios que os nativos já conheciam há milhares de anos...
Depois dessa só me resta ver o filme.
Abraço
Omar
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